Chupou o laranja e jogou bagaço fora
Laranjal abençoado só o de Flávio Bolsonaro e do ministro do Turismo
O vídeo de um minuto que Bolsonaro divulgou, ao mesmo tempo que seu porta-voz anunciava a demissão de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência da República, é uma mistura de maluquice, cinismo e covardia, assombroso pela concentração, em tão curto tempo, de todas essas coisas e outras mais – nenhuma positiva.
O porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, esclarecera os motivos de Bolsonaro para demitir Bebianno:
“O motivo da exoneração do ministro Bebianno é de foro íntimo do nosso presidente”, disse Barros.
“Foro íntimo”?
Foro íntimo pode ser a religião (ou a falta de religião) de cada um, pode ser o motivo para se separar de uma mulher (ou de um homem) – ou até a chamada “orientação sexual” de um cidadão (ou cidadã).
Mas demitir um ministro por razões de foro íntimo é coisa tão peculiar, que jamais houve na História da República – é verdade, também, que jamais houve uma esculhambação parecida com o governo Bolsonaro na História da República. Nem o governo Collor.
Uma repórter perguntou ao porta-voz se o motivo da demissão era o laranjal de Bebianno no PSL (v. Bolsonaro manda investigar Bebianno, mas abafa os ilícitos de seu filho Flávio).
Se foi isso, continuou a repórter, por que não foi demitido, também, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, dono de outro laranjal (v. Ministério Público vai investigar “laranjal” de auxiliar de Bolsonaro em Minas)?
E por que o presidente demorou tanto tempo para demitir Bebianno?
Resposta do porta-voz: “O nosso presidente demandou o tempo necessário para consecução da sua decisão em função de vários atores, de várias ações, e é natural que, pensando em nosso país, isso se faça de forma mais consensual e ao mesmo tempo mais maturada possível”.
Todo mundo, naturalmente, ficou esclarecido.
LARANJAS & LARANJAS
Então, ainda antes que acabasse a entrevista coletiva do porta-voz, Bolsonaro divulgou o seu vídeo (v. abaixo).
Na tela, apareceu um robô – ou um androide, embora muito primitivo, se comparado àqueles de “Blade Runner, o Caçador de Androides”, o filme de Ridley Scott.
O olhar era mais tresloucado que aqueles de Collor. A imagem na tela quase não se movia, como se tivesse engolido um frasco de laquê.
O robô também não sabia usar direito a linguagem humana – em vez, disso, usava uma caricatura de linguagem humana.
Começou assim:
“Comunico que, desde a semana passada, diferentes pontos de vista sobre questões relevantes trouxeram a necessidade de uma reavaliação. Avalio que pode ter havido incompreensões e questões mal entendidas de parte a parte, não sendo adequado pré-julgamento de qualquer natureza”.
De que estaria ele falando?
Que “pontos de vista”?
Que “questões relevantes”?
Se são “relevantes”, supõe-se que sejam relevantes para o país – pelo menos, a ponto do presidente da República se dar ao trabalho de gravar um vídeo sobre elas.
Então, quais são “elas”?
“Incompreensões”, “questões mal entendidas de parte a parte” – uai, então por que não passaram da incompreensão para a compreensão? Ou do mau entendimento para o bom entendimento?
De que o robô estava falando?
Como é possível não fazer “pré-julgamento de qualquer natureza”, se não sabemos do que se trata?
De que ele está querendo escapar, com essa história de que não é “adequado pré-julgamento de qualquer natureza”?
De que julgamento ele tem medo?
Em seguida, a covardia torna-se explícita: “Tenho que reconhecer [tem que reconhecer?] a dedicação e comprometimento do senhor Gustavo Bebianno à frente da coordenação da campanha eleitoral em 2018. Seu trabalho foi importante para o nosso êxito. Agradeço ao senhor Gustavo pelo esforço e empenho quando exerceu a direção nacional do PSL e continuo acreditando na sua seriedade e qualidade do seu trabalho. Reconheço também sua dedicação e esforço durante o período que esteve no governo”.
Se um sujeito chegasse de Marte (ou até de lugar mais próximo, digamos, a península de Kamtchatka), chegaria à conclusão de que Bolsonaro iria, em seguida, condecorar esse Bebianno com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito.
Qual o quê… (como dizia aquela música).
“Como presidente da República comunico que, na data de hoje, tomei a decisão de exonerar o senhor ministro-chefe da Secretaria-Geral. Desejo ao senhor Gustavo Bebianno meus sinceros votos de sucesso em sua nova jornada.”
Portanto, todos sabem, agora, como Bolsonaro retribui a “dedicação”, o “comprometimento”, o “trabalho importante para o seu êxito”, o “esforço”, o “empenho”.
Sobretudo quando “continua acreditando na seriedade e na qualidade do trabalho” do sujeito.
Enquanto dizia isso, o ríctus facial desmentia todos os elogios.
Que eram mais falsos do que a virtude da falecida Messalina.
Ou mais falsos que a honestidade do presidiário Cunha, com quem Bolsonaro costumava participar de manifestações contra a corrupção (v. foto abaixo).
Bebianno é um oportunista – como, aliás, todo o círculo mais próximo a Bolsonaro, a começar por ele mesmo.
Aliás, como muitos repetiram: quem é esse Bebianno?
Do ponto de vista político, o sujeito só não é a maior nulidade que já chegou a ministro, porque Bolsonaro nomeou o Araújo, a Damares, o colombiano da Educação e aquele plantador de laranjas do Turismo (o governo Bolsonaro não tem ministro do Trabalho, mas tem um ministro do Turismo).
Desses, Bebianno era o mais íntimo de Bolsonaro.
Certamente, quando surgiu o seu laranjal, foi uma oportunidade para desviar a atenção do laranjal do próprio Bolsonaro – isto é, da parte que estava sob seu filho Flávio, gerenciado pelo notório Queiroz (v. Tiro, porrada e bomba).
Junte-se a isso o vazamento da proibição de Bolsonaro a um encontro de Bebianno com um diretor da Globo (“como você coloca nossos inimigos dentro de casa?”, diz ele, na gravação), o ataque do filho mais novo ao rival (rival?), e é possível entender a reação de um desequilibrado que se complica quando o pensamento exige mais de dois neurônios (embora seja uma imagem, não é uma brincadeira – se o leitor tem dúvidas, veja, abaixo, o vídeo de Bolsonaro sobre a demissão de Bebianno).
Porém, por que Bolsonaro vacilou tanto em demitir Bebianno?
Na sexta-feira, inclusive, depois de alguma pressão vinda do PSL, Bolsonaro dissera, em sua linguagem presidencial: “Então, tá. Deixa esse filho da puta lá que eu vou ver o que faço com ele no governo”.
Isso é que é liturgia do cargo…
Alguns entenderam, com essa frase, que Bebianno permaneceria na Secretaria-Geral da Presidência.
Porém, Bolsonaro queria demitir com um prêmio de consolação: uma diretoria em Itaipu; quando Bebianno recusou, ofereceu o Palazzo Pamphili, isto é, a embaixada do Brasil em Roma, instalada nesse palácio renascentista.
Se tais ofertas de consolação para Bebbiano pareciam um cala-boca, mais ainda o vídeo de Bolsonaro.
Por que ele iria elogiar publicamente alguém que, todo mundo sabe, passou a odiar (basta olhar a sua cara, no vídeo, para percebê-lo)?
Bolsonaro, rancoroso, ressentido, doente – como sempre foi desde a época em que saiu do Exército, depois que se descobriu seu plano de colocar explosivos de baixa potência nas dependências da Vila Militar, no Rio (v. Terrorismo de baixa potência) –, elogiar, ainda que pro forma, alguém que odeia?
O que Bebianno sabe?
O que fez Bolsonaro vacilar em demiti-lo, engolindo espumas torrenciais de rancor, e, depois, quase babando na gravata, fazer, a Bebianno, elogios robotizados em um vídeo?
CARLOS LOPES