Ele desencadeou um “linchamento contra meu pai, morto aos 26 anos”, diz presidente da entidade. “Fui ao STF contra Bolsonaro para defender a memória do meu pai”
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, afirmou que interpelar Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) foi “um gesto de defesa da memória do meu pai”.
“O que aconteceu depois da declaração do presidente foi uma das coisas mais cruéis que já vi em minha vida. Vídeos distorcidos, truncagens na internet, pessoas que nunca ouviram falar do meu pai acusando a memória dele. Um verdadeiro linchamento do menino que morreu aos 26 anos de idade. Hoje eu tenho 21 anos a mais que meu pai tinha quando morreu”, disse o presidente da OAB em sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, na noite de segunda-feira (5).
Jair Bolsonaro agrediu Felipe Santa Cruz e a sua família, desrespeitando a memória do pai de Felipe, Fernando Santa Cruz, assassinado pela ditadura, aos 26 anos, em 23 de fevereiro de 1974, após ser preso por agentes do DOI-CODI.
Na segunda-feira, dia 29 de julho, ao atacar a suposta atuação da OAB no caso de Adélio Bispo, que lhe deu uma facada durante a campanha eleitoral, Bolsonaro atacou Felipe Santa Cruz: “Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele”.
A cobrança de Bolsonaro à OAB é uma falsificação. A OAB não impediu nada durante o processo de Adélio. Ele confunde intencionalmente o processo de Adélio com outro, em que atuou o mesmo advogado, Zanone Manuel de Oliveira. Ele já tinha feito essa manipulação, no início de julho, no Facebook.
Depois, insistindo no assunto, Bolsonaro ainda mentiu dizendo que Fernando Santa Cruz foi morto pela organização, a Ação Popular, em que militava.
A condenação à agressão de Bolsonaro foi ampla e imediata. Setores dos mais diversos emitiram apoio e solidariedade ao presidente da OAB.
Felipe Santa Cruz entrou com uma ação no STF, quarta-feira, 31 de julho, para interpelar Bolsonaro, pedindo para que ele esclarecesse suas declarações a respeito do paradeiro de Fernando Santa Cruz.
O documento foi assinado por Felipe e mais 12 ex-presidentes da OAB: Eduardo Seabra Fagundes, José Bernardo Cabral, Mário Sérgio Duarte Garcia, Marcelo Lavenère Machado, José Roberto Batochio, Francisco Ernando Uchoa Lima, Reginaldo Oscar de Castro, Roberto Antonio Busato, Cezar Britto, Ophir F. Cavalcante Junior, Marcos Vinicius Furtado Coêlho e Claudio Lamachia.
O ex-presidente da OAB, Marcelo Lavenère, disse que o ataque de Bolsonaro foi “uma agressão à OAB, não foi só a uma pessoa física, mas enquanto entidade”.
Na quinta-feira (1º de agosto), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), encaminhou a interpelação a Jair Bolsonaro para que ele esclareça, em 15 dias, “eventuais ambiguidades ou dubiedades dos termos utilizados” ao falar sobre a morte de Fernando Santa Cruz.
No Roda Viva, Felipe Santa Cruz iniciou sua participação no programa lembrando quando Ulysses Guimarães (MDB) foi reeleito deputado federal com mais de 600 mil, uma estrondosa votação. “Não tinham ainda contado todos os votos do Dr. Ulysses, uma votação histórica para a época, e ele disse aqui dessa cadeira que não importavam os votos, importava a Constituinte, que com tanto talento ele comandou, repactuou o Brasil e refundou a nossa democracia a partir de 1988”, disse Felipe.
O presidente da OAB afirmou que não acredita “que o presidente tenha dito uma só palavra verdadeira quando falou do meu pai”. “Ele usa um episódio de prerrogativas [referindo-se à atuação da OAB na defesa do advogado Zanone Manuel de Oliveira]”.
“É importante que o telespectador pense nisso. Todo mundo, culpado ou não precisa de um advogado. Uma parte da força do cidadão contra o Estado é que ele tenha direito e que esse advogado tenha acesso ao processo, que esse advogado possa defendê-lo. O presidente usa esse episódio, ataca a memória do meu pai, muda uma versão”, observou.
Felipe Santa Cruz lembrou que o próprio Bolsonaro “há alguns anos tinha dito” que seu pai “tinha saído para beber”. “O que era mais agressivo ainda. Foi cercado por estudantes da Universidade Federal Fluminense e do Diretório Central [de Estudantes] (DCE), que leva o nome do meu pai, para minha alegria, para minha honra”.
Para o presidente da Ordem, Bolsonaro “agora faz uma versão agressiva, para atingir a advocacia, atinge minha vida, de meus parentes”.
“É algo que eu tachei de cruel e reafirmo, mas que deve ser colocado à luz dos acontecimentos atuais, que é a reabertura de uma discussão já superada pelo país pela redemocratização, da pacificação pós-ditadura”.
“Não acredito que o presidente vá dizer nada de novo [na interpelação]. Até porque ele já diz que vai repetir declarações que já deu. Então ele não cumpre aquilo que já disse, que contaria o que aconteceu ao meu pai. Mas ele, como mandatário da República, tem obrigações a esclarecer nesse caso”, assinalou.
Ao ser questionado pelas jornalistas se seu gesto de ir ao Supremo para interpelar Bolsonaro foi político, apenas para marcar posição, Felipe respondeu: “Não”. “Defender a memória do meu pai é uma obrigação minha. E depois se o presidente não responder, o que para mim é muito grave, do ponto vista pessoal, eu e minha família vamos estudar quais são as medidas indenizatórias ou criminais que vamos tomar contra o cidadão”.
O presidente da OAB destacou que tem “o dever de separar o meu papel na Ordem, que é um papel de independência, de equilíbrio, e o meu papel de familiar agredido pessoalmente”.
“A Ordem tem sido muito equilibrada”, ressaltou, “o direito de defesa está sob ataque há muito tempo. A advocacia sofre com esse julgamento unilateral com essa velocidade das acusações, com o espetáculo em que há condenação de pessoas…”.
“Passei a semana inteira guardando para mim os sentimentos duros. Fui ao Supremo com uma petição assinada pelos 12 ex-presidentes vivos da Ordem dos Advogados do Brasil, o que mostra que a nossa entidade está unida”, revelou.
“O que temos que discutir nesse episódio, para a Ordem dos Advogados do Brasil, são duas coisas: uma é uma questão de prerrogativas. O presidente insiste em atacar o sigilo telefônico, o sigilo das comunicações entre o advogado e seu cliente. E a segunda coisa é essa revisão que ele introduz na história da ditadura militar. Essa é a grande e grave discussão”.
“Eu acho até interessante que me chamem hoje de um radical. Eu sempre, a vida inteira, fui um moderado. Eu sempre fui um moderado criticado por apoiar a visão suave de transição da ditadura militar. Eu nunca defendi, até por uma visão de coerência, a prisão de torturador. Eu sempre quis a verdade. Onde está o corpo do meu pai, quem o torturou, quem deu sumiço aos seus restos, quem impediu a minha avó [Dona Elzita Santa Cruz, que morreu com 105 anos após procurar mais de 40 anos por respostas sobre o desaparecimento do filho] de chorar a morte do seu filho de 26 anos”, apontou.
Felipe Santa Cruz mostrou indignação contra a “tentativa de deslegitimar” a sua história por resistir à ditadura. “É o mais grave desse episódio”.
Ele enfatizou que tem a “honra, o orgulho de ter resistido à ditadura militar de forma absolutamente altiva. Não nos confundimos com aqueles que aplaudiram o regime de exceção no Brasil”.
“A OAB também não”. “[Ela] Errou num primeiro momento em 64”, mas depois corrigiu “o seu rumo”.
“[O jurista] Sobral Pinto é o grande heroi da resistência à ditadura, um homem conservador que se notabilizou por defender aqueles que pensavam diferente dele. A Ordem de Raimundo Faoro restabeleceu o habeas corpus, que recentemente foi atacado por esse sentimento de autoritarismo. A Ordem é mãe e pai desse processo de abertura”.
“Eu até por coerência defendi esse processo [da redemocratização] pactuado, porque a Ordem participou desse processo de anistia e ela foi ampla, geral e irrestrita”.
“A defesa da memória da minha família, nunca vou abrir mão, porque seria trair a memória do meu pai”, frisou o presidente da OAB.
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