Em um país em que vereadores são condenados por uma viagem irregular custeada pelo Município, o candidato midiático sustentou pelo menos dois anos de campanha com transporte aéreo pelo país pago pelo contribuinte. Se o chamado Tribunal da Democracia fechar os olhos também para isso, dará o atestado da sua inutilidade como órgão de jurisdição.
LÉO DA SILVA ALVES (*)
A candidatura de Jair Bolsonaro é uma fraude à democracia, quanto infames são os métodos utilizados para fabricar um mito com a consistência da argila. Dizê-lo nesse tom não é um destempero produzido por um ponto de vista obstinado; é uma constatação com base em elementos que já foram apontados à Justiça Eleitoral antes das convenções partidárias e que podem ser aferidos a qualquer tempo em ambiente de auditoria.
O emprego de fakes news, o impulsionamento de matérias tendenciosas por robôs nas redes sociais e o uso de perfis falsos são procedimentos de deslealdade com o próprio eleitor e de fácil constatação, tanto que geram a reação de diversos partidos políticos. Mas há algo ainda não observado pelo controle social: o patrocínio do erário para urdir essa impostura que se transformou em um devaneio para milhões de brasileiros arrastados pelo embuste. No dia 6 de junho de 2018, com considerável antecedência às convenções, o Partido Pátria Livre teve a iniciativa precursora de peticionar ao Tribunal Superior Eleitoral pedindo providências regulatórias “de salvaguarda do processo democrático, como é internacionalmente concebido”, providência até hoje a repousar na mesa da Presidência sem qualquer desfecho. O documento mostrou o vício de pré-candidaturas que ganhavam corpo com “extensa cobertura midiática”, em propaganda eleitoral disfarçada em entrevistas e talks shows. Já se construía para o eleitor a falsa percepção de que necessariamente ou só eles existem, ou só eles teriam capacidade para o concurso democrático e o exercício do poder. Sem absolver a outros, Jair Bolsonaro foi quem mais usou esse espaço minguado de escrúpulo, despertando a intolerância enrustida no coração de alguns, produzindo alucinações em mentes frágeis de outros e anestesiando o senso crítico de pessoas originalmente esclarecidas.
Quem não sabia com dois anos de antecedência das pretensões presidenciais do algoz da sinceridade? Pois lá estava ele, nos canais de televisão, histriônico, patético, agressivo tanto com a língua portuguesa quanto com os valores da civilidade. E ali chegara porque, à custa do contribuinte, produzia horrores no Congresso Nacional e, dessa forma, se candidatava para a audiência de programas que se sustentam com a vulgaridade. Mas, muito mais do que isso – e esse é o ponto sensível da causa – viajava pelo país com o seu circo mambembe, custeado por verba de impostos e fantasiado de protetor dos melhores costumes.
Bolsonaro inventou a figura do deputado nacional para justificar o uso de recursos públicos nas andanças por um Brasil com dimensões de continente. Deixou de ser o representante do povo do seu estado, nos termos da Constituição Federal, para adotar essa estampa enganosa, com a qual subtraiu o dinheiro dos contribuintes e exerceu a soberba particular.
A praxe de uso desordenado de passagens aéreas por deputados, e embolso do quinhão de milhas pelos trajetos pagos pelos cidadãos, não isenta um candidato à Presidência da República da corresponsabilidade pelo sistema fraudatório. É óbvio que todo regramento sobre cota e concessão de passagens aéreas e demais taxas para deputados está associado ao serviço, missão oficial ou deslocamento à origem. Essa despesa pública não se desvincula da finalidade lícita que rege os atos e ações administrativas.
Vereadores em todo o país são todos os dias, aqui e ali, condenados por improbidade administrativa por conta de uma viagem sem justificativa paga pela Câmara de Vereadores, perdem o mandato e são acionados pelo respectivo Tribunal de Contas para a reparação do ínfimo dano. Servidores federais experimentam o calvário quando não conseguem justificar o emprego da verba correspondente a uma diária de viagem em treinamento. Não ajudaremos a construir o “Brasil acima de tudo” se ficarmos complacentes com esse jogo de desequilíbrio, que esmaga o pequeno e agasalha o manhoso.
Com efeito, o que fez o controle interno no Parlamento nacional diante da evidente imoralidade do uso de passagens aéreas para fins eleitorais? A campanha do mito contrafeito não resiste a uma auditoria nesse sentido. Vasculhados os percursos e as origens do custeio desses itinerários, a sociedade ficará estarrecida com a desfaçatez do beneficiário e com a inutilidade de regras de proteção da Fazenda Pública. Para se usar em economia os indicativos do direito, os princípios da moralidade, da impessoalidade, da probidade, da razoabilidade e da boa-fé foram pisoteados como degraus de uma escada que conduz ao ponto mais alto do esbulho. Para além dos efeitos no plano eleitoral, a se considerar a lei para todos, têm-se a examinar as responsabilidades de iniciativas do Parquet federal e do Tribunal de Contas da União.
Deixe-se claro que esmurrar a campanha enganosa do candidato falastrão não santifica o lado oposto. O Partido dos Trabalhadores foi igualmente protagonista de enredos que passam ao largo da honestidade pública. Mas o que está em pauta neste texto é o emprego do dinheiro recolhido do tributo geral para edificar uma pré-campanha que não representa a todos os brasileiros.
De um candidato a Chefe de Estado espera-se mais, embora o histórico brasileiro não seja confortável. Todavia, e, sobretudo, sob essa ótica, é necessário que se reaja para a construção de uma democracia autêntica e uma república igualitária e justa.
Quem quer que tenha se utilizado de métodos ilícitos deve ser alcançado pela Justiça, independentemente da legenda que o abriga; quem tenha sido econômico com a verdade, deve ser barrado nos Palácios, porque se conduz aquém do espírito essencialmente honesto da nação brasileira; quem não tem freio inibitório na sua conduta pública ou privada deve sair do espaço da política nacional para ser observado no ambiente da ciência médica.
Nesse contexto, espera-se que o Ministério Público Eleitoral, a exemplo do empenho dos seus congêneres na Justiça Federal e na Justiça Estadual de primeiro grau, abra as páginas moralizadoras do direito e promova as medidas contra quem se serve do suor dos contribuintes para rejubilar a ânsia desmedida pelo poder. E que a Corte Eleitoral faça cumprir os valores dos quais se autoproclama defensora: honestidade, lealdade, respeito e responsabilidade.
*Jurista, autor e professor de ética e responsabilidade de agentes públicos; foi candidato à Vice-Presidência da República pelo Partido Pátria Livre.