O relato abaixo, de uma formatura no Instituto Rio-Branco – a escola do Itamaraty onde estudam, há décadas, os nossos futuros diplomatas – é algo que seria dantesco, se esse adjetivo não fosse digno demais para os tempos de Bolsonaro e do beato Salú (isto é, o seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo).
A palavra “escatológico” seria mais apropriada a essa aberração.
Mas essa conceituação é por nossa conta. Melhor faria o leitor em conferir a crônica de um dos presentes, abaixo, publicada no Jornal do Brasil, edição de 25 de outubro de 2020.
O seu autor, embaixador Adhemar Gabriel Bahadian é uma das figuras contemporâneas mais conhecidas de nossa diplomacia, pela cultura, competência e dedicação ao país.
Hoje aposentado, Bahadian foi representante do Brasil na delegação permanente em Genebra; representante permanente junto à Conferência do Desarmamento, aos órgãos das Nações Unidas e à Organização Mundial do Comércio (OMC); cônsul-geral em Buenos Aires; co-presidente brasileiro da reunião da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA); e embaixador do Brasil em Roma.
Além disso, foi chefe da Divisão de Comércio Internacional do Itamaraty; coordenador-executivo no gabinete do ministro das Relações Exteriores; chefe de gabinete e secretário-geral-adjunto na Secretaria-Geral das Relações Exteriores; e coordenador nacional na Cúpula das Américas.
É autor, entre outros trabalhos, de A Tentativa do Controle do Poder Econômico nas Nações Unidas (C.L.).
O Grande Despautério
À memória de San Thiago Dantas
EMBAIXADOR ADHEMAR BAHADIAN (*)
Imagine você, prezado leitor, estimada leitora, que seu filho ou sua neta o convide feliz da vida para assistir a formatura de sua turma no Instituto Rio-Branco. Você sabe quanto cada obstáculo representou na vida de seu filho ou de sua neta. O exame é reputado dos mais exigentes do Serviço Público brasileiro e ingressar no Itamaraty pressupõe anos de preparação árdua numa gama de matérias de nível superior, dentre as quais o domínio da língua portuguesa e da história do Brasil é comparável aos conhecimentos de nível de graduação universitária em Economia, Relações Internacionais, Direito Internacional, Administração Pública. Sem falar no domínio escrito e falado da língua inglesa e uma outra mais como o espanhol ou o chinês.
Sem favor, o Instituto Rio Branco adquiriu ao longo dos seus 75 anos o mesmo renome internacional das melhores universidades dos Estados Unidos da América, da Europa, da Ásia. Os jovens nele graduados saem com diploma oficial de Mestrado e não de meros bacharéis. E assim são reconhecidos nas Universidades estrangeiras.
Quando o Instituto Rio-Branco abriu seus cursos a candidatos estrangeiros acorreram estudantes de Diplomacia de todos os continentes, inclusive dos Estados Unidos da América.
Nos anos 80 e 90 os diplomatas brasileiros não raramente encontravam mundo afora, principalmente nos organismos multilaterais internacionais, ex-colegas do Rio-Branco que falavam português, amavam o Brasil e respeitavam nossa diplomacia. O chamado “soft-power” brasileiro começava no Instituto Rio-Branco e a reputação do diplomata brasileiro muito derivava de sua formação intelectual, da cotidiana defesa dos interesses brasileiros, do orgulho de pertencer a uma nação em ascensão cultural e econômica, com um Estado laico cujos integrantes entendiam e respeitavam a variedade de credos, desconheciam problemas do racismo segregacionista e sempre chamados como interlocutores privilegiados em não poucas querelas diplomáticas.
A este braço diplomático se juntava com igual dinamismo o papel de nossas Forças Armadas, cujos oficiais e soldados eram sempre requisitados pelas Forças de Paz das Nações Unidas por qualidades muito raras de se encontrar em forças estrangeiras, dentre as quais avulta a solidariedade do soldado brasileiro com as populações de países em meio a guerras civis ou ocupação estrangeira. São fatos conhecidos a datar da Segunda Guerra Mundial.
Descrevo o cenário de nossa diplomacia por décadas, com algumas dissonâncias, no período da ditadura militar no Brasil. Até neste período, o Brasil, principalmente durante o governo Geisel e depois dele, participou ativamente da Independência de países africanos de língua portuguesa, como Angola, quando o Chanceler Azeredo da Silveira, convenceu o príncipe da “realpolitik” americana, Kissinger, do acertado da posição brasileira. Assim se fazia diplomacia independente, sem medos nem subserviências.
No dia da formatura de sua neta, querida leitora, é normal seu ligeiro nervosismo e sua incontida alegria. Não é para menos. Aquela criança ainda ontem lhe perguntava o significado de uma palavra ou o sujeito oculto de uma oração, está ali entre outros jovens confiante numa vida inteiramente dedicada ao Brasil. Talvez, em poucos meses, sua neta poderia estar diante de uma plaqueta escrita “Brasil“ e, quando o presidente da reunião dissesse “com a palavra a distinta representante do Brasil”, a voz dela será a de 212 milhões de concidadãos. Em defesa de seus interesses econômicos, sociais ou constitucionais. E sempre em busca de um mundo melhor. Não será mais apenas sua neta. Será a neta de todas as avós brasileiras.
As fotografias nos celulares se multiplicam, os sorrisos se escancaram e frequentemente se entrecruzam olhares entre avó e neta, sabedoras da eterna cumplicidade de um amor infinito e de uma admiração mútua. Em ambas, se antecipa a saudade.
Empina-se no palco o Chanceler. E as palavras dele são como pedras mal-educadas, rudes e tingidas de ódio a um delirante passado da bela instituição em que ingressa sua neta. A diplomacia brasileira a partir dos anos 50 e 60 (anos da ditadura?) é chicoteada como em navio negreiro. Nossos diplomatas vivos e mortos são pintados de um vermelho de sangue, de traidores da Pátria, de interessados em implantar no Brasil uma ditadura do proletariado. E a associação entre Elite argentária e esquerdas totalitárias teria mergulhado o país na corrupção e no descalabro.
E o patrono, João Cabral de Melo Neto, diplomata escolhido pelos formandos para homenagear o centenário do nascimento do poeta e escultor da língua materna, é reduzido a pérfido comunista. Sem nenhum respeito a supostos fatos ocorridos quando o Chanceler fazia nas fraldas o que hoje esfrega diante de famílias reunidas para um dia de júbilo com seus filhos e netos. Um outro poeta, a ele diria: “vai ser gauche na vida”.
Normal também, querida leitora, sentir um desejo incontido de se lavar de tanta sujeira e deixar aquele ambiente sórdido de baixezas, em que a expressão “pária internacional”, dita pelo Chanceler, ressoa em seus ouvidos como zumbidos de vertigem.
E discretamente no carro, de volta para casa, com muito cuidado para não ser percebida pelo avô calado e de cara amarrada, você enxuga uma lágrima por sua neta.
(*) Diplomata aposentado