No sábado (31/08), Bolsonaro disse a jornalistas que vai indultar os assassinos de Eldorado dos Carajás, os assassinos do Carandiru e os assassinos do ônibus 174.
Não se trata, como disseram alguns, de “policiais”.
Trata-se de assassinos.
Os policiais pertencem a outra categoria – exatamente àquela responsável, entre outras funções, por descobrir e prender os assassinos. Misturar assassinos e policiais é um insulto àqueles que arriscam a sua vida – e usam a sua inteligência – para dar um mínimo de segurança ao povo.
Mas, disse Bolsonaro, “os que se enquadrarem no indulto, eu vou dar. Estou pedindo a policiais de todos os Estados uma lista de nomes, com justificativas”.
Realmente, entranhado com as milícias, ele não distingue policiais e assassinos. Não é exatamente assim que são os integrantes das milícias? Inclusive aquele membro do Escritório do Crime que morava no mesmo condomínio, quase na casa em frente à sua – e que assassinou Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes.
Então, vamos aos casos de que ele falou.
A 17 de abril de 1996, uma tropa da PM do Pará abriu fogo contra uma marcha de trabalhadores rurais na PA-275, uma estrada estadual.
Houve 21 mortos (19 deles, no local) e 69 feridos.
Os trabalhadores haviam saído da Fazenda Macaxeira, em Eldorado dos Carajás, e pretendiam ir até Belém, reivindicar a desapropriação da terra para realizar seu assentamento (as terras da Fazenda Macaxeira, aliás, foram desapropriadas após o massacre).
Depois de sete dias de marcha, os trabalhadores ocuparam um local denominado Curva do S, na PA-275. Aí, foram surpreendidos pelo fogo das armas. Nas palavras de Eric Nepomuceno, autor do – provavelmente – melhor livro sobre o ocorrido em 17 de abril de 1996: “foi uma das mais frias e emblemáticas matanças da história contemporânea do país. Ninguém deveria sequer se atrever a usar a palavra ‘confronto’, ‘incidente’ ou ‘choque’ para descrever o que aconteceu na curva do S. Aquilo foi uma carnificina brutal, um massacre que permanece impune” (v. Eric Nepomuceno, O Massacre – Eldorado dos Carajás, uma história de impunidade, Planeta do Brasil, 2007).
Uma das testemunhas – aliás, um fazendeiro – depôs que o comandante da PM de Marabá, o então coronel Mário Pantoja, fora subornado para perpetrar o massacre. Segundo esse fazendeiro, Ricardo Marcondes de Oliveira, ele fora procurado, pelo dono da Fazenda Macaxeira, para contribuir com a propina do banho de sangue.
Segundo a necrópsia, 10 dos mortos foram executados à queima-roupa.
Somente em 2012, 16 anos depois do crime, Mário Pantoja e José Maria Oliveira – que também encabeçava a tropa – foram presos.
Até então, apesar de condenados, eles estavam abrigados pela antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que só permitia a prisão após o esgotamento de todos os recursos, em todas as instâncias – o “trânsito em julgado”, como dizem os juristas.
Mas, agora, Bolsonaro pretende indultá-los.
PARA MATAR
O massacre do Carandiru é mais conhecido.
Em dois de outubro de 1992, uma tropa da PM invadiu o Pavilhão 9 da Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, e executou 111 presos, todos desarmados.
O Pavilhão 9 era destinado a réus primários, presos sem grande periculosidade. Houve uma briga entre os presos, no dia do massacre, com a expulsão dos agentes penitenciários, que tentaram acalmar a situação, do prédio.
Depois disso, por ordem telefônica do então secretário de Segurança, Pedro Franco de Campos, a tropa entrou no pavilhão. Meia hora após, havia 111 mortos (um relato importante está na reportagem de Luís Adorno, De 74 PMs envolvidos no massacre do Carandiru, 58 foram promovidos, UOL 02/10/2017).
O chefe da operação, Ubiratan Guimarães, condenado em primeira instância a 632 anos de prisão (a sentença foi anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo), foi assassinado em 2006 – ao que parece, por causas passionais, embora a acusada, que mantinha um relacionamento com ele, tenha sido absolvida.
Porém, disse Bolsonaro no sábado, “se o comandante do Carandiru estivesse vivo, eu dava indulto pra ele também”.
Em 2013 e 2014 – mais de 20 anos após a chacina – 74 participantes foram condenados, mas essa condenação foi, também, anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em setembro de 2016.
Portanto, não sabemos a quem, nesse caso, Bolsonaro pretende indultar.
Mas o que ele quer é passar a mensagem: crimes covardes estão liberados. A covardia está liberada. A lei não vale nada. Podem assassinar, que eu indulto.
O que tem muito a ver com as milícias às quais ele se aprochegou, mas nada tem a ver com a polícia de verdade.
A polícia é uma instituição muito diferente dessas quadrilhas – aliás, oposta.
Se há maus policiais, então, que sejam postos para fora da polícia. Essa é, exatamente, a aspiração dos verdadeiros policiais.
A de Bolsonaro é a de dar impunidade para os bandidos que se infiltram na instituição policial.
ASFIXIA
Por fim, o caso do “ônibus 174”.
Na tarde do dia 12 de junho de 2000, um dos ônibus da linha Central-Gávea (linha número 174), no Rio de Janeiro, foi tomado por Sandro Barbosa do Nascimento.
No final da tarde, depois de quatro horas e meia de negociação, o sequestrador saiu do ônibus usando uma refém, Geísa Firmo Gonçalves, como escudo. Um atirador tentou atingi-lo e errou o tiro – que feriu Geísa, de raspão, no queixo.
Em seguida, Sandro matou Geísa com três tiros nas costas.
Imobilizado, foi colocado dentro de uma viatura, onde foi asfixiado.
Os acusados de matar Sandro foram absolvidos.
Então, aqui, também não há, pelo que sabemos, o que (ou a quem) indultar.
O que Bolsonaro está fazendo é dizer que, agora, é permitido matar por estrangulamento – ou pelo uso do “saco plástico” na cabeça – criminosos que já estão rendidos, como se houvesse pena de morte no Brasil, e como se essa pena de morte fosse extrajudicial, ou seja, como se fosse uma decisão da milícia da esquina.
E, não tenhamos dúvida, não é somente para criminosos que ele preconiza esse tratamento. Aliás, a criminosos ele prefere indultar.
INDULTO
Alguns juristas consideram o “indulto” – pelo qual o presidente da República pode, por decreto, anular algumas penas (nem todas, pois os crimes hediondos não são passíveis de indulto) – um resquício medieval, derivado da época em que a “Justiça” não era feita de acordo com leis, mas tinha caráter pessoal, e o rei indultava, quando indultava, porque era rei por direito divino.
Depois do indulto de Temer, em que alguém com o cumprimento de apenas 1/5 da pena poderia ser indultado, pensamos seriamente se essa tese não faria bastante sentido (v., p. ex., HP 29/08/2019, Ex-tesoureiro do PT é beneficiado pelo indulto natalino de Temer) .
Entretanto, Rui Barbosa, em sua acusação ao governo Hermes da Fonseca, manifestou opinião diferente:
“Nenhum poder mais augusto confiou a nossa lei fundamental ao presidente do que o indulto. É a sua colaboração na justiça. Não se lhe deu, para se entregar ao arbítrio, para se desnaturar em atos de validismo, para contrariar a justa expiação dos crimes.
“Pelo contrário, é o meio, que se faculta ao critério do mais alto magistrado nacional, para emendar os erros judiciários, reparar as iniquidades da rigidez da lei, acudir aos arrependidos, relevando, comutando, reduzindo as penas, quando se mostrar que recaem sobre inocentes, exageram a severidade com os culpados, ou torturam os que, regenerados, já não merecem o castigo, nem ameaçam com a reincidência a sociedade. Todos os chefes de Estado exercem essa função melindrosíssima com o sentimento de uma grande responsabilidade, cercando-se de todas as cautelas, para não a converter em valhacoito dos maus e escândalo dos bons” (Rui Barbosa, Ruínas de um Governo, Ed. Guanabara, Rio, 1931, p. 108).
Não há coisa mais oposta a isso do que o indulto anunciado por Bolsonaro, o paladino das quadrilhas milicianas.
Pois Bolsonaro quer transformar o indulto em um pálio para assassinos impunes. Não quaisquer assassinos, mas aqueles da sua preferência.
C.L.
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