Jair Bolsonaro hipotecou seu apoio ao atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que, na segunda-feira (15/07), paralisou as investigações sobre as movimentações financeiras suspeitas de seu filho, Flávio Bolsonaro.
Com sua já conhecida proficiência verbal, Bolsonaro declarou o seguinte:
“Pelo o que eu sei, pelo o que está na lei, dados repassados, dependendo para quê, devem ter decisão judicial. E o que é mais grave na legislação. Os dados, uma vez publicizados, contaminam o processo.”
A consideração – que apenas expressa o desejo de Bolsonaro, contemplado por Toffoli -, exposta durante entrevista coletiva na sexta-feira (19/07), é absolutamente mentirosa, coisa ainda mais grave quando se trata do presidente da República.
Mais ainda quando se trata do respeito às leis do país.
E, mais ainda, quando a decisão de Toffoli, a pedido de Flávio Bolsonaro, paralisou todas as investigações abertas a partir de movimentações suspeitas detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), pela Receita Federal e pelo Banco Central (BC) e comunicadas, de acordo com a lei, ao Ministério Público ou à Polícia.
O que inclui investigações sobre as milícias, no Rio de Janeiro; investigações sobre o PCC, em São Paulo; e investigações sobre corruptos, ladrões do dinheiro e do patrimônio do povo, em todo o país.
Algumas horas antes da declaração de Bolsonaro, a direção da Polícia Federal (PF) orientou todos os seus delegados a devolver à Justiça os inquéritos que continham dados do Coaf, da Receita ou do BC.
O que significa, segundo fontes da PF, centenas de inquéritos sobre corrupção, tráfico e outras formas de crime organizado, interrompidos pela decisão de Toffoli em prol de Flávio Bolsonaro.
LEIS
A autorização para que os órgãos de fiscalização (Coaf, Receita, BC) enviem os casos suspeitos de crime para o Ministério Público e a Polícia (federal ou estadual) está expressa nas leis, entre elas:
1) Na Lei Complementar nº 105/2001, que regulamenta o sigilo bancário (“Art. 1º §3º Não constitui violação do dever de sigilo: IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa”).
Esta Lei Complementar regulamenta, exatamente, a parte do artigo 5º da Constituição que é a base do sigilo bancário.
Resumindo o parágrafo acima: qualquer banco privado, diante de um ilícito, pode enviar o caso para o Ministério Público ou para a Polícia – aliás, é obrigado a fazer isso.
Quanto mais quando se trata de órgãos públicos, como o Coaf, a Receita e o BC.
2) Pela lei Lei nº 9.613/1998, que criou o Coaf com a função de combater a lavagem de dinheiro proveniente do crime (“art. 15: O Coaf comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito”).
3) Pela Lei 9.430/1996, que regula a legislação tributária federal (“art. 83: A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos (…) e aos crimes contra a Previdência Social (…) será encaminhada ao Ministério Público…”).
Portanto, o apoio de Bolsonaro à impunidade de seu filho, através da decisão de Toffoli, é abertamente ilegal.
E o sujeito ocupa a cadeira de presidente da República.
SILÊNCIO
Porém, mais importante ainda, como lembrou a procuradora geral da República, Raquel Dodge, os órgãos de fiscalização estão obrigados a enviar casos suspeitos, como o de Flávio Bolsonaro, para os órgãos de investigação (Polícia e MP, sobretudo).
O próprio STF, ao julgar a ADI 15714, estabeleceu que “é obrigatória, para a autoridade fiscal, a remessa da notitia criminis ao Ministério Público”.
Isso foi aprovado, no STF, por 9 a 2 (os ministros Ayres de Britto e Ellen Gracie votaram contra), no dia 10 de dezembro de 2003.
O relator desse julgamento, e voto vencedor, foi o sr. Gilmar Mendes – que agora aderiu a um posicionamento oposto, depois que soube que a Receita estranhou alguma coisa em seus rendimentos.
Porém, vejamos trecho de uma sentença do STF (na verdade, um relatório, mas do ministro que elaborou o voto vencedor no julgamento) sobre o compartilhamento de dados com o Ministério Público, e a suposta “quebra de sigilo” dessas comunicações:
“Trata-se de uma transferência de dados sigilosos de um determinado portador, que tem o dever de sigilo, para outro, que mantém a obrigação de sigilo, permanecendo resguardadas a intimidade e a vida privada do correntista” (cf. STF, julgamento das ADIs nos 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, 24/02/2016).
Ou seja, não há quebra de sigilo no compartilhamento de informações – isto é, o envio de casos suspeitos ou abertamente criminosos – ao Ministério Público ou à Polícia.
O autor desse texto, ou suposto autor (o STF tem uma assessoria muito competente), é o ministro Dias Toffoli, o mesmo que, na segunda-feira (15/07), suspendeu a investigação sobre Flávio Bolsonaro – e todas as investigações com base em dados do Coaf, Receita ou BC – porque nela estaria acontecendo “quebra de sigilo”.
A alegação de Bolsonaro para apoiar uma decisão que privilegia seu próprio filho, é, reduzindo-se a coisa aos termos mais essenciais, a mesma de Dias Toffoli, em entrevista à imprensa.
Porém, a frase acima é incorreta: Dias Toffoli é quem repetiu Bolsonaro – e não vice-versa. O ataque de Bolsonaro ao Coaf – e apenas porque o órgão descobriu as “movimentações atípicas” nas contas de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz – foi no dia 3 de janeiro. Tinha o mesmo conteúdo da decisão, tomada na segunda-feira, por Toffoli (v. HP 04/01/2019, Bolsonaro ataca Coaf: “quebrou sigilo de Queiroz sem autorização judicial” e HP 21/05/2019, Cronologia do crime: os Bolsonaros & outros cidadãos acima de qualquer suspeita).
Dias Toffoli descobriu, agora, que haveria uma “sede de poder” dos órgãos de fiscalização e investigação.
É interessante que Toffoli não veja essa “sede de poder” na transbordante corrupção que tomou conta da vida pública do país. Só consegue enxergá-la nos órgãos que detectaram essa luxuriante roubalheira.
São esses órgãos – mesmo sem nenhuma ilegalidade do Coaf ou da Receita – que, na sua opinião, é preciso deter a todo o transe.
Nisso, ele não se distingue de Bolsonaro.
Desde que o Coaf descobriu as anomalias na conta de Queiroz e Flávio Bolsonaro – e, inclusive, na conta de sua própria esposa -, o órgão tornou-se alvo de Bolsonaro.
A tal ponto que rompeu seu acordo com Sérgio Moro, de colocar o Coaf no Ministério da Justiça, para deixá-lo debaixo de Paulo Guedes. É verdade que Moro, exibindo um carreirismo tão aético quanto estúpido, submeteu-se a esse rompimento do acordo.
O resto é silêncio – e aqui não há parentesco com Hamlet, que encerra com essa frase a sua vida.
Trata-se de algo muito mais vulgar: o silêncio desse mudo opcional, o sr. Moro, no momento em férias nos EUA.
C.L.