“Contam-se já muitas dezenas de mortes causadas pelas forças policiais e por milícias afetas ao partido do governo. Tudo leva a crer que não haverá solução pacífica sem a renúncia do casal presidencial Ortega-Murillo e a convocação de eleições antecipadas livres e transparentes”, afirmou o escritor Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra, no artigo As Veias Abertas da Nicarágua, publicado recentemente.
“Pode um governo continuar a designar-se de esquerda – e até revolucionário – apesar de seguir todo o ideário do capitalismo neoliberal com as condições que este impõe e as consequências que gera?”, questionou Boaventura. A receita neoliberal é clara, apontou, “com a desregulação da economia, a assinatura de tratados de livre comércio e a criação de parcerias público-privadas que garantiam polpudos negócios ao setor privado capitalista à custa do erário público”. “Há grande concentração da riqueza, total dependência dos preços internacionais dos produtos de exportação – nomeadamente café e carne -, autoritarismo crescente perante o conflito social causado pela extensão da fronteira agrícola e pelos megaprojetos – por exemplo, o grande canal interoceânico, com financiamento chinês – e aumento desordenado da corrupção, a começar pela elite política no governo”, frisou.
O professor lembrou que pertence à geração dos que nos 80 vibraram com a Revolução Sandinista e a apoiaram ativamente, por tudo o que significava como “emergência de uma contra-corrente auspiciosa”. “Resultava não só das transformações concretas que protagonizava – participação popular sem precedentes, reforma agrária, campanha de alfabetização que mereceu prêmio da Unesco, revolução cultural, criação de serviço público de saúde, etc – mas também do fato de tudo isto ser realizado em condições difíceis devido ao cerco extremamente agressivo dos EUA de Ronald Reagan, que envolveu o embargo econômico e o infame financiamento dos ‘contras’ e o fomento da guerra civil”.
Entretanto, a Nicarágua, como, de resto, toda a América Central, ressaltou Boaventura, “esteve fora do radar da opinião pública internacional e da própria esquerda latino-americana, até que em abril passado os protestos sociais e a violenta repressão de que foram alvo chamou a atenção do mundo”. “Os democratas, em geral, e as forças políticas de esquerda, em especial, têm razões para estar perplexos. Mas têm sobretudo o dever de reexaminar as opções recentes de governos considerados de esquerda em muitos países do continente e questionar o seu silêncio perante tanto atropelo de ideais políticos durante tanto tempo. Por esta razão, este texto não deixa de ser, em parte, uma autocrítica”, sublinhou.