“Isto não é música; é agitação política. Ele está nos dizendo: o mundo que temos não é bom. Vamos mudar isso! Vamos lá!”, disse o maestro Nikolaus Harnancourt, sobre a Quinta Sinfonia
Nas comemorações dos 250 anos do nascimento de Ludwig Beethoven, o HP segue com suas homenagens a este que foi um dos maiores compositores da Humanidade.
Depois de publicarmos “Beethoven, o compositor da igualdade e fraternidade”, um verdadeiro passeio através da Nona Sinfonia, de Jenny Farrell, publicamos agora “Beethoven e os tempos revolucionários”, do escritor e economista inglês Michael Roberts. Esse último autor nos apresenta um Beethoven inteiramente ligado aos acontecimentos políticos de seu tempo.
Boa leitura!
Beethoven e os tempos revolucionários
MICHAEL ROBERTS (*)
Estamos no aniversário de 250 anos do nascimento de Ludwig Beethoven. Ele teria vindo ao mundo em 16 ou 17 de dezembro de 1770; ninguém tinha certeza, incluindo o próprio Beethoven. Ele é considerado o mais musicalmente revolucionário dos compositores “clássicos”. E, em minha opinião, isso não foi um acidente da história, porque Beethoven foi um homem de seu tempo.
“Beethoven foi um homem de seu tempo”
Beethoven nasceu na época do que foi chamado de ‘iluminismo’, quando o pensamento europeu rompeu com a subserviência à religião e à monarquia e ergueu a bandeira do pensamento livre, da ciência e da democracia – e houve os primeiros vislumbres de uma nova ordem econômica baseado no “livre comércio e concorrência”. Adam Smith publicou sua obra seminal, The Wealth of Nations (A riqueza das Nações), quando Beethoven tinha seis anos. E aconteceu a guerra de independência americana, na qual os ex-colonos britânicos romperam com a monarquia britânica, com o apoio financeiro e militar da França, para estabelecer uma república com direito a voto, exercido já no mesmo ano.
Na minha opinião, a jornada musical de Beethoven balançou com os altos e baixos deste tempo revolucionário que continuou ao longo de sua vida, mas particularmente com o fluxo e refluxo da revolução francesa que acabou com a monarquia, os direitos feudais e proclamou a igualdade, liberdade e fraternidade para todos (os homens). Quando adolescente, Beethoven, como muitos outros jovens “médios” na Europa, foi um grande apoiador da revolução desde o início.
Filho de um músico de família de origem flamenga, seu pai, Johann, trabalhava para a corte do Arcebispo-Eleitor de Bonn, na Alemanha. Ele fez sua primeira apresentação pública aos sete anos e mudou-se para Viena em 1792 para estudar com Joseph Haydn, que, com Mozart (falecido no ano anterior aos 35 anos), moldou a tradição musical da cidade.
BEETHOVEN ADOTOU AS IDEIAS DE LIBERDADE
Viena estava sob o domínio do império absolutista Habsburgo. Mas Beethoven estava envolto em ideias napoleônicas de liberdade. Ele se tornou um republicano convicto e, tanto em suas cartas quanto em suas conversas, falava frequentemente da importância da liberdade. Ele não se importava com a realeza. Para um de seus primeiros patronos, o Príncipe Karl Lichnowsky, Beethoven escreveu: “Príncipe, o que você é, você nasceu por acidente; o que eu sou, eu sou de mim mesmo”.
Para um de seus primeiros patronos, o Príncipe Karl Lichnowsky, Beethoven escreveu: “Príncipe, o que você é, você nasceu por acidente; o que eu sou, eu sou de mim mesmo”.
O monarca austríaco, Franz II, alegadamente se recusou a ter qualquer coisa a ver com Beethoven, com base em que havia “algo de revolucionário na música”. E a amizade do compositor com o grande escritor e poeta alemão Goethe terminou abruptamente em 1812 quando, caminhando juntos no parque, encontraram a Imperatriz Austríaca. Goethe curvou-se subserviente; Beethoven deu as costas com desdém.
Este espírito revolucionário habita grande parte de sua obra. Ele impulsionou a música para esta nova era. Reunindo o poder poético da cena literária alemã e as canções da revolução francesa, ele mudou completamente o que a música poderia ser. “Beethoven é amigo e contemporâneo da Revolução Francesa, e ele permaneceu fiel a ela mesmo quando, durante a ditadura jacobina, humanitários com nervos fracos do tipo Schiller a abandonaram, preferindo destruir tiranos no palco com a ajuda de espadas de papelão. Beethoven, aquele gênio plebeu, que orgulhosamente deu as costas a imperadores, príncipes e magnatas – esse é o Beethoven que amamos por seu otimismo inexpugnável, sua tristeza viril, pelo pathos inspirado de sua luta e por sua vontade de ferro que o capacitou a agarrar o destino pela garganta” – (Igor Stravinsky). Beethoven mudou a maneira como a música era composta e ouvida. Sua música não acalma, mas choca e perturba.
“Beethoven é amigo e contemporâneo da Revolução Francesa” (Igor Stravinsky)
Acho que podemos dividir a obra musical de Beethoven em quatro períodos que correspondem aos altos e baixos econômicos e sociais de sua vida. Ele teve a época de três grandes revoluções burguesas: a industrial na Inglaterra; a política na França; e a filosófica na Alemanha. O primeiro período de sua vida como menino e depois como jovem adulto foi durante uma ascensão revolucionária na Europa; mas também uma nova ascensão econômica no desenvolvimento capitalista, levando ao ápice da revolução francesa com a ascensão da administração jacobina radical em 1792, quando Beethoven tinha 22 anos.
O segundo período de 1794 a 1815 foi realmente um retrocesso para a revolução na França, pois os jacobinos foram derrubados e o herói da defesa militar do governo revolucionário, Napoleão Bonaparte, tornou-se ditador. Mas isso também significou que os exércitos de Napoleão tomaram as ideias e leis da revolução francesa em toda a Europa, derrubando as monarquias absolutas semifeudais reacionárias da Áustria, Espanha, Itália e Prússia. Suas vitórias fizeram dele um ídolo aos olhos de Beethoven.
Foi nesse período que um Beethoven em amadurecimento compôs algumas de suas maiores obras. Sua magnífica 5 ª sinfonia é cheia de referências à música da revolução. Em sua composição, Beethoven observa que sua sinfonia expressa as palavras escritas sobre o líder revolucionário francês assassinado Jean-Paul Marat “Juramos, de espada na mão, morrer pela república e pelos direitos humanos”. Sua única ópera, Fidelio, conta a história de uma mulher solitária libertando seu marido, um prisioneiro político, de uma prisão espanhola (o cenário foi transferido da França por motivos políticos, motivos que incluíam seu ódio ao regime na Espanha).
“Juramos, de espada na mão, morrer pela república e pelos direitos humanos”
Um espírito revolucionário move todas as barras da Quinta. Os famosos compassos de abertura desta obra são talvez a abertura mais marcante de qualquer obra musical da história. Por coincidência, eles são o equivalente musical do sinal em código Morse para “V” que significa vitória, usado para reunir o povo francês na luta contra os ocupantes alemães na 2ª Guerra Mundial. “Isto não é música; é agitação política. Ele está nos dizendo: o mundo que temos não é bom. Vamos mudar isso! Vamos lá!” – (Nikolaus Harnancourt, maestro).
Outro famoso maestro e musicólogo, John Elliot Gardener, descobriu que todos os temas principais das sinfonias de Beethoven são baseados em canções revolucionárias francesas. O “grito de alarme”, “Marchons, marchons” de “La Marseillaise”, o apelo da Revolução Francesa, ecoa nos acordes de abertura da sinfonia “Eroica”. O Quinto Concerto para Piano (“Imperador”) exala “energia militar”. As passagens da trombeta em Fidelio ecoam aquelas no Messias de Handel que ocorrem sob a linha vocal “a trombeta soará … e todos seremos transformados ”.
Mas esse grande período de energia musical foi cada vez mais prejudicado pela terrível e tortuosa doença de Beethoven, à medida que ele ia ficando surdo, possivelmente com um tipo de meningite – que afetava sua audição. Isso começou quando ele tinha 28 anos e estava no auge de sua fama. Embora ele não tenha ficado completamente surdo até os últimos anos, a consciência de sua condição deteriorada o tornou imprevisível, deprimido e até suicida.
Houve também uma deterioração na economia da Europa a partir de 1805, começando com o bloqueio das conquistas da França pelo poder naval britânico após a vitória de sua marinha em Trafalgar, criando uma crescente escassez de alimentos e produtos básicos. E Beethoven também estava deprimido com os acontecimentos políticos desse período. Ele havia dedicado sua 3ª sinfonia a Napoleão. Mas, em 1802 a opinião de Beethoven sobre Napoleão estava começando a mudar. Em uma carta a um amigo escrita naquele ano, ele escreveu indignado: “Tudo está tentando deslizar de volta para a velha rotina depois que Napoleão assinou a Concordata com o Papa”. A admiração de Beethoven finalmente se transformou em ressentimento quando Napoleão se declarou imperador em 1804. Quando Beethoven recebeu a notícia desses eventos, ele riscou furiosamente sua dedicação a Napoleão na partitura de sua nova sinfonia. O manuscrito ainda existe e podemos ver que ele atacou a página com tanta violência que fez um buraco através dela. Ele então dedicou a sinfonia a um herói anônimo da revolução: tornou-se a sinfonia “Eroica”.
O terceiro período da vida musical de Beethoven correspondeu a um período de profunda reação e uma crise chocante nas economias europeias. Com a derrota de Napoleão em 1815 e com as antigas monarquias restauradas na Europa, Beethoven estava em desespero, compondo pouco. Em todos os lugares o pensamento progressista estava em retirada: os grandes poetas românticos da Inglaterra vitoriosa, Shelley e Byron, foram forçados ao exílio. Mary Shelley escreveu Frankenstein, um romance que se desespera tanto com a superstição preconceituosa e o racismo quanto com o antagonismo em relação ao industrialismo científico descontrolado da economia capitalista em ascensão. Este foi o fim do romantismo e da revolução e agora era a hora de como David Ricardo, mais ou menos da mesma idade de Beethoven, que em 1817 escreveu seus Princípios de Economia Política e Tributação, a obra definitiva da economia burguesa, uma ode ao capitalismo.
NONA SINFONIA: A MARSELHESA DA HUMANIDADE
Os anos 1816-19 foram terríveis para os europeus, não muito diferentes deste ano da COVID em 2020. A economia europeia entrou em inverno permanente, tanto literal como economicamente. 1816 é conhecido como o ‘Ano Sem Verão’ (também o Ano da Pobreza) devido a graves anormalidades climáticas que fizeram com que as temperaturas na Europa caíssem para o maior frio já registrado. Houve colheitas fracassadas. Isso resultou em grande escassez de alimentos. Na Alemanha, a crise foi severa. Os preços dos alimentos aumentaram acentuadamente em toda a Europa. Embora os distúrbios fossem comuns em tempos de fome, os distúrbios por comida de 1816 e 1817 registraram os mais altos níveis de violência cívica desde a Revolução Francesa. Foi a pior fome da Europa continental no século XIX.
Sufocando na atmosfera reacionária de Viena e desesperado por qualquer mudança para melhor, Beethoven escreveu: “Enquanto os austríacos tiverem sua cerveja marrom e salsichas, eles nunca se revoltarão”.
No entanto, a década final da vida de Beethoven, a partir de 1820, viu um renascimento na economia europeia, à medida que o modo de produção capitalista se espalhou e a indústria começou a substituir uma Alemanha e Áustria predominantemente rurais. Na verdade, houve a primeira crise econômica capitalista em 1825; e mais tarde, os primeiros sinais da luta proletária que finalmente em 1830 levou à derrubada da restaurada monarquia Bourbon e ao Reform Act de 1832 na Inglaterra permitindo aos homens adultos em melhor situação o direito ao voto pela primeira vez.
E em 1824 Beethoven entregou sua última obra-prima antes de sua morte em 1827. Beethoven estava há muito tempo considerando a ideia de uma sinfonia coral e tomou como seu texto a Ode à Alegria do poeta alemão Schiller, que ele conhecia desde 1792 e foi publicada originalmente em 1785 tirada de uma canção de bebida para republicanos alemães. Na verdade, Schiller havia pensado originalmente em chamar a música de Ode à Liberdade (Freiheit), mas por causa da enorme pressão das forças reacionárias, ele mudou a palavra para Alegria (Freude). Essas palavras de Schiller se tornaram a peça central da 9ª sinfonia (que é usada pela União Europeia como seu hino agora).
E em 1824 Beethoven entregou sua última obra-prima antes de sua morte em 1827
A nona sinfonia foi chamada de Marselhesa da Humanidade. Beethoven revive o som do otimismo revolucionário. É a voz de um homem que se recusa a admitir a derrota, cuja cabeça permanece intocada na adversidade.
(*) Michael Roberts trabalhou na City de Londres como economista por mais de 40 anos. Desde que se aposentou, ele escreveu vários livros. A Grande Recessão – uma visão marxista (2009); The Long Depression (2016); Marx 200: uma revisão da economia de Marx (2018): e juntamente com Guglielmo Carchedi como editores de World in Crisis (2018). Ele publicou vários artigos em várias revistas econômicas acadêmicas e artigos em publicações progressistas.
Artigo publicado originalmente no Blog de Michael Roberts e reproduzido no HP com autorização do autor