MARIO DRUMOND
Quando Lorenzo Fernandez estreou a suíte sinfônica Reisado do Pastoreio, em 1930, no Rio de Janeiro, houve um alvoroço na plateia após a execução do terceiro e último movimento, intitulado Batuque. Nele, destacando-o dos movimentos anteriores, o compositor concebeu uma exuberante orquestração sobre o ritmo feroz e obsessivo das batidas típicas do que então se conhecia no vulgo como “dança negra” (termo este que sub titulava a peça), num estilo marcadamente modernista e ousado que já se manifestava nas vanguardas artísticas da época.
Foi tal a surpresa e o impacto causado que a peça passou a ter vida própria e independente dos demais movimentos da suíte – e permanece assim nos programas orquestrais -, como também por seu apelo e utilização como matéria musical das outras artes.
Dentre estas, se tornaram célebres a coreografia de Eros Volúsia para o filme documentário Rainhas do Bailado (realização da década de 1940, atribuída a Milton Rodrigues) e a animação cinematográfica do artista plástico Still (também intitulada Batuque), muito popular na década de 1970 por ter sido projetada nos cinemas do país quando vigorava a legislação que obrigava a exibição de curtas metragens nacionais antes de filmes estrangeiros em cartaz.
É notório que alguns coreógrafos brasileiros, ao longo da história, trabalharam a peça. Apesar da exígua documentação conservada para a pesquisa histórica no Brasil, sobrevive o registro de que o gaúcho Carlos Leite, quando radicado em Belo Horizonte, levou à cena sua coreografia de Batuque, também na década de 1970, no Teatro Francisco Nunes (*).
Em sua longa carreira profissional de bailarina, coreógrafa e pesquisadora de dança, Izabel Costa também havia sido atraída pela peça, mas foi ao encontrá-la, via web, num vídeo de boa qualidade audiovisual, com a interpretação da Orquestra Simón Bolívar da Venezuela, sob a regência do brasileiro Marcelo Leninhger, que se decidiu por elaborar este trabalho.
Em sua composição coreográfica, enxuta de meios e recursos cênicos e a partir de um par de seus alunos profissionais, Izabel interpreta a riqueza musical de Batuque, muito bem executada pela vibrante moçada venezuelana sob o vigor da batuta de um também jovem e inspirado maestro, contrapondo-a com a riqueza gestual do povo brasileiro, que é dançarino por natureza. E, unindo-os aos legados e conquistas da dança moderna e contemporânea (dos quais é fiel discípula e mestra desde seus inícios como bailarina), logrou uma feliz síntese da dança brasileira abrangendo-a nos mais remotos limites, do antigo mais antigo (mas que foi novo) ao moderno mais moderno (que é o novo mais novo).
Um movimentado painel resolvido como unidade coreográfica capaz de expressar, com simplicidade e fluência de comunicação, ícones relevantes da arquitetura e da história da arte da dança no Brasil. Expressões de corpo e alma que se eternizaram nas lapas rupestres, que se herdaram das culturas indígenas e afro-americanas – dabacuris, batuques, umbandas, capoeiras, maracatus e outras danças populares -, se fundem, nesta criação coreográfica, com as que nos vieram importadas da cultura europeia, as clássicas e as modernas, juntando-se ao caldeirão cultural do vasto continente latino-americano.
As performances dos dois jovens bailarinos, Matheus Santos e Nathália Dan, responderam às difíceis exigências da composição coreográfica (e da sua autora), numa interpretação a que se acrescentou o elemento de dramaturgia proposto como argumento (a dialética da paixão dentro do conflito), resultando em uma encenação profissional vigorosa, levada a cabo com garra, seriedade e nobreza artística.
A partir das câmeras ágeis e precisas de Leo Drumond, das boas imagens colhidas pela televisão venezuelana nos concertos de suas famosas orquestras, da competência técnica e sensibilidade do editor Rodrigo Piteco, a montagem deste vídeo foi feita enfrentando aquilo que chamamos de bom problema, que é o de eleger, entre tanto material de qualidade, os que se exibiriam nos seus cinco minutos de duração. Os recursos tecnológicos atuais permitiram-nos simular visualmente a orquestra tocando, como se ao vivo, para os bailarinos, o que pelo menos do ponto de vista desses últimos não deixa de ser verdadeiro, e que, além do mais e neste caso, agregou à montagem interessantes efeitos de atração audiovisual.
A coreógrafa dedicou este trabalho, com justiça, ao seu amigo e companheiro-orientador de pesquisas, o falecido cineasta Elyseu Visconti Cavalleiro, cuja obra foi em boa parte dedicada a importantes registros cinematográficos de danças populares no Brasil.
Os realizadores deste vídeo agradecem e rendem homenagens à obra e à memória do grande compositor brasileiro Lorenzo Fernández (1897 – 1948) e ao SISTEMA DE ORQUESTRAS DA VENEZUELA, na memória de seu fundador e diretor eterno Maestro José Antonio Abreu (1939 – 2018).
(*) agradecimentos ao coreógrafo Tíndaro Silvano, que conserva o programa do espetáculo citado, do qual participou atuando no elenco de bailarinos.