A tese do relatório do Banco Mundial, encomendado pelo governo Dilma, é que o investimento público – em Educação, Saúde, Previdência ou em qualquer outra área – somente beneficia privilegiados ou cria privilégios. Portanto, é preciso cortar todas as verbas públicas, deixar o povo sem nada, para que não haja privilégios. Aí, o dinheiro poderá ir para o “ajuste fiscal”, isto é, para os bancos e outros receptadores do setor financeiro, sobretudo sob a forma de juros. Drenado para os especuladores, sobretudo os estrangeiros, o dinheiro público, assim privatizado – isto é, roubado -, não cria mais privilégios. Que haja quem incense esse relatório na TV, apenas mostra que o reacionarismo é inseparável da debilidade mental. Um homem – ou mulher – sem pátria é sempre uma nulidade.
O suposto estudo – pois não se pode chamá-lo assim – do Banco Mundial, com a descoberta de que o Estado, no Brasil, gasta muito e errado, foi encomendado pelo governo Dilma, em 2015.
Não há, em suas 160 páginas, nada além de um panfleto neoliberal, muitas vezes com dados grosseiramente falsificados (por exemplo: “70% dos beneficiários do BPC e 76% dos beneficiários das aposentadorias rurais não pertencem ao grupo dos 40% mais pobres” [os beneficiários do BPC têm renda familiar até ¼ do salário mínimo; e nem falemos dos aposentados rurais]; outro exemplo: “o nível dos salários dos servidores federais é, em média, 67% superior aos do setor privado”[não é necessário comentar]).
O fato dessa obra – intitulada “Um Ajuste Justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil” – ser, no momento, a peça principal de propaganda para enfiar o ataque da Previdência no Congresso, sendo martelada nas TVs, nos jornais e no escambau, mostra como a debilidade mental é inseparável do reacionarismo, isto é, inseparável da falta de identificação com o Brasil, com os seres humanos.
A tese é que o investimento público, o gasto público com o povo – em Educação, Saúde, Previdência ou lá em que seja – somente serve para beneficiar privilegiados ou criar privilégios. Portanto, é preciso cortar as verbas e deixar o povo sem nada, para que não haja privilégios.
Mas, para onde irá esse dinheiro, depois de cortadas as verbas do atendimento ao povo? O relatório responde: para a “consolidação fiscal” ou “ajuste fiscal” (cf., op. cit., pp. 21-38).
Em suma, o dinheiro iria para os bancos e outros bandidos do setor financeiro, sobretudo sob a forma de juros, para aumentar a parcela da renda e da produção do país de que eles se apropriam. É isso o que eles chamam de “ajuste” ou “consolidação” fiscal.
Assim, o Banco Mundial combate os “privilégios”: entregando o dinheiro do povo ao setor financeiro – que, claro, não tem privilégios…
Tomemos, antes de entrar na Previdência, outro exemplo.
O que dizer de um “documento” que afirma, com todas as letras, que o problema da educação no Brasil é o excesso de verbas, o excesso de recursos públicos destinados à educação (excesso que, diz o Banco Mundial, “é uma das principais causas da ineficiência dos gastos” com educação)?
O Brasil, note o leitor, “tem um dos menores gastos por aluno (…) o gasto na educação básica, por aluno, é menos da metade da média dos países da UE e menos da metade da média dos países da OCDE” (cf. A pobreza da Educação x A Educação da pobreza, América do Sol nº 3, 26/10/2016).
Mas o Banco Mundial não apenas acha que é muito, como excessivo. Por isso, propõe, para “aumentar a eficiência”, um corte de 37% nas verbas para o Ensino Fundamental e um corte de 47% nas verbas do Ensino Médio.
Além disso, propõe que as já superlotadas turmas do Ensino Fundamental aumentem seu número de alunos em 33% e as turmas, também já superlotadas, do Ensino Médio, aumentem em 41% o número de alunos (cf. Banco Mundial, idem, p. 13).
Não precisamos lembrar ao leitor – sobretudo aos que têm filhos – qual é o estado atual da educação no Brasil. Nem como ela ficaria depois dessas sábias reformas para aumentar a sua eficiência.
É assim que o Banco Mundial quer “combater privilégios”. Sempre tirando as verbas, os recursos, do povo, dos pobres – mesmo quando esses recursos são mínimos –, transferindo-os para os ricos, de preferência para aqueles que agasalham-se em Wall Street e outros lugares suspeitos.
Quanto à Previdência, principal prato que essa máfia financeira pretende comer, vejamos esse trecho:
“… o sistema previdenciário atual é injusto, pois 35% dos subsídios previdenciários (ou seja, o desequilíbrio entre contribuições e benefícios do sistema previdenciário) beneficiam os 20% mais ricos, ao passo que somente 18% dos subsídios beneficiam os 40% mais pobres da população”.
“Subsídio previdenciário” é outra forma de dizer que existe um “déficit da Previdência”, como se a população estivesse pagando por uns poucos – o que não é verdade. Mas, detenhamo-nos nessa história dos “20% mais ricos” e dos “40% mais pobres”.
No Brasil, segundo o Censo de 2010 (hoje a situação é pior), somente 0,45% da população percebem mais que 20 salários mínimos ao mês (e somente 0,17% recebem mais que 30 salários mínimos). Quem recebe mais de dois salários mínimos está incluído entre os 20% que recebem mais. Porque 83,43% da população recebe até dois salários mínimos (cf. IBGE, Censo Demográfico 2010, Características da população e dos domicílios – Resultados do universo – Tabela 1.8.1).
Portanto, não tem o menor sentido falar em “20% mais ricos”, porque a maior parte desses são pobres; não são poucos os que nem chegam aos três salários mínimos. Também não tem sentido falar em “40% mais pobres”, em um país onde mais de 80% recebe, no máximo, dois mínimos..
Esses “20% mais ricos” e “40% mais pobres”, portanto, são uma falsificação da realidade. Só foram introduzidos no texto do Banco Mundial para fabricar “privilégios” que não existem. Ou seja, para enganar aos incautos.
Agora, vejamos esse outro trecho do relatório:
“O sistema previdenciário atual é generoso para padrões internacionais [porque] a maioria dos trabalhadores ao fim de sua vida laboral recebe uma renda previdenciária equivalente a seu último salário (aposentadoria integral)” (cf. Banco Mundial, idem, p. 70, grifo nosso).
O trecho nos pareceu tão lunático e mentiroso, que tivemos de ler várias vezes o conjunto do texto. A explicação encontra-se em uma nota, ao pé da mesma página: “a aposentadoria mínima é indexada ao salário mínimo e garante uma taxa de reposição de 100% para os trabalhadores formais de baixa renda, bem como para os trabalhadores rurais” (grifo nosso).
Ou seja, o Banco Mundial considera que é um privilégio o trabalhador que ganha um salário mínimo, receber, como aposentadoria, um salário mínimo.
Esse é o privilégio que o Banco Mundial é contra: aquele dos que recebem um salário mínimo!
O relatório, aliás, deixa isso ainda mais claro em outro trecho:
“Para solucionar o déficit remanescente do RGPS, as seguintes medidas deveriam ser consideradas: – Reduzir ainda mais as taxas de reposição [ou seja, reduzir “ainda mais” as aposentadorias em relação ao salário que o trabalhador recebia antes de se aposentar]; – Desvincular o valor mínimo de aposentadoria do salário mínimo” (idem, p. 9, grifo nosso).
Ou seja, propõe-se um ataque contra as aposentadorias dos mais pobres entre os aposentados e entre os trabalhadores com vínculo empregatício: os que ganham apenas um salário mínimo.
Há mais, porém deixaremos para a próxima.
CARLOS LOPES