Uma no cravo, outra na ferradura. É assim que a deputada conduz sua campanha à presidência da CCJ. Aos colegas deputados, diz que se eleita vai se pautar pelo “equilíbrio” na condução do colegiado. À imprensa promete confronto com o Supremo. Quer votar proposta que pune ministro, até com impedimento, que tomar decisões monocráticas que avançariam em competências do Legislativo
O jornal Valor Econômico desta sexta-feira (5) trouxe matéria em que a deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) expõe seu real interesse em presidir a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara.
Depois de aprovar a admissibilidade da Reforma Administrativa (PEC 32/20) ela promete entrar na chamada pauta de costumes, como por exemplo, o projeto para tornar crime de responsabilidade (sujeito a impeachment) ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) tomar decisões monocráticas que avançariam em competências do Legislativo.
Pelo jeito, a deputada pretende usar o cargo no colegiado, se for eleita, para confrontar o Supremo, numa lógica que colide com a premissa “montesqueniana” que os poderes republicanos são separados e independentes entre si, mas devem atuar em harmonia e não em confronto.
O espantoso nisso é o fato de a deputada ser advogada e procuradora aposentada. Por essa condição, ela tem obrigação de conhecer a clássica obra de Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède, ou simplesmente Montesquieu, político, filósofo e escritor francês — “O Espírito das leis” (1748).
“Esse projeto eu faço questão. Sou a favor de que o Parlamento tenha seu poder respeitado. Isso é errado? Se for eu faltei nessa aula em que era proibido defender a separação dos três Poderes”, ironizou a parlamentar. “Nunca ataquei o Supremo, mas não quero que o Supremo me ataque e usurpe a minha competência [como deputada]”, reforçou.
A proposta encontra eco na bancada evangélica, em razão de decisões do Supremo como tornar crime a homofobia, ampliar as possibilidades de aborto legal e proibir o ensino doméstico. Na visão distorcida deles, a Corte assumiu o papel do Legislativo nesses casos. A deputada é autora da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 159/19 para que ministros do STF voltem a se aposentar aos 70 anos, o que abriria mais três vagas para o presidente Jair Bolsonaro preencher neste mandato — ele terá direito a indicar dois ministros até 2022.
MOVIMENTO CONTRA A DEPUTADA
Por essa e outras atitudes da deputada que se formou movimento, à esquerda e à direita, para que não seja eleita presidente da CCJ. De acordo com a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), o objetivo principal é convencer o PSL a apresentar o nome de outro parlamentar.
Isso porque o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) vai manter o acordo que elegeu o deputado Luciano Bivar (PSL-PE) à 1ª Secretaria da Mesa Diretoria, desafeto de Bolsonaro, e que garantiu, como compensação, a presidência da principal comissão temática da Casa à bolsonarista. Kicis disputou com Bivar posto na Mesa. Ela abriu mão por acordo com Lira, que lhe assegurou a presidência da CCJ.
Em meio à torrente contrária que se formou à sua indicação, a deputada segue sua peregrinação para convencer seus pares que à frente do colegiado se pautará pelo “equilíbrio”.
“CONSTRANGIMENTO”
“Todos aqueles com quem já conversei foram receptivos. Gostaram da conversa, porque eu tenho deixado bem claro que a deputada Bia Kicis é combativa, mas a deputada Bia Kicis, presidente da CCJ, será uma pessoa pautada pelo equilíbrio, senso de justiça, pela democracia, uma pessoa de conversa, de mediação”, assinalou a parlamentar em entrevista ao portal Metrópoles.
Em entrevista à Rádio CBN, quinta-feira (4), o vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM) afirmou que “há um constrangimento, não há como negar”, sobre a indicação da deputada Bia Kicis para o comando da CCJ pelo PSL. Segundo Ramos, o mal-estar é tanto externo, em relação à imprensa, tribunais e parcela grande da população, quanto interno.
Conforme relatou, Ramos disse ter sido procurado pela deputada e a aconselhou a construir uma relação de confiança com setores da sociedade até a data da eleição para a presidência do colegiado, sob risco de ser derrotada por uma candidatura avulsa.
“A senhora tem uma dificuldade de estabelecer uma relação de confiança com o conjunto de líderes, com uma parcela da sociedade e com os tribunais superiores do País com os quais a Comissão de Constituição e Justiça deve ter um diálogo sadio e fraterno”, Ramos teria dito a Kicis.
CANDIDATURAS AVULSAS
As chances reais de a deputada vencer as resistências contra seu nome “dependem de outros fatores que ainda não estão definidos”. “Acredito que ela vai manter a candidatura, mas se aceitarem a possibilidade de candidaturas avulsas de outros partidos a derrota é certa”, asseverou o analista político Marcos Queiroz, da consultoria política Arko Advice.
“Agora, se mantiverem o entendimento de candidaturas avulsas só do mesmo partido, vai depender do acerto interno do PSL. Se pactuarem dentro da bancada que não haverá outro candidato ela leva”, ponderou.
“Em resumo, ela só vence se não houver disputa com outros nomes”, confirmou Queiroz que a resistência à deputada é inflexível.
A PAUTA DE COSTUMES
Em movimento contraditório, a deputada bolsonarista ao mesmo tempo em que promete equilíbrio na condução dos trabalhos, numa eventual presidência da CCJ, também “não terá é alguém sentada sobre a pauta de costumes”, disse. O fato é que essa pauta mais divide que une. Como a deputada será uma magistrada diante disso é que não se sabe.
“Temos algumas pautas que são prioritárias, como a Reforma Administrativa, temos qualquer questão relativa à pandemia como prioridade absoluta e, obviamente, que traremos para a Mesa uma série de pautas de costumes. Mas assim como outras pautas de demais partidos também virão para que possam ser discutidas, analisadas e votadas. Simplesmente o que não acontecerá mais é alguém sentar em cima das pautas de costumes. Isso não vai acontecer, certamente. Todo mundo terá a oportunidade de ter os seus projetos apreciados”, prometeu a deputada, que se esforça desde a indicação para reverter a imagem de tresloucada.
Mesmo tentando mostrar-se sensata diante da possibilidade de vir a assumir o posto, a deputada mostra-se contraditória ao afirmar que dará prioridade absoluta às questões da pandemia, já que se trata de uma militante negacionista no combate à Covid-19.
A deputada é bem conhecida por sua postura negacionista em relação à pandemia — há cerca de 1 mês ela gravou vídeo ensinando “truque” para não usar máscaras em locais públicos. Em dezembro também havia parabenizado no Twitter as pessoas que fizeram protestos contra as regras de quarentena no Amazonas, pouco antes do colapso de saúde pública no estado.
OUTROS CANDIDATOS
O anúncio da candidatura da deputada Bia Kicis à presidência da CCJ causou desconforto na Casa e desencadeou movimento de candidatos que poderão concorrer com ela ao posto de comando do colegiado.
O Podemos planeja lançar nome próprio para concorrer ao cargo. O candidato à vaga da deputada seria João Bacellar (BA), que já foi presidente da comissão mista que analisou o Fundeb (Fundo de Educação Básica). Bacellar confirmou sua candidatura a vários órgãos de imprensa que cobrem o Congresso. Ele considera inadequada a indicação de Bia Kicis para comandar a CCJ, a comissão mais importante da Casa.
“A CCJ, além de ser a mais antiga comissão da Casa, só por ela ter de encaminhar qualquer tema — só isso já mostra que é uma comissão que precisa de equilíbrio e não pode estar ligada a extremos”, disse o deputado. “E a primeira candidatura que se apresenta é uma candidatura extremista, uma candidatura que questiona a posição do STF como a mais alta instituição da Justiça, e que não conversa com todas as correntes da Casa.”
INSTALAÇÃO DAS COMISSÕES
As lideranças partidárias começaram a discutir, nesta quinta-feira (4), a instalação das comissões temáticas da Câmara, responsáveis pela tramitação inicial e até conclusiva de várias propostas aprovadas na Casa. Mas isto só deve acontecer depois do Carnaval. Os líderes partidários ainda precisam ouvir os pleitos e demandas de suas respectivas bancadas.
Segundo o deputado Efraim Filho (DEM-PB), deve ser votado projeto de resolução com ajustes no SDR (Sistema de Deliberação Remota) que vem permitindo modelo híbrido de votações presenciais e virtuais no plenário ao longo da pandemia de Covid-19. A ideia inicial é que a presença em plenário seja limitada a cerca de 140 deputados e que as comissões funcionem por turnos.
COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES DA CCJ
A CCJ, tanto da Câmara quanto do Senado, trata dos aspectos constitucional, legal, jurídico, regimental e de técnica legislativa de proposições, emendas ou substitutivos.
A comissão também analisa e delibera no mérito sobre cidadania, nacionalidade, direito constitucional, eleitoral, civil, penal, etc. Seus pareceres são terminativos, isto é, uma vez aprovadas nesse colegiado as matérias podem ir direto à Casa revisora, e de mérito, conforme o caso.
Pela CCJ passam todas as proposições, assim, o colegiado é sistematicamente demandado a dar parecer sobre todas as matérias legislativas que circulam no Parlamento.
MARCOS VERLAINE (colaborador)