LUÍSA LOPES
Agora se tornou comum tentar politizar um produto do entretenimento para tornar aceitável poder assisti-lo. Notem que o mesmo acontece antes da estreia de uma nova edição de Big Brother Brasil. Se discute os novos integrantes, comemora-se a quantidade de negros, de pessoas LGBT, divide-se politicamente a “patota” toda antes mesmo de sua estreia, como se o programa fosse capaz de alterar significativamente alguma coisa no quadro social e político no Brasil, ao invés de ser apenas um produto televisivo.
Não é nossa intenção aqui fazer juízo de valor sobre o reality (mas, se alguém perguntar, diríamos que valor está em falta no referido programa). A intenção é apenas estabelecer que um programa, às vezes, é só um programa, sem necessidade de ser politizado para justificar a sua audiência. Cada um no seu quadrado e a energia da politização deveria ser guardada para outros campos da vida, que não seja aquele que talvez seja seu único momento de descanso, após um dia cansativo de trabalho.
Não é surpresa, diante disso, que o marketing do filme “Barbie” também tenha surfado no debate político acalorado das redes sociais – se é que se pode dizer que há debate em rede social – e ajudado a levar mais de 8 milhões de pessoas aos cinemas de um Brasil pós-pandêmico, que enfrenta o fechamento de salas de cinema por falta de público. É claro que milhões de dólares e a ocupação de mais de 60% das salas também contribuíram para esse sucesso.
O problema é que, diferente de Big Brother e de outros produtos, cujo fogo se acende mais por conta de algumas polêmicas, mas costuma se apagar sozinho, “Barbie” realmente entrou na discussão política e se desenquadrou do estilo de filme hollywoodiano de entretenimento. Ou inaugurou um novo estilo. Nota-se que, por “entretenimento”, não nos referimos a qualquer filme lançado por Hollywood, onde também se faz filme muito bom. O próprio “Barbie” poderia ser excelente se mantivesse seu mundo de fantasia e não se metesse a tentar se adequar à farofa cultural dos últimos tempos. Ao tentar se adequar e até mesmo a ditar regras, “Barbie” se perde e se torna incômodo.
Quando uma obra se propõe a discutir temas do “mundo real”, ela abandona seu critério de fantasia e obrigatoriamente se torna um filme político, ainda que de forma enviesada. Discutir feminismo em uma comédia não é errado. Pelo contrário, a comédia tende a ser mais forte até do que um drama. É o caso, por exemplo, da série “Todo Mundo Odeia o Chris”, uma das favoritas desta que escreve. Porém, se uma grande produção se propõe a tocar em certos assuntos, aliás, se apropriar desses assuntos e explorá-los com o único fim de gerar bilheteria, é de extrema importância que, ao invés de agradecer pela “visibilidade” (sim, entre aspas), a gente dê um passo para trás e procure observar com cautela no que isso pode acarretar, de bom ou ruim, na movimentação política.
“Barbie” utiliza o feminismo como uma ferramenta pesada de marketing e o explora de forma exaustiva. O discurso superficial acalenta a consciência de alguns espectadores mas, é claro, tem como limite o próprio discurso, não se preocupando com meios e fins ou porquês. Se a palavra “patriarcado” é pronunciada pelo menos umas dez vezes durante o filme (seria um deboche?), a palavra “luta” é inexistente, pois não é esse tipo de filme. Ao estabelecer que nenhum de seus personagens masculinos pode ser dotado de decência ou de qualquer outro aspecto realmente positivo (em sua maioria, os homens ali são retratados como seres intelectualmente inferiores), “Barbie” define que não há uma luta por igualdade no filme ou fora dele, mas sim uma superioridade feminina, em detrimento dos homens.
Este modesto texto não se propõe aqui a fazer uma defesa dos homens, pois isso seria mais uma banalidade em uma discussão que já se propõe a fazer uma dicotomia tosca entre opiniões contrárias (a conversa a respeito do filme pairou no embate “homens X mulheres”, “direita X esquerda”, “quem está incomodado com o filme é porque é machista e bolsonarista”, sem conseguir avançar muito). Vou ter que confiar que o leitor é capaz de perceber que a vida, infelizmente, não é assim tão simples. A lógica humana possui suas complexidades. Afinal, não seria essa uma definição de diversidade?
É possível identificar mais um problema que não deveria ser reproduzido na vida real: a ideia de que todos os homens são igualmente culpados pela condição feminina. Seria Ken – um boneco, como a Barbie – tão culpado quanto o presidente da Mattel, retratado como um homem ambicioso, porém tapado e engraçadinho, que é quem decide qual boneca é mais lucrativa e tem, no fundo, o real domínio da Barbielândia, que se auto-declara governada por mulheres? Inferiorizar os homens, precisar colocá-los abaixo na raça humana, estabelecer que todos eles têm igual nível de culpa no quadro geral, pode ser um tiro no pé: coloca o homem logo ali no centro da luta feminista, onde ele jamais deveria estar. Mais do que isso, me coloca uma dúvida crucial para o avanço da sociedade: por que, para conquistarmos respeito e direitos, é necessário que nos desloquemos da condição de oprimidas para o de opressoras? De qualquer forma, repito, a supremacia feminina em “Barbie” é falsa: fica claro que os reais comandantes são os diretores da Mattel. Homens.
Se o leitor conseguir abstrair de tais elementos, “Barbie” será um bom passatempo. Infelizmente, a pessoa que escreve não foi capaz de tal façanha.
Confesso que me indignei com a opressão em buscar um filme e somente encontrar horários variados para Barbie e Oppenheimer em muiiiiiiiitassss buscas. Decidi não assistir no ultimo final de semana.
Agora, diante deste texto tão bem elaborado, talvez me motive.
Sem ter nenhum compromisso em abstrair os relevantes elementos apontados.
Obrigada, LUÍSA LOPES.