Augusto Heleno defende o infame AI-5

O futuro ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, anunciado por Bolsonaro (Foto: Antonio Cruz/ABr)

O futuro ministro, anunciado por Bolsonaro, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro Pereira, declarou que o Ato Institucional nº 5 (AI-5), baixado pela ditadura há 50 anos, no dia 13/12/1968, foi necessário porque “não era possível seguir permitindo que as forças da comunização seguissem ganhando espaço por falta de instrumentos legais”.

Quem ganhava espaço naquela época era a oposição à ditadura, ou seja, as forças da democracia. Já voltaremos a esse tema, porém, antes, uma questão preliminar – ou quase isso, pois se confunde com a primeira.

O sr. Augusto Heleno, pelo visto, não sabe o que é um “instrumento legal”.

Pois, o que o AI-5 fez, exatamente ao contrário, foi suspender todos os instrumentos legais, a começar pela própria Constituição, mesmo aquela que a própria ditadura havia confeccionado e remendado duas vezes – e até o Código de Processo Penal.

O AI-5 abolia, desde o habeas corpus até o direito de propriedade para quem se opusesse ao regime, passando pelo direito a eleger e a ser eleito.

Isso, sem qualquer limite de prazo, colocando todo o país sob o arbítrio de um único cidadão: o que ocupasse o cargo de presidente (e não através de eleições, mas por desígnio ditatorial).

Pelo AI-5, o presidente era dotado dos seguintes poderes, em caráter absoluto (ou seja, sem que os atingidos pudessem recorrer à Justiça, sem que fosse possível ao Legislativo revogar esses poderes, e sem que fosse necessário, nem ao menos, alguma fundamentação das decisões):

1) decretar o fechamento do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por tempo indefinido, com o Executivo fazendo “leis” sem a necessidade de aprová-las no parlamento;

2) decretar a intervenção nos Estados e municípios;

3) cassar mandatos de deputados, senadores, vereadores, governadores e prefeitos;

4) demitir juízes sumariamente;

5) demitir qualquer funcionário;

6) suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão;

7) proibir qualquer cidadão de exercer a sua profissão;

8) confiscar os bens de qualquer cidadão;

9) suspender o direito do habeas corpus – ou seja, o direito de recorrer ao Judiciário contra uma punição ilegal ou injusta.

Pelo mesmo Ato, ficou instituída:

10) a censura prévia e arbitrária da imprensa escrita, da música, do cinema, do teatro, do rádio e da TV;

11) a proibição de todas as reuniões políticas não autorizadas pela polícia;

12) a suspensão completa do habeas corpus para “crimes políticos”, ou seja, para aquilo que a ditadura considerasse crime na oposição;

13) a proibição de que os “atos institucionais” pudessem ser apreciados pela Justiça.

Portanto, o AI-5 suspendeu as leis regulares, a começar pela Constituição, e tornava Poderes de fancaria tanto o Legislativo quanto o Judiciário (v. texto completo do AI-5).

A rigor, instituía um regime terrorista, cuja base era a tortura.

Daí a incomunicabilidade do preso por 10 dias, prorrogáveis por mais 10 dias, que, através do AI-5, foi introduzida na Lei de Segurança Nacional (v. texto completo da LSN após o AI-5, instituída pelo Decreto-Lei nº 898/1969).

Já foi observado que 10 dias é o dobro da incomunicabilidade permitida pelas leis feudais portuguesas, vigentes no Brasil Colônia; porém, além disso, esse prazo raramente era respeitado sob o AI-5.

Além disso, essa nova LSN, instituída por decreto-lei, introduzia a prisão perpétua e a pena de morte para “crimes políticos”.

PRESOS

O AI-5 era totalmente ilegal. Simplesmente, estava acima das leis – e as suprimia. Seu único fundamento era a força bruta – e assassina.

Disse o futuro ministro de Bolsonaro, Augusto Heleno, que o objetivo do AI-5 era combater “as forças da comunização”.

Que “forças da comunização”?

Logo no dia seguinte ao AI-5 – ou seja, no dia 14 de dezembro de 1968 – foi preso o jurista Sobral Pinto.

Sobral tinha, naquela época, 75 anos, era um conservador e anticomunista notório (até, às vezes, furioso – e digo isso porque sou testemunha ocular) e fora um tenaz adversário do governo João Goulart.

No entanto, Sobral Pinto era – e foi, até o fim – um defensor dos direitos humanos.

Por isso foi preso.

No mesmo dia, foi preso Carlos Lacerda, carranca de proa da direita dentro do Brasil durante todo o regime da Constituição de 1946 – e o maior agitador a favor do golpe de Estado de 1964.

Lacerda, porém, passara para a oposição.

Por isso foi preso.

As prisões, aliás, se encheram na noite e no dia seguinte ao AI-5 – e, na verdade, o único comunista registrado (e declarado) foi o ator Mário Lago, que estava trabalhando na TV Globo, quando foi preso. Chegou à prisão com os trajes do personagem que interpretava na novela “Passo dos Ventos” – por sinal, um vilão de nome Dubois.

Qual o crime de Mário Lago? Nenhum, exceto pensar diferente dos que mandaram prendê-lo.

Quanto ao então decano do Exército, general Peri Constant Bevilácqua, na época ministro do Superior Tribunal Militar (STM), foi afastado da função pelo AI-5 – e teve todas as suas condecorações anuladas, em janeiro de 1969.

O motivo pelo qual o neto de Benjamin Constant foi atingido pelo AI-5, disse depois um dos participantes dessa ignomínia, foi que “ele concedia habeas corpus demais”.

Bevilácqua, em seu posto no STM, fora contra a perseguição ao presidente João Goulart e a outras vítimas da ditadura.

O ex-presidente Juscelino Kubitschek foi preso ao sair do Teatro Municipal do Rio, na própria noite do AI-5. Juscelino já fora cassado e estava “sob investigação” desde 1964 – sem que os esbirros conseguissem encontrar algo para condená-lo.

Aliás, ficaria “sob investigação” até o final da vida, pois uma das invenções mais diabólicas, baseada no AI-5, foi transformar a antiga Comissão Geral de Investigações (CGI) em um órgão onde o investigado tinha de provar a sua inocência – ao invés dos acusadores provarem a culpa do acusado. Com essa regressão ao direito feudal, as investigações jamais acabavam.

Essa nova CGI foi criada quatro dias após o AI-5, pelo Decreto-lei 357, de 17/12/1968, com o objetivo explícito de confiscar bens de adversários políticos considerados “corruptos” (v. Diego Knack, “O combate à corrupção durante a ditadura militar por meio da Comissão Geral de Investigações (1968-1978)”, UFRJ, 2014).

A CGI acabou junto com o AI-5, em 1978, no governo Geisel.

Caetano Veloso e Gilberto Gil também foram presos no dia seguinte ao AI-5. Mas não devem ser essas as “forças da comunização” a que se referiu o sr. Augusto Heleno.

PREÂMBULO

Nos 10 anos em que existiu, pelo AI-5 foram cassados ou afastados do serviço público 1.500 brasileiros; foram proibidos 950 filmes e peças; mais de 10 mil cidadãos foram presos; milhares foram torturados; pelo menos 390 foram assassinados – 156 deles, brasileiros com menos de 30 anos; e 130 brasileiros foram banidos do Brasil (cf. Memorial da Democracia).

Três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – Vítor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima – foram afastados pelo AI-5 em janeiro de 1969. Em protesto, o presidente do Supremo, ministro Gonçalves de Oliveira, renunciou ao cargo e pediu aposentadoria.

Somente entre 1969 e 1973, 72 professores universitários e 61 pesquisadores foram cassados, afastados de sua atividade – e proibidos de exercer sua profissão.

Em fevereiro de 1969, com base no AI-5, a ditadura baixaria o Decreto-lei nº 477, pelo qual os estudantes foram proibidos de exercer qualquer atividade política, sob pena de expulsão e proibição a se matricular em outra instituição de ensino por três anos (v. texto do Decreto nº 477).

No Itamaraty, logo após o AI-5, 36 pessoas foram afastadas – inclusive um dos maiores poetas da História do país, Vinícius de Moraes.

Tudo isso foi perpetrado, segundo o preâmbulo do AI-5, para que se “assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana”.

Por isso, seus autores e mentores aniquilaram com qualquer resto de democracia e de liberdade existente no país, assim como permitiram qualquer desrespeito à dignidade da pessoa humana.

Daí, a menção de Ulysses Guimarães, ao promulgar a Constituição de 1988, três anos após a derrubada da ditadura:

“Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. (Muito bem! Palmas.)

“Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” (Muito bem! Palmas prolongadas.)

REPULSA

Mas, Ulysses e a oposição à ditadura não foram os únicos a considerar que o AI-5 era uma aberração.

O general Ernesto Geisel – que usou o AI-5 durante o seu governo, mas acabou por revogá-lo – chamou-o de “excrescência” (cf. Ernesto Geisel, orgs. Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, Rio, ed. FGV, 3ª ed., 1997, p. 422).

O general Golbery do Couto e Silva, a quem não se pode acusar de ojeriza à ditadura, em conversa com o então embaixador norte-americano, John Tuthill, considerou o AI-5 não apenas totalmente dispensável, como o achava obra de quem estava “vendo fantasmas”, e de um presidente (Costa e Silva) que “prefere distrair-se com filmes e conversas despreocupadas com amigos”; de um ministro da Justiça “maluco” (Gama e Silva); e com um objetivo espúrio: “muita gente tem contas pessoais a ajustar” (cf. telegrama do embaixador John Tuthill ao Departamento de Estado, 03/01/1969, publicado em OESP, 13/12/1998).

O AI-5 não foi baixado para combater supostas “forças da comunização”.

O AI-5 foi baixado porque o repúdio à ditadura era geral no país.

Se a ditadura tivesse apoio popular, não haveria motivo para acabar com a democracia – com os restos de democracia que sobreviveram ao golpe de 1964 – e implantar uma ditadura absoluta (ou que assim se pretendia) sobre o povo.

Queixou-se o sr. Augusto Heleno de que, em geral, os “excessos das forças do Estado são invariavelmente maximizados, enquanto as forças que desejavam transformar o Brasil em uma ditadura comunista são romantizadas”.

O que ele chama de “excessos das forças do Estado” são a tortura, os assassinatos – e outros acontecimentos menos trágicos, porém de ordem semelhante, provocados pela ditadura.

Quanto às “forças que desejavam transformar o Brasil em uma ditadura comunista”, são aquelas que resistiram à ditadura – ou seja, os que, de uma forma ou de outra, empreenderam o caminho da resistência democrática.

Não foi contra nenhuma tentativa de “transformar o Brasil em uma ditadura comunista” que o AI-5 foi baixado, naquela noite de 13 de dezembro de 1968.

O AI-5, como dissemos, foi baixado contra o povo – exatamente porque o povo não apoiava a ditadura. Pelo contrário, queria ver-se livre dela.

Daí, outra vez, a lembrança de Ulysses, na promulgação da Constituição:

O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou (palmas).

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram” (Muito bem! Palmas prolongadas).

C.L.

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