“A equipe do BC está na contramão do que ocorre no mundo. Elevação dos juros com a economia em recessão é burrice. Mas essa burrice tem uma explicação: encher de dinheiro as burras dos rentistas do sistema financeiro”, destaca o economista
O economista Nilson Araújo de Souza, doutor em economia pela Universidade Autônoma do México (Unam), pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, afirmou, em entrevista ao HP, que “a pressão inflacionária que vem desde meados do ano passado não tem nada a ver com pressão da demanda”, um dos argumentos usados pelo Banco Central para elevar a taxa básica de juros de 2% para 2,75% na quarta-feira (17), ou seja, um aumento de quase 40%.
“Já conhecemos o script: basta anunciar que a tendência dos juros básicos é de alta, como fez o Copom na última reunião, que começa a apontar para um impacto negativo na atividade econômica”, advertiu.
HORA DO POVO: A elevação da inflação tem relação com alta da demanda? 2) Como avalia a alta da taxa de juros pelo BC com o país em recessão?
NILSON ARAÚJO: Não, a pressão inflacionária que vem desde meados do ano passado não tem nada a ver com pressão da demanda. Com uma economia deprimida como a nossa, há já bastante tempo, mas agravada do ano passado para cá, com a emergência da Covid-19, a demanda não tem como pressionar os preços para cima. Com a forte capacidade ociosa, se houvesse crescimento da demanda, o mais provável é que estimularia o aumento da produção, e não dos preços.
Está claro de onde vem a pressão inflacionária: dos alimentos e dos combustíveis. E de onde surgiu a “inflação dos alimentos”? Faz parte da tradição econômica brasileira a formação de estoques reguladores de alimentos. O que significa isso? Que, durante a safra, o governo adquire produtos agrícolas a fim de manter os preços ao produtor e abastecer o mercado interno durante a entressafra. Na entressafra, o governo garante o abastecimento interno, impedindo, ademais, o aumento dos preços.
Ocorre que os estoques reguladores, que vêm caindo desde o governo Dilma e desabaram no governo Temer, foram completamente desmontados na gestão Bolsonaro-Guedes, sob a alegação de que se deveria economizar o custo da armazenagem. O resultado foi que, quando da safra do ano passado, no primeiro semestre, em lugar de adquirir produtos para formar os estoques reguladores, o governo estimulou que eles fossem exportados e, quando chegou a entressafra no segundo semestre, não havia produtos para abastecer o mercado interno, tendo que importar até arroz a preço internacional, e com o dólar caro. A safra deste ano começou a ser colhida no mês passado, mas tudo indica que o governo não aprendeu com a história e segue sem formar os estoques reguladores.
“Os estoques reguladores, que vêm caindo desde o governo Dilma e desabaram no governo Temer, foram completamente desmontados na gestão Bolsonaro-Guedes, sob a alegação de que se deveria economizar o custo da armazenagem”
Quanto aos combustíveis, o Brasil, com o pré-sal, tornou-se autossuficiente em petróleo, além de possuir capacidade de refino suficiente para abastecer o mercado interno de derivados de petróleo. Mas o governo, subordinado à política das transnacionais petroleiras, tem permitido a exportação do petróleo em bruto, que é refinado nas refinarias das petroleiras em suas sedes, tendo que importar os derivados. A que preço? Ao preço internacional, que tem estado aumentando, corrigido pela taxa de câmbio, que tem estado em elevação, ou seja, paga-se cada vez mais caro em dólar pelos derivados do petróleo, e cada vez mais reais pelo preço em dólar desses derivados.
Essa situação se agrava porque, com a ausência de planejamento, a desorganização da cadeia produtiva produzida pela crise cobra seu preço: por exemplo, pesquisa realizada entre industriais no final do ano passado indicava que 78% deles estavam tendo dificuldade com o fornecimento de insumos e matérias primas.
HORA DO POVO: Como você avalia a alta da taxa de juros decidida pelo BC com o país em recessão?
NILSON ARAÚJO: Quanto à decisão do Copom do Banco Central de elevar a taxa básica de juros, a Selic, eu já havia cantado a bola em entrevista à HP em dezembro do ano passado. Aumentou agora a Selic de 2% para 2,75% ao ano e, segundo as vozes de mau agouro dos representantes do mercado financeiro, vai chegar a 4% ao final deste ano e a 6% no ano que vem. A equipe do BC está na contramão do que ocorre no mundo e inclusive do arremedo de teoria que costuma usar. Usa a versão mais burra desse arremedo de teoria.
Para os discípulos de pouca ou nenhuma inteligência desse arremedo, a inflação sempre resulta do aumento da demanda, que, por sua vez, seria derivado do aumento do gasto público, do salário e do crédito. E sempre apresentam a receita de que, para combater a inflação, tem que aumentar a taxa de juros porque assim, pagando mais juros, o governo gastaria menos em investimento e custeio, os assalariados teriam menos renda para comprar e tomariam menos dinheiro emprestado e as empresas usariam menos créditos para seus investimentos (ao contrário, aplicariam seus recursos no mercado financeiro). Com isso, cairia a demanda e pressionaria a inflação para baixo.
A isso, acrescentam um argumento mais “sofisticado”. Teriam derrubado demais os juros básicos; isso teria afugentado os capitais e pressionado, em consequência, a taxa de câmbio para cima, ou seja, desvalorizado o real. Com isso, os preços em reais dos produtos importados teriam subido, pressionando a inflação para cima. Ora, como demonstra muito bem o economista José Luís Oreiro, o que interessa aos especuladores estrangeiros são os juros de longo prazo, o chamado “juro longo”, e esse tem estado alto. Portanto, não é essa a causa da fuga de capitais; ela se deve à desconfiança dos “investidores” estrangeiros em relação às loucuras de Bolsonaro.
“A fuga de capitais se deve à desconfiança dos ‘investidores’ estrangeiros em relação às loucuras de Bolsonaro”
Ocorre que os mais sensatos e, portanto, menos dogmáticos dessa “escola” admitem que, a depender de como anda a economia, pode haver outras causas da inflação. Foi isso que ocorreu em 1967, quando Delfim Netto assumiu o Ministério da Fazenda, que vinha de uma longa recessão, e diagnosticou que a inflação era de custo. Foi taxado pelos monetaristas doentios de uma espécie de estruturalismo bizarro. Mas foi assim que pôde contribuir para o crescimento da economia.
Não é difícil chegar a essa avaliação. Com a economia operando a plena capacidade, um repentino aumento da demanda não pode ser acompanhado por imediato aumento da oferta e os preços sobem. Mas, com a economia operado com capacidade ociosa, o aumento da demanda pode resultar em aumento da oferta, e não dos preços.
Assim, até esses monetaristas um pouco mais inteligentes podem admitir que a atual pressão inflacionária no Brasil não vem da demanda, apesar do auxílio emergencial do ano passado. Tanto é que, mesmo depois da suspensão do auxílio emergencial, a pressão continuou. Além disso, enquanto o preço médio dos alimentos subiu cerca de 15% nos últimos 12 meses, o chamado núcleo da inflação, que exclui alimentos e combustíveis, está em torno de 3% ao ano, permanecendo dentro da meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional. Como indicamos na resposta anterior, é uma inflação nascida de ações do governo que desorganizaram a oferta.
Já conhecemos o script: basta anunciar que a tendência dos juros básicos é de alta, como fez o Copom na última reunião, que começa a apontar para um impacto negativo na atividade econômica. E isso num momento em que, pela quase anulação dos estímulos fiscais (o governo gastou até outubro R$ 456,84 bilhões, ou seja, 77,7% dos pacotes emergenciais aprovados pelo Congresso, no montante de R$ 587,46 bilhões, que correspondem a 8% do PIB e, agora, depois de três meses de suspensão, o governo anuncia que vai gastar apenas R$ 44 bilhões no auxílio emergencial), agravado pelo recrudescimento da pandemia, a economia já anda mal das pernas.
O ultraneoliberalismo da turma de Guedes é pura burrice. Mas há uma explicação: encher de dinheiro as burras dos rentistas do sistema financeiro, o quais vinham aceitando juros básicos (Selic) mais baixos por duas razões: a) o que mais lhes interessa, sobretudo aos de fora, é o “juro longo”, ou seja, as operações de longo prazo, e esse “juro longo” tem estado alto, devido à “fuga de capitais”, desconfiados das loucuras de Bolsonaro, conforme sustenta o economista José Luís Oreiro: b) porque receberam no ano passado cerca de R$ 1,3 trilhão do governo.
Nunca teve nada a ver com demanda. Sempre foi inflação de custos. Hoje mais do que nunca