O ataque de Bolsonaro à ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, e ao pai dela, general Alberto Bachelet, torturado até à morte durante a ditadura de Augusto Pinochet, é algo tão nojento, tão vomitante, tão repugnante, que tem apenas uma comparação possível: os seus ataques ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e ao pai deste, Fernando Santa Cruz, torturado até à morte pela ditadura de 1964 (v. HP 29/07/2019, Bolsonaro debocha de assassinato do pai do presidente da OAB durante a ditadura).
Que a única comparação possível de uma infâmia de Bolsonaro seja com outra infâmia de Bolsonaro, é uma medida da degeneração que ocupa a cadeira presidencial.
Michelle Bachelet, que atualmente é Alta-Comissária da ONU para os Direitos Humanos, manifestara preocupação, durante uma entrevista em Genebra, com o aumento, no primeiro semestre deste ano, das mortes por ação policial no Rio e em São Paulo (segundo a Alta-Comissária, 1.291 mortes; a rigor, foi ainda maior o número de mortos: 1.307) e com o “discurso público que legitima execuções sumárias e uma falta de responsabilização”.
A resposta de Bolsonaro, em seu famigerado Twitter, foi: “Seguindo a linha do Macron [presidente da França] em se intrometer nos assuntos internos e na soberania brasileira, [Michelle Bachelet] investe contra o Brasil na agenda de direitos humanos (de bandidos), atacando nossos valorosos policiais civis e militares”.
Michelle Bachelet não “se intrometeu nos assuntos internos e na soberania brasileira”.
Se fosse assim, ninguém poderia denunciar, fora da Alemanha, os campos de concentração e extermínio dos nazistas, pois a denúncia deles seria, supostamente, um ataque à soberania alemã.
O que é absolutamente ridículo.
Que os nazistas tivessem, na sua época, essa pretensão, entende-se: eles queriam fazer o que bem (aliás, mal) entendessem – isto é, os maiores crimes – e não queriam ser incomodados.
Evidentemente, isso nada tinha a ver com a soberania nacional da Alemanha, mas com a ação de criminosos, que queriam ter mãos soltas para prender, torturar e assassinar.
Da mesma forma, Bolsonaro, com uma agravante: trata-se de um cachorrinho – o leitor nos perdoará o termo – de Trump. Antes de falar em soberania e assuntos internos do Brasil, ele teria, pelo menos, que lavar a boca com sabão (outra vez, leitores, e, sobretudo, leitoras, nossas desculpas, mas é difícil achar alguma expressão elegante para alguém com a boca tão suja).
O maior risco para a soberania do Brasil, no momento, é Bolsonaro. Achar que Macron, ou, mais ridículo ainda, a Comissária da ONU para os Direitos Humanos, são um risco para nossa soberania – ou seja, para a nossa independência – é coisa que parece digna de idiotas, para ser suave.
Porém, Bolsonaro disse mais:
“[Michelle Bachelet] Diz ainda que o Brasil perde espaço democrático, mas se esquece que seu país só não é uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973, entre esses comunistas o seu pai brigadeiro à época.”
O pai de Michelle Bachelet, general da Força Aérea Alberto Bachelet, foi um patriota e democrata que se opôs ao golpe de Pinochet e defendeu o governo constitucional do presidente Salvador Allende.
Foi um dos militares que honraram a sua farda e os ideais de Bernardo O’Higgins, que liderou a luta pela independência do Chile.
Por isso, foi preso e torturado pelo regime de Pinochet. Em sua última comunicação à esposa, disse que aquilo que mais lhe doía era que a tortura estava sendo lhe infligida por colegas de farda.
O general Bachelet não era – e nunca foi – comunista. Não é preciso ser comunista para ser um homem íntegro, um patriota, um democrata, um militar honrado.
Sua morte, devido à tortura, foi comprovada – e a Força Aérea do Chile prestou-lhe homenagem, em 2003.
Trata-se de um herói nacional do Chile. Ele e o general Carlos Prats – comandante do exército do Chile no governo Allende, que foi assassinado, com sua esposa, pela ditadura – são os mais conhecidos, entre os militares que se opuseram ao jorro de sangue de 1973. Mas existiram muitos.
Bolsonaro é uma pulga perto desses homens. Porém, não se conforma com sua estatura…
Vejamos, então, o golpe que ele defendeu, contra um governo constitucional que, em nenhum momento, transgrediu as leis de seu país.
O golpe de Pinochet, um hediondo banho de sangue, foi diretamente orquestrado de Washington, por Richard Nixon e Henry Kissinger, e organizado pela CIA. Hoje, até o governo dos EUA – depois da investigação do Congresso, pela Comissão Church – reconhece o fato (HP 16/09/2003, 11 de setembro de 1973: A CIA e Pinochet chacinam 10 mil chilenos).
É essa a soberania nacional que Bolsonaro defende.
O golpe da CIA no Chile instalou uma ditadura, durante 17 anos, com o fechamento do Congresso, com a proibição de todos os partidos políticos, com a obliteração da liberdade de manifestação e de imprensa – em suma, sem nenhuma instituição democrática e com a proibição de qualquer uma.
Era um regime criminoso, baseado na tortura e no assassinato, para instalar uma política de servilismo absoluto aos monopólios financeiros dos EUA.
Houve 2.298 pessoas assassinadas; até hoje, há 1.209 pessoas que, depois de comprovadamente presas, desapareceram; houve 28.259 pessoas que foram torturadas (v. o relatório da comissão presidida pelo monsenhor Sergio Valech ao então presidente Ricardo Lagos, que traz, inclusive, o nome das pessoas; um relatório posterior, ao presidente Piñera, que Bolsonaro considera seu parceiro, detectou um número maior: mais de 40 mil vítimas entre presos, assassinados e torturados: cf. Informe de la Comisión Presidencial Asesora para la Calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y Víctimas de Prisión Política y Tortura).
Tudo isso em um país que, na época, tinha um décimo da população do Brasil.
Somente um sujeito sem escrúpulos – como Paulo Guedes, que colaborou com a ditadura de Pinochet – pode elogiar esse inferno.
Michelle Bachelet – que, aliás, também foi presa e torturada durante a ditadura de Pinochet – falou, em Genebra, que, no Brasil, “vimos uma alta em violência da polícia, em meio a um discurso público que legitima execuções sumárias e uma falta de responsabilização”.
É óbvio que o discurso de Bolsonaro, copiado por sub-pulgas como Witzel, é exatamente esse: matem à vontade que eu dou um jeito; não se preocupem com a lei; que se dane a lei (v. HP 01/09/2019, Bolsonaro anuncia indulto para assassinos).
Por fim, é algo recorrente em Bolsonaro esconder-se atrás dos outros. É evidente que sua “agenda de segurança” consiste na proteção e açulamento das milícias, urbanas e rurais, ou seja, dos criminosos com que, há tanto, estabeleceu intimidade (v. HP 24/04/2019, Bolsonaro e as milícias).
Entretanto, diz ele que Michelle Bachelet ataca “nossos valorosos policiais civis e militares”.
Ou seja, ele tenta usar os policiais honrados como escudo para suas infâmias.
Mas a revelação vem na mesma frase: os mortos a que ela se referiu incluem numerosas vítimas que não eram bandidos, sequer eram suspeitos de alguma coisa – eram estudantes, trabalhadores e donas de casa (HP 19/08/2019, Witzel debocha de inocentes mortos pela polícia no Rio).
Bolsonaro, quando diz que a Alta-Comissária defende uma agenda de direitos humanos para “bandidos”, apenas diz o que é a sua própria “política de segurança” – e, aliás, o seu governo.
Já dissemos, como miliciano, ele não sabe distinguir assassinos de policiais. Aliás, ele detesta os últimos. É só ver o que aconteceu na Polícia Federal.
C.L.
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