Em sua despedida das Assembleias Gerais da ONU nesta quarta-feira (24), o caquético presidente norte-americano Joe Biden buscou amenizar a duvidosa glória de presidir a decadência da ordem unipolar sob Washington no planeta inteiro, que durou três décadas, em meio ao mundo multilateral que emerge; defendeu suas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio e seus esforços para estendê-las ao Pacífico; e até mesmo se gabou de ter sido forçado a bater em retirada no Afeganistão, apesar do desastre de Cabul 2021 lembrar muito Saigon 1975.
Tradicionalmente, na abertura da Assembleia Geral Anual em setembro, é o presidente norte-americano o segundo a falar, após o Brasil. Ele aproveitou para criticar o adversário republicano Donald Trump, alegando que “sempre haverá um desejo de se retirar do mundo, e assumir o próprio caminho”.
Ao que acrescentou que – assim como pode ser constatado mundo afora, diante do fracasso das sanções contra a Rússia e do repúdio ao genocídio em Gaza que só subsiste por ser sustentado por armas, dinheiro e apoio ianque -, que “nosso desafio é fazer com que as forças que se aproximam de nós sejam mais fortes do que aquelas que se afastam”.
“Eu vi uma varredura notável da história”, disse Biden, arrancando risos ao dizer que “sei que pareço ter apenas 40 anos”.
Durante cinco décadas como senador e doze anos entre a vice-presidência e a presidência dos EUA, Biden foi um dedicado operativo da máquina de guerra norte-americana e da política imperialista, com seu papel sendo especialmente notório no golpe da CIA em Kiev em 2014, que inclusive lhe valeu uma gorda sinecura numa empresa de gás na Ucrânia para o filho ovelha negra, Hunter.
Também sem Biden na Casa Branca não seria um palhaço como Boris Johnson que iria a Kiev servir de mensageiro da ordem de não assinar o acordo em Istambul – que sustaria a guerra, com o retorno da neutralidade da Ucrânia, respeito aos direitos das minorias na Ucrânia e fim da perseguição aos descendentes de russos. Tendo, assim, integral responsabilidade sobre as centenas de milhares de mortos no conflito.
Também foi Biden e o complexo industrial-especulativo-militar que recusaram em 2021 a proposta da Rússia de restauração do princípio da segurança coletiva, manutenção da proibição dos Mísseis Intermediários na Europa e retorno da Otan às posições de 1997. Apostou tudo nas sanções, em impor uma derrota estratégica à Rússia e na extensão ainda mais insana da Otan.
Também, em relação ao Oriente Médio, foi Biden que manteve ininterruptamente o fluxo de bombas de 1 tonelada, sem as quais o ritmo do genocídio em Gaza no mínimo seria mais lento. E quem não retornou ao acordo com o Irã que Obama assinara e Trump rasgara.
Em relação à China, Biden foi co-autor, na vice-presidência, do “pivô para a Ásia”, a política de tentar cercar a grande nação asiática, com provocações contra Xinjiang, Tibet, Hong Kong e Taiwan, e incursões com navios de guerra no Estreito. Já na presidência, apostou na formação do Aukus, Quad e outros artifícios para empurrar a guerra para o Pacífico. Aprofundou a política de cerco tecnológico e comercial à China, acelerada por Trump.
“As coisas podem melhorar”, aventou Biden, observando que foi eleito para o Senado no auge da Guerra do Vietnã, mas presidiu um relacionamento amigável e frutífero com o Vietnã cinco décadas depois.
Mas, como se sabe, não existia antes um “relacionamento amigável e frutífero”, porque logo depois da derrota dos colonialistas franceses em Batalha de Dien Bien Phu, o imperialismo norte-americano escolheu intervir, instalou uma ditadura, impediu a reunificação pacífica, que tentou sustentar com 500 mil marines e soldados, cometeu várias Mi Lai, levou pela proa uma Ofensiva do Tet, e acabou fragorosamente derrotado, com o mundo abraçando a causa vietnamita e repudiando as cenas de meninas, ardendo pelo napalm, e correndo na estrada.
Cenas que lembram muito as recém vistas em Gaza e no Líbano.
De acordo com a CNN, Biden em seu discurso lembrou ao público que a humanidade havia passado por tempos ainda mais desesperados, que o estado do mundo não seria – aos olhos dele tão sombrio quanto durante as crises anteriores – e que o “centro” – isto é, as potências coloniais e imperiais, “se manteve”.
Ainda segundo ele, o mundo se divide entre as “democracias” e as “autocracias” – não entre o Bilhão Dourado, sintetizado na sigla G7, e a Maioria Global, de que os Brics e outros instrumentos em construção são símbolo.
Ele também buscou aliviar o processo pelo qual foi defenestrado, como candidato, pelos democratas, depois do fiasco em um debate na televisão com Trump, asseverando que seria a hora de “uma nova geração de liderança levar este país adiante”.
O vetusto presidente disse ainda prever mais mudanças tecnológicas nos próximos “dois a dez anos do que nos últimos 50 anos”, em grande parte graças à IA. “Nos próximos anos, pode não haver maior teste de nossa liderança do que como lidamos com a IA”, ele foi capaz de acrescentar.