A provocação parece calcada no doloroso fato [para o governo americano] de que a China foi o primeiro país a vencer o vírus e estar agora ajudando o mundo todo a se livrar da pandemia.
O presidente americano, Joe Biden, anunciou, nesta quinta-feira (27), que quer saber se o novo coronavírus foi transmitido em um mercado – numa transmissão natural entre animal e humanos – ou vazou de um laboratório chinês. O “democrata” admitiu que a comunidade de inteligência americana está dividida entre os dois “cenários”. Por isso, ordenou que seus espiões façam uma investigação detalhada a ser concluída em três meses.
A iniciativa requenta a história, alardeada por Donald Trump, de uma suposta fabricação do vírus em laboratório. A força-tarefa da Cia, montada por Biden para descobrir a origem do vírus, está com toda a pinta de ser uma provocação.
Uma provocação, sem dúvida, totalmente calcada no doloroso fato [para o governo americano] de que a China foi o primeiro país a vencer o vírus e estar agora ajudando o mundo todo a se livrar da pandemia.
O relatório de mais de 300 páginas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a origem da pandemia COVID-19 e suas descobertas concluiu que o vírus foi provavelmente transmitido de um morcego ou pangolim para os seres humanos por meio de um animal intermediário, mas possivelmente de forma direta. Mas, tanto o negacionista Trump quanto seu substituto, Joe Biden, não querem saber das opiniões da OMS, preferem os relatórios da CIA. Eles estão cada vez mais longe da ciência.
Esse velho filme, que Biden desenterra agora, nós já assistimos antes. A mesma “comunidade de inteligência” estava “dividida” também na década de 90 do século passado sobre a existência ou não de armas de destruição em massa no Iraque de Saddam Hussein.
A “investigação detalhada” da comunidade de inteligência naquela época, obviamente, concluiu não só pela existência das armas no Iraque, mas também que elas eram capazes de destruir todo o planeta num piscar de olhos. Foi montada, então, a partir daí, uma cruzada mundial, liderada, obviamente, pelos EUA, e secundada pela Inglaterra, contra o petrolífero país do Oriente Médio.
O mundo tinha que “punir” Saddam Husseim pelo fato do presidente do Iraque ter ousado defender o seu país, suas riquezas e o seu povo. Onde já se viu ameaçar o mundo com essas perigosas “armas de destruição em massa”. Pois é, depois da invasão do país, não se achou uma arma sequer de destruição, nada. A única coisa que as tropas americanas encontraram por lá foram os riquíssimos poços de petróleo e o ouro.
Como não havia armas, e para não perder a viagem, eles resolveram então ficar com o petróleo e com o ouro. Simples assim. Obviamente que com a China a coisa será um pouco diferente, não só em relação ao petróleo, que eles não têm, mas principalmente em relação ao poderio militar e de resposta do país asiático.
Junto com a decisão de colocar em movimento a sua “comunidade de inteligência” – leia-se, CIA – Biden mobiliza também o seu exército de “acadêmicos”, “comentaristas” e “cientistas de universidades prestigiadas”, todos muito bem financiados, para levantar suspeitas e mais suspeitas sobre a origem do coronavírus.
Um exemplo é uma carta aberta assinada na revista Science por 18 “cientistas de universidades prestigiadas”. O artigo deu a “base científica” que a Casa Branca precisava para desatar sua mais nova cruzada imperial contra a China. Eles afirmam, sem nenhuma base em fatos, que a possibilidade de um vazamento no laboratório chinês, que pesquisa vírus em morcegos, não pode ser descartada.
Também baseada num relatório de inteligência, uma reportagem do braço financeiro do grupo, o “Wall Street Journal”, no domingo passado, revelou que três cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan foram hospitalizados em novembro de 2019. “Apresentavam sintomas parecidos aos de uma gripe forte, um mês antes de a China informar sobre a doença na província”, diz o artigo.
O governo chinês nega a informação e afirma que os EUA não têm interesse em conduzir um estudo sério sobre a origem do vírus. “O objetivo do governo norte-americano é usar a pandemia para perseguir a estigmatização, manipulação política e transferência de culpa”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijan.
A mobilização das “tropas de espionagem” de Biden no encalço do “comunavírus” (do Ernesto Araújo) já está sendo vista entre os americanos como uma leve trumpenização do novo presidente. Trump logicamente capitalizou a mudança de posição de seu adversário. “Eu disse logo no início de onde veio. Era óbvio para pessoas inteligentes e não tenho dúvidas sobre isso”, afirmou Trump, em entrevista ao canal Newsmax.
O fato é que essa será uma tarefa árdua para Joe Biden. Primeiro porque a China hoje ajuda o mundo inteiro com seu exemplo, com as vacinas e com os insumos que eles entregam, enquanto os EUA estão sentados em cima de quase 600 mil mortos de Covid-19 e um bilhão de doses de vacinas que eles não entregam para ninguém, mesmo estando acima de suas necessidades.
Um outro fator a atrapalhar os planos propagandísticos de Biden contra a China é que, até hoje a “comunidade de inteligência” americana não esclareceu a origem do vírus influenza, que provocou a grande gripe, ocorrida entre 1918 e 1920. Ou seja, o episódio ocorreu há mais de cem anos, matou 50 milhões de pessoas em todo o mundo, e, até agora, não saiu um “relatório” sobre as causas. Portanto, fazê-lo em 90 dias para o novo coronavírus não parece ser uma coisa séria.
Apesar de ter sido injustamente chamada de “gripe espanhola”, fruto da neutralidade do país ibérico na Primeira Guerra Mundial; neutralidade esta que permitia uma relativa liberdade de imprensa e, portanto, notícias sobre a doença, coisa que não ocorria nos demais países envolvidos no conflito, a origem da doença se deu muito distante da Espanha.
O influenza assassino surgiu pela primeira vez em solo americano. Talvez por isso a comunidade de inteligência de Biden, mobilizada para descobrir a origem do novo coronavírus, não tenha até agora chegado a nenhuma conclusão sobre a origem da tragédia global de 1918/20.
Todas as pistas apontam para o surgimento do vírus da “Gripe Espanhola” numa fazenda do Texas, criadora de porcos. Depois, o vírus foi transportado para Nova Iorque e, com as tropas embarcadas para o teatro de operações da Primeira Guerra, o influenza foi para a Europa, de onde se espalhou para todo o mundo. Deste ponto de vista, foi providencial, em termos de propaganda americana, o batismo da pandemia de Gripe Espanhola.
Agora, ao que tudo indica, Joe Biden está aderindo ao coro trumpista – que Bolsonaro repete por aqui – de chamar o novo coronavírus de “vírus chinês” ou “comunavírus”. De insinuar também que ele foi fabricado em laboratório. A fábula cai como luva para a nova versão americana, do século XXI, das famosas armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Agora, seria a vez de alardear que o perigo é o “vírus chinês de destruição em massa”.
A diferença, como dissemos acima, é que desta vez o buraco é mais embaixo. A conversa agora não é com o combativo, mas pequenino Iraque, mas sim com o gigante asiático de Mao Tsé-Tung, Deng Xiaoping e Xi Jinping, que está na vanguarda tecnológica do mundo, não sabe mais o que é pobreza, se transformou na grande oficina do planeta e já pisou até em Marte. Vai encarar?
SÉRGIO CRUZ