
Diretor do BC, o mais novo vira-latas a sair do armário, aponta três entraves para a desdolarização e aposta abertamente na hegemonia da moeda americana
O Banco Central, através de seu diretor de Política Monetária, Nilton David, abriu o jogo em declaração recente e se posicionou sobre um dos assuntos mais caros para os países que integram o BRICS: a redução da dependência do dólar nas transações do comércio internacional.
Segundo ele, apesar do avanço de diversas iniciativas, como a ampliação do uso de medas locais e sistemas próprios de pagamento, o bloco não reunirá força suficiente para quebrar a hegemonia do dólar.
Nilton David afirmou que não há atualmente um conjunto relevante de ativos denominados nas moedas dos BRICS capaz de rivalizar com a dominância global do dólar — e que essa realidade dificilmente mudará na próxima década, em contraste com a previsão de alguns dos principais líderes do BRICS de que, até 2035, será possível construir uma nova geopolítica no comércio internacional, em face de uma “desdolarização acelerada”.
Essa necessidade de acelerar a desdolarização surgiu, principalmente, depois que os EUA, sob Trump, resolveram apostar numa guerra comercial contra o mundo, através da imposição unilateral de novas tarifas e sobretarifas, inclusive a países que são tradicionais parceiros da Casa Branca.
O diretor sinalizou sobre como sistemas alternativos e acordos bilaterais podem reduzir parte do uso do dólar, mas, no horizonte visível, segundo ele, a supremacia da moeda americana permanecerá inabalável, apesar da decadência da economia americana, que passou, nas últimas décadas, por conta do hegemonismo dos monopólios financeiros e industriais, por um processo acelerado de desindustrialização.
Segundo ele, o primeiro obstáculo é a escala do mercado financeiro em dólar. Hoje, cerca de 58% das reservas internacionais mundiais estão denominadas na moeda americana, e mais de 80% das transações cambiais diárias envolvem o dólar como uma das pontas, aposta Nilton David, colocando descrédito na possibilidade do BRICS criar um mercado de capitais em fase de controles cambiais rígidos e barreiras na entrada de capital estrangeiro, mecanismos utilizados por alguns países diante da necessidade de se protegerem da especulação promovida por fundos de “investimento” e outras modalidades especulativas. Na esteira de seu raciocínio predominantemente financista, uma evidente subestimação do papel da economia chinesa e do bloco como um todo e de sua capacidade de promover a necessária inflexão para quebrar o monopólio do dólar.
O raciocínio do diretor, puramente monetarista, é manifestamente apartado da economia real. Diz ele: “Sem essa liquidez, empresas e governos tendem a evitar contratos de longo prazo em moedas alternativas, já que a volatilidade é maior e os custos de hedge (proteção cambial) ficam elevados”, como se a escalada exponencial da lógica financeira fosse absolutamente irrefreável.
Dados recentes demonstraram que a especulação promovida, fundamentalmente, através do dólar movimenta 36 vezes mais capital que a riqueza produzida no mundo. Foram trilhões emitidos em dólar ao longo das últimas décadas para alimentar o cassino diante do qual o diretor do BC prefere se conformar, ao invés de destacar a oportuna iniciativa do BRICS de buscar conter o capital parasitário que avilta interesses nacionais ao impor políticas restritivas aos investimentos públicos, com impactos deletérios na renda e no emprego decente e seguro e o consequente definhamento dos estados nacionais e suas políticas regulatórias.
O segundo entrave apontado pele diretor do BC é a “confiança dos investidores internacionais. O dólar não é dominante apenas por tradição, mas porque os EUA oferecem uma combinação única de Estado de Direito, estabilidade política, mercado financeiro robusto e regras claras de governança”, afirmou o mais novo vira-lata que saiu do armário.
“Confiança” de uma corja de “especuladores”, não de investidores, é preciso corrigir o diretor do BC, que acredita, pasmem, que os EUA são “uma combinação única de Estado de Direito, estabilidade política, mercado financeiro robusto e regras claras de governança”, rigorosamente o oposto que assistimos hoje na decadente economia do norte, e não apenas no tresloucado governo Trump, mas também em outros com roupagem democrática.
Mas, em um detalhe é preciso concordar com o sacripanta do Banco Central: de fato, os EUA são próceres na construção de uma “estabilidade política” à serviço dos megamonopólios financeiros, industriais, comerciais e, agora, mais recentemente, dos digitais que patrocinaram a campanha bilionária do atual inquilino da Casa Branca. Esse é o modelo de “Estado de Direito” e de “governança” exaltado pelo sr. Nilton David, ou seja, o modelo hoje sustentando pelo dinheiro fácil do rentismo e das big techs, promotoras de desigualdades sociais e regionais mundo afora, como nunca se viu na história da Humanidade.
De acordo com o diretor do BC, os países do BRICS apresentam “instabilidade política recorrente”, não os EUA, cuja história é marcada (e manchada) por assassinato de presidente e líderes políticos, intervenção permanente em assuntos internos de outras nações, assalto ao Capitólio, subjugação da justiça e monopólio político de dois únicos partidos, que divergem entre si sobre alguns assuntos domésticos, mas que se notabilizam na prática comum quando se trata de ameaçar e agredir países, inclusive – e principalmente – com o uso de tropas e armas, quando não se alinham aos seus interesses geopolíticos.
Para ele, a China e a Índia, por exemplo, embora economias de grande porte, não têm “transparência de dados, segurança jurídica e liberdade de movimentação de capitais”. Na sua ‘douta’ opinião, o BRICS deveria se arreganhar aos “capitais” voláteis que circulam pelo mundo e assegurar a “liberdade” de agir dos especuladores – um discurso muito parecido com o que ouvimos dos bolsonaristas quando se rebelam contra qualquer tipo de regulamentação das corporações digitais.
A viralatice, todavia, ainda não acabou.
Segundo o diretor do BC, há um terceiro obstáculo que está relacionado à infraestrutura técnica que sustenta o comércio internacional, hoje baseada no SWIFT e sistemas bancários correspondentes, dos quais países que tentam se libertar do dólar ainda dependem para suas transações de compensação e liquidação, questionando a capacidade do BRICS, cujo bloco já possui, atualmente, 40% da população e 37% do PIB mundial (em ascensão, diferentemente das economias americana e europeia), de construir alternativas e soluções em direção oposta. Trata-se de uma adaptação tecnológica que têm custos e pode levar algum tempo, mas o custo maior tem sido a ausência de mecanismos por parte de estados nacionais diante dos constantes ataques especulativos baseados no dólar.
O BRICS — formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e recentemente ampliado com países como Egito, Irã e Arábia Saudita — busca há anos caminhos para diminuir o peso do dólar nas transações internacionais. Entre as propostas estão a criação de uma moeda única, o fortalecimento do comércio bilateral em moedas locais e a implementação de sistemas de compensação financeira independentes do SWIFT, a rede global dominada por instituições dominadas pelo rentismo e o capital parasitário.
Na contramão desse posicionamento do BC, o Brasil do presidente Lula tem participado de projetos de incentivo ao uso de moedas locais no comércio internacional. Um exemplo é o acordo com a Argentina para permitir transações em reais e pesos sem a necessidade da conversão para o dólar.
O Drex, moeda digital do próprio BC, atualmente em fase piloto, também é visto como uma ferramenta potencial para pagamentos internacionais rápidos e baratos — embora, no momento, esteja focado no mercado interno.
O fato é que a manutenção do dólar como moeda dominante é tudo que os EUA querem, ou melhor, é uma questão vital para que o capital especulativo continue exercendo sua hegemonia na economia global, seja através de sanções financeiras, variações nas taxas de juros definidas pelo Federal Reserve e movimentos especulativos no mercado de títulos do Tesouro americano, influenciando negativamente as economias dos países emergentes.
Para o BRICS, isso representa a necessidade de adotar uma estratégia de longo prazo, combinando investimentos em infraestrutura financeira, reformas institucionais e expansão das reservas em moedas alternativas, como o yuan, o rublo e, até mesmo, o ouro, como acaba de defender o presidente russo Vladimir Pútin.
A proposta foi apresentada pelo Kremlin como alternativa aos mecanismos financeiros, como o SWIFT, e em resposta direta às sanções econômicas impostas desde 2022 à Rússia pelos Estados Unidos e a Europa Ocidental.
Segundo o economista Sergey Glazyev, da União Econômica da Eurásia, o plano prevê um “BRICS Pay” lastreado em ouro, no qual as transações seriam protegidas contra volatilidade cambial e bloqueios políticos.
Por isso, é compreensível a narrativa – e o esperneio – do sr. Nilton David frente à inexorabilidade dessa tendência mundial. Afinal, ele é, hoje, ao lado de Gabriel Galípolo e demais integrantes da diretoria do órgão, responsável pela sustentação de uma das maiores taxas reais de juros do mundo, a mesma que alimenta o cassino internacional com o qual o diretor está tão preocupado.
Marco Campanella