Bancada evangélica está indignada com o escândalo. Pastores foram indicados por Bolsonaro para agirem como se fossem do governo. CGU não tinha visto “nada de errado” porque eles não são “agentes púbicos”. Dez prefeitos relataram ação ilegal dos “amigos do mito”
Mais um esquema de corrupção envolvendo diretamente Jair Bolsonaro foi desbaratado esta semana pela atuação da imprensa. Da mesma forma que ocorreu com o último “ministro de confiança” de Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello, aquele do “ele manda e eu obedeço”, onde foi descoberto um esquema criminoso de cobrança de propina de “um dólar por cada dose de vacina adquirida” – denunciado pela CPI da Pandemia-, se descobre, agora, um outro escândalo de propinas, desta vez no Ministério da Educação.
Mais de dez prefeitos, de diversos municípios brasileiros, relataram que dois pastores ligados a Bolsonaro, os senhores Gilmar Santos e Arilton Moura, vinham atuando dentro do Ministério da Educação e decidindo sobre liberação de verbas. Três desses prefeitos denunciaram formalmente a cobrança de propina para liberar as verbas do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Os relatos dos prefeitos são detalhados e vão desde o pedido de propina em dinheiro vivo, com valores que variavam de R$ 15 mil a R$ 40 mil, passando por solicitação de barras de ouro, compras de bíblias, e até doações para igrejas.
O esquema criminoso veio a público através de um áudio vazado, em que o ministro da Educação, Milton Ribeiro, diz que foi o próprio presidente da República que pediu a ele que desse “autoridade” aos dois pastores, Gilmar Santos e Arilton Moura.
Eles deviam ter seus pedidos atendidos dentro do ministério. “A prioridade é atender 1º os municípios que mais precisam e, em 2º, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar. Esse foi um pedido especial do presidente da República [Jair Bolsonaro]”, disse o ministro.
Ouça o ministro da Educação dizendo que a indicação foi de Bolsonaro
Não há dúvida. O presidente mandou que os pastores fossem atendidos em seus pleitos pelo ministro da Educação. E, segundo os prefeitos, eles passaram a definir quem receberia ou não as verbas públicas. Foi o próprio ministro que confessou isso. É a voz dele que está no áudio. Mas, Bolsonaro, achando que o país não está atento, tentou, mais uma vez, acobertar os crimes de corrupção em seu governo. Disse em sua live desta quinta-feira (24), que não há nada de errado e que põe a “cara no fogo pelo Milton”.
“O Milton, coisa rara de eu falar aqui, eu boto a minha cara no fogo pelo Milton. Minha cara toda no fogo pelo Milton. Estão fazendo uma covardia com ele”, afirmou o presidente. Ou seja, Bolsonaro indica os dois pastores. Eles traem as recomendações de suas religiões e passam a cobrar propinas para liberar as verbas para as escolas, sem nem serem funcionários do ministério e nem do governo, e Bolsonaro diz que põe, não só a mão, mas a “cara no fogo”, pelo que está acontecendo no Ministério da Educação.
E o que mais revoltou a bancada evangélica na Câmara dos Deputados, é que os agentes da corrupção usaram sua condição de evangélicos, e de serem ligados a Bolsonaro, para, ilegalmente, controlar e manipular as verbas públicas do Ministério da Educação. E não foi uma denúncia, ou uma suspeita apenas. O próprio ministro levou os dois pastores para dentro do ministério. Foram 19 agendas oficiais com os agentes da corrupção. Milton Ribeiro entregou a eles publicamente a definição de quem recebe e quem não recebe as verbas.
O líder da bancada evangélica, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), chegou a dizer que assinaria um pedido de CPI para investigar o ministro e o escândalo das propinas.
Bolsonaro disse na live que quem quer roubar não põe na agenda. Disse que o próprio ministro teria mandado no ano passado uma denúncia anônima para a CGU (Controladoria Geral da República), órgão do governo, afirmando que poderia estar havendo irregularidades na distribuição das verbas do FNDE. Bolsonaro disse que o titular da CGU, Wagner de Campos Rosário, indicado por ele, “concluiu” que não havia nada de errado porque “não havia agentes públicos envolvidos”.
Ora, realmente, os pastores não são agentes públicos, mas estão agindo como se fossem. O ministro chegou a agradecer publicamente a “ajuda desinteressada” dos pastores na distribuição das verbas. E outra coisa. Tem ladrão que oficializa o seu roubo ao erário. Talvez por ter ilusão da impunidade. É o caso do próprio Bolsonaro que colocou oficialmente a senhora Walderice Santos da Conceição como sua assessore em Brasília, sendo que a funcionária fantasma de Bolsonaro afirmou em depoimento ao MP-RJ, que veio a público recentemente, que nunca pisou na capital federal e que não possui nem computador e nem e-mail.
Gilmar Santos, um dos pastores que Bolsonaro indicou ao ministro da Educação, e que está envolvido na cobrança de propina para facilitar a liberação de recursos, investiu, segundo o jornal “O Globo”, quase meio milhão de reais para criar duas empresas, abertas há duas semanas. No mesmo dia, 8 de março deste ano, ele abriu uma faculdade em Goiânia, com aporte inicial de R$ 100 mil, e registrou uma editora na cidade vizinha de Aparecida de Goiânia, com capital de R$ 350 mil.
O ministro, que, segundo Bolsonaro, estaria sendo “covardemente acusado”, não explicou porque se encontrou pelo menos sete vezes com o pastor Arilton Moura, que teria sido acusado de cobrar propinas, mesmo depois de supostamente ter recebido a denúncia contra ele.
Ele também terá que dizer por que seguiu agradecendo publicamente aos dois pastores em eventos em que participaram juntos. E também por que recebeu os dois elementos envolvidos com os pedidos de propinas 20 vezes em seu gabinete, mais precisamente 19 vezes. O ministro foi chamado a se explicar no Senado. Ele terá que explicar porque obedeceu Bolsonaro e entregou as verbas públicas para serem manipuladas por dois pastores que não são funcionários do governo.
Veja as atividades do ministro com os pastores ligados a Bolsonaro
Segundo o “Estadão”, pelo menos dez prefeitos atestam que os pastores atuaram na intermediação de recursos ou no acesso direto ao ministro da Educação, Milton Ribeiro. Desse grupo, três já afirmaram que houve pedidos de propina em troca da liberação de verbas federais para escolas. Eles serão intimados a prestar depoimento à Polícia Federal.
O relato mais forte de como o esquema era operado no MEC para facilitar a liberação de recursos no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), foi o do prefeito de Luis Domingues (MA), Gilberto Braga. “Ele disse que tinha que botar (…) Ver a nossa, a nossa demanda, né. Tinha que dar R$ 15 mil para ele só protocolar. E na hora que o dinheiro já estivesse empenhado, era pra dar um tanto x”, afirmou o prefeito. “Para mim, como a minha região é área de mineração, ele pediu 1 quilo de ouro”, completou.
“Então, o negócio estava tão normal lá que ele não pediu segredo, ele falou no meio de todo mundo. Inclusive tinha outros prefeitos do Pará. Ele disse: ‘Olha, para esse daqui eu já mandei tantos milhões’. Os prefeitos ficavam todos calados, não diziam nem que sim, nem que não’”, continuou Braga. “E assim mesmo eu permaneci calado. Também não aceitei a proposta. Deixamos as demandas na mão dele e ele deu a conta pra gente. Os que transferissem os R$ 15 mil, ele ia protocolar”, concluiu Braga.
Em nota divulgada nesta quinta-feira (24), o prefeito Gilberto Braga reforçou a denúncia. “A respeito das notícias envolvendo seu nome em diversos veículos de comunicação, o prefeito de Luís Domingues, estado do Maranhão, Gilberto Braga, vem a público dizer que confirma o teor das declarações dadas ao jornalista Breno Pires, de ‘O Estadão’”, disse a nota.
O prefeito da cidade de Bonfinópolis, Kelton Pinheiro (Cidadania), disse que, apesar de precisar de uma escola nova, se negou a aceitar a proposta de pagamento de propina feita pelo pastor Arilton Moura. O prefeito afirmou que, por intermédio do pastor Gilmar, conseguiu ser recebido pelo ministro da Educação numa reunião com vários prefeitos. Assim como Gilberto Braga, Kelton disse que os prefeitos foram almoçar e que, nesse momento, o pastor Arilton, que também estava no encontro, fez o pedido de propina.
Segundo o prefeito, o pastor disse: “‘Papo reto aqui. Eu tenho recurso para conseguir com você lá no ministério, mas eu preciso que você coloque na minha conta hoje R$ 15 mil. É hoje. E porque você está com o pastor Gilmar aqui, senão, pros outros, foi até mais’. Achei muito estranho, não tinha interesse”, contou Kelton.
“Olha, eu precisava muito da construção de uma escola nova. Tem uma escola lá que é de placas de muro, escola antiga, que a gente precisava substituir lá no município. Então ele disse: ‘Olha, tudo bem, eu consigo isso para você, mas eu quero que você me dê hoje R$ 15 mil aqui na minha mão. Hoje, uma transferência, que você faça isso hoje’”, relatou o prefeito.
Kelton Pinheiro contou ao Estadão que Arilton Moura também propôs ainda uma contribuição para a igreja. “Se você quiser contribuir com a minha igreja, que eu estou construindo, faz uma oferta para mim, uma oferta para a igreja. Você vai comprar mil bíblias, no valor de R$ 50, e você vai distribuir essas bíblias lá na sua cidade. Esse recurso eu quero usar para a construção da igreja”, disse o pastor, segundo o prefeito. “Fazendo isso, você vai me ajudar também a conseguir um recurso para você no Ministério.”
Kelton prosseguiu: “ele sentou do meu lado, em um dos lados da mesa e falou: ‘olha prefeito, eu vou ser direto com você. Tem lá um recurso para liberar com ministro, mas eu preciso de R$15 mil hoje’”, afirmou Arilton Moura, segundo o prefeito. “O discurso dele que ainda me deixou mais chateado foi: ‘eu preciso desse pagamento hoje, porque vocês políticos não têm palavra, vocês não cumprem com o que prometem. Depois eu coloco o recurso para você lá e você nem me paga’.”
Também ao jornal “O Globo”, o prefeito José Manoel de Souza (PP), da cidade paulista de Boa Esperança do Sul, relatou outro pedido de propina de R$ 40 mil por parte de Arilton, para liberar verba para construção de escolas profissionalizantes no município. Ele disse que foi levado a um restaurante de um hotel em Brasília depois de um evento no MEC em 2021.
Lá, o pastor Arilton Moura perguntou se ele teria interesse em ter uma escola profissionalizante na cidade. “Eu disse que tinha outras demandas, como creche, terceirização de ônibus”. O prefeito conta que o pastor então complementou dizendo que, se ele quisesse, poderia ter a escola na hora. “Ele disse: Eu falo lá, já faz um ofício, mas você tem que fazer um depósito de R$ 40 mil para ajudar a igreja”. Souza afirma que se levantou e disse que não faria esse tipo de negócio. A cidade de Boa Esperança, segundo ele, não teve qualquer ajuda do MEC em seus projetos.
Ao “Jornal Nacional”, da TV Globo, prefeitos acusaram mais uma pessoa de intermediar a liberação de dinheiro do MEC: Nely Carneiro da Veiga Jardim. Ela não é funcionária da pasta, mas participava de reuniões com o ministro. Segundo relatos, falava em nome do ministério. Em pelo menos duas agendas do MEC, Nely aparece como representante da Igreja Cristo para Todos.
Um dos prefeitos, que não quis se identificar, afirmou que recusou a proposta, mas a mulher manteve contato nos meses seguintes, enviando exemplos de portarias de liberações de recursos pelo MEC e pelo Ministério da Saúde. “Estamos com orçamento do MEC e Saúde”, escreveu a mulher. “Queremos em troca uns votos para nosso deputado estadual da igreja. Interessa?”, continuou Nely. O prefeito responde que sim e pergunta quem seria o candidato. Nely então diz que “é novo” e sugere a ele que entre em contato com o pastor Arilton. O prefeito conta que não fez o contato e, pouco tempo depois, as mensagens foram interrompidas.
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