Delegada quer explicações sobre tentativa de acesso a inquérito sigiloso da PF por parte do ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Defesa de Moro indagou sobre o estranho episódio, ocorrido em agosto de 2019, data em que o presidente tentou intervir na PF do Rio
Existem episódios que só são esclarecidos quando se juntam algumas peças no tabuleiro. Jair Bolsonaro começou sua campanha para trocar o superintendente da Polícia Federal do Rio, Ricardo Saadi, em agosto de 2019.
O então ministro da Justiça, Sérgio Moro, não conseguiu, à época, entender quais eram as motivações do presidente para a troca. A PF reagiu, mas não conseguiu impedir a saída de Saadi. O que ela fez foi barrar o nome de Alexandre Saraiva, na época o preferido de Bolsonaro.
Coincidentemente, neste mesmo período, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, atualmente preso, foi informado de que ele e Flávio eram citados num inquérito sigiloso, aberto pela PF do Rio, para investigar outros suspeitos, mas que tinha como base informações contidas no mesmo relatório do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) que apontou as irregularidades nas contas do ex-assessor e de seu chefe. Queiroz tentou ter acesso ao inquérito sigiloso.
Diante disso, a Polícia Federal pediu esclarecimentos, no último dia 19 de junho, à Superintendência do órgão no Rio de Janeiro sobre esse pedido feito por Fabrício Queiroz em 2019 de acesso ao referido inquérito sigiloso. A medida faz parte da investigação de possível interferência indevida de Bolsonaro na Polícia Federal.
O requerimento foi feito pela delegada Christiane Corrêa Machado à PF do Rio após a defesa do ex-ministro Sérgio Moro ter pedido que se investigue se Queiroz obteve cópia da investigação sigilosa.
“Visando instruir os autos do inquérito policial… solicito a Vossa Excelência informações sobre existência de eventual inquérito instaurado na SR/PF/RJ, a partir do Relatório de Inteligência Financeira…, esclarecendo se, nos respectivos autos, foram protocolados requerimentos de vistas de Fabrício de Queiroz. Caso positivo, solicito cópia desses documentos”, disse a delegada.
Para a defesa de Moro, as peças agora começam a se encaixar e explicam a coincidência de datas entre as movimentações de Queiroz junto à PF do Rio e a intenção do presidente de trocar o comando do órgão no estado.
No início mês de agosto de 2019, a defesa de Queiroz, a cargo do advogado Paulo Klein, é informada (?) sobre o inquérito sigiloso da PF que, apesar de não investigá-lo, mencionava o ex-assessor, com base no relatório do COAF. O relatório havia sido entregue à PF em julho de 2018. Irregularidades nas contas do senador também constavam do relatório do órgão de inteligência financeira. O pedido do advogado de Queiroz à Justiça para ter acesso ao inquérito foi feito em 29 de agosto de 2019.
Duas semanas antes, no dia 15, Bolsonaro atropelou o comando geral da PF e afirmou que iria trocar o superintendente do Rio de Janeiro, o delegado Ricardo Saadi.
O inquérito, ao qual Queiroz teria tentado acesso, foi instaurado na PF, segundo a Folha de S. Paulo, em fevereiro de 2019 pelo delegado Acen Amaral Vatef, a pedido do Ministério Público Federal, e apurava especificamente crimes de evasão de divisa praticados, em tese, por um advogado do Rio Grande do Sul. Este também era citado no relatório do COAF.
A juíza Adriana Cruz negou o pedido de Queiroz afirmando que o ex-assessor de Flávio não era investigado nos autos, mas concedeu cópia do relatório que o mencionava.
O episódio revela que a defesa de Queiroz teve conhecimento sobre a menção ao PM aposentado em inquérito sob sigilo que não se referia a ele e nem a Flávio. A defesa de Moro pediu explicações sobre este episódio.
Pouco tempo depois, conforme relatou o ex-aliado de Bolsonaro, o empresário Paulo Marinho, à Folha de S. Paulo, Flávio Bolsonaro também foi informado por um delegado da PF sobre a existência do relatório mencionando Queiroz no âmbito de um inquérito que investigava dez deputados estaduais. O senador e Queiroz não eram alvos da apuração da PF naquele momento.
Como o relatório do COAF continha, entre outras coisas, as movimentações suspeitas de Fabrício Queiroz e Flávio, e foi compartilhado com a PF e o MP, o inquérito da PF fazia referência aos dois, mas não os tinha como alvo das investigações.
Mesmo assim, Bolsonaro ficou injuriado e quis trocar o comando da PF do Rio porque, segundo disse ele na reunião ministerial do dia 22 de abril, estava havendo “perseguições” e ele não esperaria sua família “se foder”.
Na início da perseguição a Saadi, Bolsonaro tentou justificar sua decisão – anunciada publicamente, e sem consultar ninguém – de trocar o comando da PF do Rio, por uma suposta falta de produtividade do delegado.
O pretexto não colou porque Saadi tinha tirado a superintendência do Rio dos últimos lugares no ranking de produtividade da Polícia Federal e colocado o órgão estadual em quarto lugar neste quesito. Havia, portanto, motivos ocultos para o presidente se empenhar pessoalmente pela troca do comando no Rio.
Agora as peças começaram a se encaixar no tabuleiro. Não por outro motivo, o questionamento sobre o assunto foi provocado pelo ex-ministro Sérgio Moro. Ele agora passou a entender mais profundamente as reais motivações do presidente para intervir na PF do Rio.
O relatório do Coaf surgiu em maio de 2018, no âmbito da Operação Cadeia Velha, da Polícia Federal, que investigava as denúncias feitas pelo doleiro Álvaro Novis, em acordo de colaboração premiada. Novis afirmou ter distribuído R$ 500 milhões entre 2011 e 2012 em propina para deputados estaduais a pedido de empresários de ônibus. Três deputados foram presos.
É neste relatório que aparecem as movimentações suspeitas de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro. Ao ser acionado pelos prováveis ilícitos apontados pelo relatório do Coaf, o Ministério Público do Rio solicitou abertura de investigação do esquema de lavagem de dinheiro de deputados através da contratação de funcionários fantasmas e devolução de salários.
Neste inquérito são investigados Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz. A prisão deste último na quinta-feira (18) se deu exatamente por tentativa de obstrução da Justiça por pare dele, Queiroz, e de sua mulher, Márcia Oliveira.
Na Polícia Federal, as investigações contra os outros suspeitos também prosseguiram. Em meados de outubro de 2018 estava prevista a deflagração da Operação Furna da Onça, que sucederia a Operação Cadeia Velha, mas ela foi adiada para depois do segundo turno das eleições presidenciais. Em 8 de novembro é deflagrada a Operação Furna da Onça para seguir as investigações das propinas na Assembleia Legislativa do Rio. Resultado: mais sete deputados estaduais do Rio de Janeiro foram presos.
Além do pedido de esclarecimentos sobre as estrepolias de Queiroz na PF do Rio, e de comunicar ao STF sobre a necessidade do depoimento de Jair Bolsonaro, a PF pediu também ao governo registros do processo de exoneração de Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da corporação.
A polícia quer que a Secretaria-Geral da Presidência da República envie “tela com os registros de andamento do processo de exoneração do ex-Diretor Geral da Polícia Federal, Maurício Leite Valeixo (Decreto de 23 de abril de 2020), contendo mídia com todos os documentos exportados, gerando arquivo zip do referido processo”.