“Isso demonstra mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia”, diz Felipe Santa Cruz, filho de Fernando e presidente da OAB
Jair Bolsonaro afirmou, na segunda-feira (29), que “um dia” contará ao presidente da Ordem do Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, como o pai do jurista, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, desapareceu, depois de preso durante a ditadura, “caso a informação interesse ao filho”.
Felipe tinha dois anos quando o pai desapareceu.
“Um dia se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, disse Bolsonaro. “Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, complementou.
Fernando Santa Cruz desapareceu ao ir a um encontro, no Rio de Janeiro, em 1974, com um colega, Eduardo Collier Filho. Os dois foram presos em Copacabana, no dia 23 de fevereiro daquele ano, como relata o livro “Direito à Memória e à Verdade”, produzido pelo governo federal.
Bolsonaro atacou o presidente da OAB e seu pai depois de não recorrer da decisão que considerou Adélio Bispo, autor da facada que o atingiu durante a campanha, inimputável (isento de pena) devido à doença mental.
Bolsonaro não recorreu. Ao invés disso, ele preferiu agredir a OAB e o seu presidente:
“Como não recorri, agora ele é maluco até morrer. Vai ficar em um manicômio judicial, uma prisão perpétua. Estou sabendo que ele está aloprando lá. Abre a boca, pô. Ah, não tem valor porque é maluco, abre a boca, pô! Quem sabe dê o fio da meada”.
“Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB?”, indagou.
A OAB não impediu nada durante o processo de Adélio. Bolsonaro falsificou o que aconteceu, confundindo o processo de Adélio com outro, em que atuou o mesmo advogado, Zanone Manuel de Oliveira. A falsificação já fora publicada, no início do mês, no Facebook.
Nesse outro caso, que nada tem a ver com o processo de Adélio, a OAB realmente recorreu contra a apreensão do telefone do advogado e em defesa do princípio da inviolabilidade profissional e constitucional de um advogado – o que é, exatamente, a função da OAB.
Porém, o que a declaração de Bolsonaro expõe, é que ele acha perfeitamente normal atropelar as leis e desrespeitar os direitos de todos, inclusive dos advogados em exercício.
O destempero de Bolsonaro contra Santa Cruz e a OAB é pura vendetta. Em abril de 2016 a seccional da OAB do Rio de Janeiro, presidida à época por Felipe Santa Cruz, protocolou na Câmara dos Deputados um requerimento, pedindo a cassação do mandato do então deputado Jair Bolsonaro, por quebra de decoro parlamentar e apologia à tortura.
Na oportunidade, Bolsonaro, ao declarar seu voto favorável à abertura do impeachment de Dilma Rousseff, homenageou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI de São Paulo de 1970 a 1974, quando 47 presos foram assassinados e houve 502 denúncias de tortura, algumas mais do que notórias, como a da atriz Bete Mendes, depois deputada federal.
“Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, disse o então deputado ao votar pela abertura do processo. A seccional da OAB do Rio também enviou um ofício ao então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, classificando a declaração como um “ato abominável” e pedindo providência ao Ministério Público.
Ustra foi condenado na área cível a pagar indenização por danos morais por tortura. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade afirma que Ustra cometeu crimes de tortura e execuções.
As declarações de Bolsonaro sobre Fernando Santa Cruz foram amplamente repudiadas por toda a sociedade brasileira.
Primeiro porque revelam um desrespeito inaceitável contra a memória do país e aos que lutaram contra a ditadura, particularmente ao pai do atual presidente da OAB, assassinado pelos grupos de extermínio da ditadura e, segundo, porque mostram bem os ambientes apodrecidos, e estes, sim, sanguinários, por onde Bolsonaro sempre chafurdou.
OAB
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os representantes de todas as seccionais da entidade nos estados repudiaram a declaração de Bolsonaro (PSL). Em nota oficial, os advogados prestaram solidariedade a Santa Cruz e a todas as famílias de quem foi morto, torturado ou desaparecido ao longo da história, especialmente durante a ditadura.
“Todas as autoridades do País, inclusive o Senhor Presidente da República, devem obediência à Constituição Federal, que instituiu nosso país como Estado Democrático de Direito e tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, na qual se inclui o direito ao respeito da memória dos mortos. O cargo de mandatário da Chefia do Poder Executivo exige que seja exercido com equilíbrio e respeito aos valores constitucionais, sendo-lhe vedado atentar contra os direitos humanos, entre os quais os direitos políticos, individuais e sociais, bem assim contra o cumprimento das leis”, diz a nota.
PAULO CÂMARA
O governador de Pernambuco, Paulo Câmara, protestou, na segunda-feira (29), através de sua rede social. “A divergência de ideias não deve, nunca, extrapolar os limites da civilidade e do respeito ao próximo. Considero que o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, foi hoje violentamente agredido, por palavras que não são apenas grosseiras, são desumanas”, disse o governador.
“O Brasil precisa, cada dia mais, de exemplos que valorizem a tolerância, o diálogo, a solidariedade, a construção. O Presidente da República, lamentavelmente, tem seguido a direção contrária. Sob o ponto de vista político e pessoal, o comentário que buscou atingir Felipe e a memória do seu pai, o pernambucano Fernando Santa Cruz, ataca a todos os que prezam princípios básicos da convivência em sociedade. A Felipe e sua família, toda a minha solidariedade”, acrescentou Câmara.
Felipe Santa Cruz também manifestou-se em nota pessoal: “O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro – e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos. Meu pai era da juventude católica de Pernambuco, funcionário público, casado, aluno de Direito. Minha avó acaba de falecer, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado”, disse Felipe.
CONDEGE
O Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) manifestou, também na segunda (29), solidariedade ao presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, sobre as repulsivas declarações de Bolsonaro: “A consolidação da democracia brasileira requer que as autoridades públicas resgatem a memória e a verdade, bem como velem pela dignidade de todos aqueles que sofreram com o abuso do poder estatal”.
O Condege recomenda “que os representantes dos poderes e demais instituições façam os debates políticos, quando necessário, mas de forma cortês, sem jamais usar como estratégia argumentativa declarações que escarnecem da dor pessoal alheia, ainda mais quando esta dor resulta de abusos do próprio Estado”. “O respeito entre as instituições e às pessoas é a base da democracia e o que legitima a própria existência da República”, prossegue a nota.
PARLAMENTARES
A líder da Minoria na Câmara dos Deputados, Jandira Feghali (PCdoB-RJ), também prestou solidariedade ao dirigente da OAB e fez duras críticas a Bolsonaro.
“Somos governados por um ser desprezível, que do cargo da Presidência insinua os crimes da Ditadura que fizeram vítima o pai de Fernando Santa Cruz. Deplorável! Nossa solidariedade, Fernando! Não permitiremos que a verdade seja esquecida e a justiça não seja feita!”, escreveu no Twitter.
“Fala cruel, nojenta, asquerosa. Jair Bolsonaro tem demonstrações de agressividade psicopata”, disse o deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA). Outros parlamentares também protestaram, entre eles o líder do PT no Senado, senador Humberto Costa.
MARINA SILVA
A ex-senadora e ministra Marina Silva também se solidarizou com Felipe Santa Cruz e contra as aberrações ditas por Bolsonaro:
“Falta ao presidente sentido de dignidade e compostura em relação ao cargo que ocupa. Brinca com uma situação dolorosa na vida de um filho que perdeu o pai durante a ditadura. É ultrajante! Depois de atacar a imprensa livre, atenta contra a advocacia, outro pilar da democracia”, disse ela.
ANISTIA
A Anistia Internacional divulgou no início da tarde da segunda-feira, 29, uma nota de repúdio aos comentários de Jair Bolsonaro sobre Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira. E pediu que o caso seja levado à justiça.
“É terrível que o filho de um desaparecido pelo regime militar tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo do respeito e da justiça no País, declarações tão duras”, afirmou a diretora-executiva da Anistia no Brasil, Jurema Werneck. “O Brasil deve assumir sua responsabilidade, e adotar todas as medidas necessárias para que casos como esses sejam levados à justiça. O direito à memória, justiça, verdade e reparação das vítimas, sobreviventes e suas famílias deve ser defendido e promovido pelo Estado Brasileiro e seus representantes”.
Quem foi Fernando de Santa Cruz Oliveira
Fernando era estudante de direito e funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica em São Paulo e integrante da Ação Popular. À época de seu desaparecimento, tinha emprego e endereço fixos e, portanto, não estava clandestino ou foragido dos órgãos de segurança.
Militante da Ação Popular (AP), organização advinda da juventude católica, fundada em 1962, o pai do atual presidente da OAB foi visto pela última vez por seus familiares em 23 de fevereiro de 1974, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Fernando de Santa Cruz Oliveira havia saído de casa para encontrar um amigo de infância e havia dito à família que, caso não voltasse até as 18 horas daquele dia, “provavelmente teria sido preso”.
A Comissão Nacional da Verdade, criada pelo Estado para fazer um registro oficial dos crimes da ditadura, relata que Fernando e seu amigo — Eduardo Collier Filho, também militante contra a ditadura — provavelmente foram presos por agentes do DOI-Codi no Rio.
O relatório narra a partir daí o esforço dos familiares dos dois para descobrir, sem sucesso, o paradeiro de Fernando e Eduardo.
A mãe de Fernando chegou a ir ao quartel-general do 2º Exército, em São Paulo, quando recebeu a informação, de um agente do local, de que seu filho e Eduardo estavam naquelas dependências. Ao retornar, poucos dias depois, recebeu de outro funcionário uma informação diferente: a de que ocorrera um equívoco e que Fernando e Eduardo não estavam no 2º Exército.
Os familiares seguiram com as buscas, ainda de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Foram enviadas cartas ao comandante do 2º Exército e ao general Golbery do Couto e Silva, que em março de 1974 assumiu a chefia da Casa Civil do governo Ernesto Geisel.
A família recebeu uma resposta do 2º Exército, que negou que Fernando estivesse preso desde fevereiro de 1974 em “qualquer dependência” da instituição [2º Exército].
O texto da Comissão da Verdade também revela que a família escreveu cartas à primeira-dama dos Estados Unidos, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a dom Helder Câmara, entre outras pessoas influentes.
O regime disse, em resposta à CIDH, que Fernando estaria vivendo na clandestinidade.
Apesar da versão oficial, a Comissão da Verdade cita um documento de 1978 no qual o Ministério da Aeronáutica reconhece que Fernando foi preso em fevereiro de 1974.
“Já na década de 1990, o Relatório da Marinha enviado ao então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em dezembro de 1993, informava que Fernando teria sido preso no dia 23 de fevereiro de 1974, sendo considerado desaparecido desde então”, acrescenta o relatório.
A Comissão da Verdade elencou duas hipóteses para o caso do pai do atual presidente da OAB. A primeira é a de que, depois de preso no Rio, ele foi levado para o DOI-Codi em São Paulo.
“Essa indicação do DOI-Codi/SP como possível órgão responsável pelo desaparecimento de Fernando e Eduardo aponta para a possibilidade de os corpos dos dois militantes terem sido encaminhados para sepultamento como indigentes no Cemitério Dom Bosco, em Perus”, diz o texto.
Outra possibilidade levantada pela comissão é a de que Fernando e seu amigo foram encaminhados para a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), “e seus corpos levados posteriormente para incineração em uma usina de açúcar”.
“Fernando de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho permanecem desaparecidos até hoje”, conclui a Comissão Nacional da Verdade. No relatório da Comissão Nacional da Verdade, responsável por investigar casos de mortos e desaparecidos na ditadura, não há registro de que Fernando tenha participado da luta armada.
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