“O apagão recente, por exemplo, fez lembrar que uma transição energética é um processo gradual e complexo, arriscado, caro e que abarca muitos fatores ao longo de décadas”, alerta Marcos da Costa Cintra, Doutor em Energia pela USP e mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ
AUTOIMPERIALISMO E TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
MARCOS DA COSTA CINTRA*
De tempos em tempos, por força de alguma lei natural, surgem causas com poder mobilizador, ímpeto intelectual e força moral para moldar o mundo aos seus próprios valores. É o caso da mudança climática, que contagiou a sociedade com o propósito de combater as emissões de gases causadores de efeito estufa (GEE) através de uma transição energética de hidrocarbonetos para renováveis e eletrificação.
Lastreada no risco real de que o mundo viva uma catástrofe climática, a questão adquiriu dimensão quase religiosa. Após décadas de procrastinação das metas de descarbonização, um raio de fé é bem-vindo, mas há pedras no caminho.
O apagão recente, por exemplo, fez lembrar que uma transição energética é um processo gradual e complexo, arriscado, caro e que abarca muitos fatores ao longo de décadas. Esforços para reduzir a dependência de fósseis estão em curso, mas a velocidade e o êxito da transição dependerão da combinação de elementos técnicos, econômicos, políticos e culturais. E da vontade real dos países de adotar fontes de energia mais sustentáveis.
Nesse quadro, parece procedente refletir sobre a posição do Brasil na transição. Não faz sentido cada país só enxergar seus próprios interesses e marcharmos todos para o suicídio. Mas seria razoável uma nação abrir mão de explorar e produzir suas riquezas enquanto outras obtêm crescimento econômico e segurança energética apostando nas suas?
Quais os efeitos econômicos de desencadearmos uma obsolescência acelerada de ativos? É prudente apostar todas as fichas em tecnologias de energia limpa importadas, que dependem de metais e minerais com oferta limitada ou da qual a produção é dominada por poucos países? Seria aconselhável afastar-se da diversidade energética e arriscar-se incondicionalmente em renováveis que, se desacompanhadas dos atributos da geração firme, tornam o sistema vulnerável a apagões? Ao se voltar contra si próprio e adotar, sem reflexão, soluções externas, o Brasil comete uma espécie de autoimperialismo.
A geração termelétrica, que assegura confiabilidade ao setor elétrico e já o salvou tantas vezes, está sob vivo ataque; o petróleo, que estimula a economia e representou em 2022 13% das nossas exportações, com receitas de US$ 42,6 bilhões, vem sendo embarreirado, caso da Margem Equatorial e do fraturamento hidráulico; o carvão, que responde por 1,7% da geração de energia, foi demonizado. Parcela da sociedade, ignorando que baterias e hidrogênio não estão maduros para armazenamento e fornecimento de energia, desdenham até o gás natural, tido no mundo como o energético de transição.
Embora nossos esforços para reduzir emissões devam seguir firmes e crescentes, tal postura é injustificada no país que fez uma revolução verde e detém a matriz elétrica mais limpa do mundo, 86% renovável. Na matriz energética, ou seja, fontes para movimentar carros, preparar comida e gerar eletricidade, também nos sobressaímos com 55% de fósseis e 44% de renováveis, contra média global de 86% e 12% respectivamente. Como anda a transição no mundo e nos EUA, Europa e China, que concentram mais da metade do consumo global total de energia?
De 1975 a 2020, as renováveis reduziram a dependência global de fósseis de 95% da energia primária para 85%, uma queda de 10% em 45 anos. A transformação das majors de petróleo em companhias de energia e a eletrificação dos veículos projeta, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), um ritmo mais rápido, mas algo a ser conferido, afinal, consumimos hoje três vezes mais carvão que em 1960.
Impulsionados por subsídios, incentivos fiscais, clima político favorável, preferências de rede e vantagem nos financiamentos, os investimentos em renováveis superaram os do upstream de petróleo e gás. Ainda assim, de 70% a 75% do consumo global de energia primária em 2040 será fóssil, aponta a AIE.
Acelerar a descarbonização esbarra em fatores como: 1- penetração lenta de carros elétricos; 2- infraestrutura de transmissão e abastecimento; 3 – morosidade do sequestro geológico de carbono; 4 – demora na eletrificação industrial. O fato de as renováveis serem usadas majoritariamente para gerar eletricidade, cuja parcela do consumo final de energia global é só de 18%, ajuda a manter o uso direto de fósseis como motor do mundo.
Os fósseis são 80% da energia primária dos EUA. A geração de eletricidade a partir de renováveis contribui com apenas 18%. A eletrificação da indústria americana é só de 12% e nos transportes, quase inexistente. Grande parte da redução das emissões de CO2 nos EUA vem da substituição do carvão pelo gás, através da revolução do fra cking, que alterou a geopolítica e fez o país sair da condição de importador para exportador.
Apesar de a China ter eletrificado parcela maior de seu setor industrial que os EUA, a dependência significativa do carvão na geração de energia segue firme. Em relação aos EUA, a China utiliza dez vezes mais carvão do que gás e construiu, em 2020, o equivalente a uma grande usina de carvão por semana, somando três vezes mais capacidade de geração do que todos os países juntos.
A Europa está mais avançada em relação à integração de renováveis e nucleares à rede elétrica e na redução dos fósseis, mas o setor industrial mantém forte dependência dessas fontes. Em 2019 a eletrificação do setor de transportes era de apenas 1%. Apesar das metas ambiciosas, prevalece matriz energética fóssil: 35% petróleo, 24% gás, 17% renováveis, 13% nuclear e 12% carvão. A matriz elétrica é mais limpa: 39,4% de renováveis, 38,7% de fósseis e 21% de nuclear.
Os países se mostram pragmáticos ao aliar aos esforços para descarbonização o reconhecimento do papel das termelétricas a gás, carvão e nuclear e hidráulicas com reservatórios, essenciais até alcançarmos as mudanças comportamentais, políticas e estruturais necessárias para uma descarbonização profunda.
São exemplos que recomendam ao Brasil equilíbrio entre confiabilidade, acessibilidade e sustentabilidade na maneira como gera e usa a energia. A transição mudou estruturalmente o perfil de geração dos sistemas elétricos, mas eles continuam sistemas de potência, dependentes de fontes firmes.
Certa cegueira voluntária e o calor das controvérsias frequentemente solapam a construção de uma visão consensual mínima sobre a transição e o preço de sua realização. Livrar o Brasil do autoimperialismo e fazê-lo integrar crescimento das renováveis, segurança energética e exploração sustentável de suas riquezas parece requerer o restabelecimento da capacidade de coordenação do Estado, pois só se consegue fazer esforços constantes numa direção quando se tem uma visão clara de para onde se vai.
*Marcos da Costa Cintra é doutor em Energia pela USP e mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ. marcos.cintra@gmail.com.
Artigo reproduzido do Valor Econômico