O ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do governo Bolsonaro, André Porciúncula, fez um discurso em uma convenção de um grupo pró-armas no qual recomendou que os participantes usassem R$ 1,2 bilhão de recursos da Cultura por meio da Lei Rouanet para produzir conteúdo a favor da política armamentista.
Porciúncula deixou o cargo no fim do mês passado, para disputar as eleições. O órgão que ele chefiava é ligado à Secretaria Nacional de Cultura, que faz parte do Ministério do Turismo. Ele era o número dois do ex-secretário Mario Frias, que também vai concorrer no pleito de outubro.
Fã de Jair Bolsonaro, André Porciuncula, que foi nomeado ao cargo em setembro de 2020, afirma que está lá graças ao presidente. “O presidente me trouxe para dar um choque de gestão. Ter a coragem de fazer o que é certo”, disse. Jair e o filho, Eduardo Bolsonaro, estiveram ao lado do PM agora em março, quando ele assinou sua filiação ao PL e anunciou sua pré-candidatura a deputado federal pela Bahia.
“Eu comando a famosa Lei Rouanet, aquela leizinha sem polêmica nenhuma”, ironizou o então secretário Nacional de Incentivo e Fomento à Cultura ao se apresentar no evento pró-armas. Capitão da Polícia Militar da Bahia, ele ficou conhecido como “Capitão Cultura” e já afirmou em entrevista que “a Lei Rouanet não pode financiar eventos políticos”.
Um vídeo revelado pela Agência Pública mostra Porciúncula discursando na convenção, no dia 28 de março. Ele argumenta que os projetos culturais sobre armas são necessários para “trazer a pauta” para dentro de um “discurso de imaginário”. Porciúncula defende filmes, podcasts, webséries que exaltem “a importância do armamento” para a “liberdade humana”.
A Lei Rouanet é uma importante ferramenta de estímulo à cultura no país. Por meio dela, artistas e empresas podem captar patrocínios e doações para produções culturais. O dinheiro não sai diretamente dos cofres públicos, mas de doadores e patrocinadores, que podem deduzir o investimento no imposto de renda.
“Um bilhão e duzentos milhões de reais estamos lançando agora de linha audiovisual. Que vocês podem usar para fazer documentário, filmes, webseries, podcasts. Para quê? Para trazer a pauta do armamento dentro de um discurso de imaginário. Trazer filmes sobre o armamento, da importância do armamento para a civilização, secretário a importância do armamento para garantir a liberdade humana”, afirmou o ex-secretário.
No mesmo evento, ele defendeu o uso de armas de fogo contra o que chamou de “criminalidade praticada pelo Estado”. E afirmou que, pela primeira vez, a secretaria de cultura estava aplicando recursos da lei Rouanet em eventos favoráveis às armas.
CONSTRUÇÃO DE NARRATIVA
A estratégia dos bolsonaristas é a de construir uma narrativa em prol do armamentismo tendo como referência as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, que será celebrado em setembro deste ano — um mês antes das eleições.
“Estamos lançando na secretaria especial de cultura dois megaeventos em que a princesa do evento é a arma de fogo, o presidente da República vai estar […] A arma de fogo foi fundamental pra que garantíssemos a nossa independência. Então trazer um evento em que a arma de fogo seja a nossa miss na passarela, que a gente mostre para população um outro olhar sobre a arma de fogo”, defendeu.
“Chamo aos senhores a usarem a Lei Rouanet, que é uma lei de incentivo tributário também, para que vocês que possuem contatos com empresários ou então que sejam empresários, financiem eventos pró-armas com a Lei de Incentivo, eventos culturais sobre a arma de fogo com a Lei de Incentivo. Sejam agentes modificadores”, convocou Porciuncula.
“Precisamos construir uma narrativa que vai muito além da arma de fogo para combater o bandidinho da esquina. Precisamos entender a arma de fogo como um processo de garantia civilização. Estamos lançando na Secretaria Especial de Cultura dois megaventos em que a princesa do evento é a arma de fogo, o presidente da República vai estar. Então pela primeira vez vamos colocar dinheiro da Rouanet em um evento de arma de fogo”, comemora.
VIOLÊNCIA
Para o jurista Walter Maierovitch, a defesa do uso de armas contra o que o então secretário chamou de criminalidade de Estado é uma irresponsabilidade.
“Primeiro lugar, é uma irresponsabilidade. Um agente do próprio Estado pregar contra a democracia, contra o Estado de Direito, em propor um armamento que a população se arme, sabendo que a arma é sinônimo de violência e dizendo que pode existir um Estado criminoso, um Estado terrorista, que para a população se defender tem de estar armado. Isso é o absurdo do absurdo e da irresponsabilidade”, afirmou o jurista.
Michele Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé, organização que discute políticas para as áreas de segurança, meio ambiente e mundo digital, explica que a ideia de que a população deve prover a própria segurança é uma distorção das funções do Estado. “A gente não pode ter uma distorção dessa função primeira do Estado, do governo federal, que é trabalhar para garantir a vida da população brasileira. Não há nenhuma evidência que mostre que armar a população torna o país mais seguro. Mais uma vez: o que a gente precisa é que o governo federal assuma suas responsabilidades para enfrentar o tráfico de armas e munições, para enfrentar o poderio bélico do crime organizado”, afirmou.
Oposição quer investigação
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) protocolou uma representação no MPF (Ministério Público Federal) pedindo que o caso seja investigado.
Para o deputado, “a defesa da utilização distorcida da Lei Rouanet, que tem como objetivo central o estímulo à cultura, para fomentar uma cultura armamentista, locupletando-se do uso do incentivo fiscal, coloca em evidência a distorção do poder discricionário, para atingir fins diversos do que a lei determina”, escreve Valente na representação.
Ele pede que a Procuradoria da República no Distrito Federal investigue o possível desvio de finalidade e o suposto atentado contra o Estado Democrático de Direito, já que Porciúncula também afirma que a expansão da cultura armamentista também serviria para enfrentar a “criminalidade estatal”.
“A situação em comento, revela a má-fé nas falas apresentadas e defendidas, uma conduta dissimulada, para alcançar finalidades nada republicanas, sob argumento de interesse público na garantia de direitos individuais, para bifurcar a intenção velada, qual seja fomentar a cultura armamentista”, diz a representação.