
Na terça-feira (26/01), Bolsonaro, em evento promovido pelo Credit Suisse, falou o seguinte:
“Sempre disse que qualquer vacina, uma vez aprovada pela Anvisa, seria comprada pelo governo federal.”
Como é possível ser tão despudorado?
Em outubro do ano passado, depois de obrigar Pazuello a rasgar o contrato que o Ministério da Saúde assinara com o Instituto Butantan para a compra da Coronavac, vacina produzida por aquela instituição em associação com o laboratório chinês Sinovac, Bolsonaro declarou:
“Mesmo se a vacina da Covid for aprovada pela Anvisa, eu não compro. A vacina da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população. Esse é o pensamento nosso. Tenho certeza que outras vacinas que estão em estudo poderão ser comprovadas cientificamente, não sei quando, pode durar anos” (v. HP 26/10/2020, “Mesmo se a vacina da Covid for aprovada pela Anvisa, eu não compro”, diz Bolsonaro).
A declaração de Bolsonaro foi cometida em uma entrevista à rádio Jovem Pan, na noite do dia 21 de outubro de 2020.
Esta foi apenas uma das vezes em que Bolsonaro disse que não compraria a vacina do Butantan/Sinovac. Nem que a Anvisa aprovasse – como aprovou – essa vacina, hoje a principal esperança do país no combate à epidemia de Covid-19.
Aliás, não foi por outra razão que ele obrigou Pazuello a rasgar o contrato, assinado menos de 24h antes, com o Instituto Butantan, para a aquisição de doses da Coronavac (v. HP 20/10/2020, Após pressão de Estados, Ministério da Saúde inclui vacina chinesa no programa imunização; e HP 21/10/2020, Bolsonaro diz que vacina chinesa “não será comprada” e dificulta país de se livrar da Pandemia).
Bolsonaro é, portanto, um mentiroso sem o menor caráter, sem o mínimo senso moral.
Não é uma novidade. Mas ter a Presidência da República ocupada por um elemento sem limite moral, é um risco permanente para as instituições democráticas – aliás, para qualquer instituição pública.
Não era da falta de limite moral, precisamente, que Hitler se gabava?
Não é a falta de limite moral de Bolsonaro, que se reflete nos mais de 210 mil mortos pela Covid-19?
No próprio evento de terça-feira, no banco suíço, as mentiras sucediam-se a mentiras.
Por exemplo:
“Já somos o sexto país que mais vacinou no mundo. Brevemente estaremos nos primeiros lugares, para dar mais conforto à população e segurança a todos, de modo que a nossa economia não deixe de funcionar.”
O Brasil, infelizmente, em termos absolutos, é, no momento, o 16º país em número de vacinados. Em termos relativos (vacinados em percentagem da população), o Brasil está em 19º e penúltimo lugar no ranking internacional de vacinação contra a Covid-19, com apenas 0,4% da população, que recebeu pelo menos uma dose de vacina (cf. Our World in Data, Coronavirus (COVID-19) Vaccinations, 26/01/2021).
E, se conseguimos esse pouco, foi contra Bolsonaro, que tudo fez para sabotar a produção, a aquisição e a aplicação de vacinas contra a Covid-19.
Bolsonaro, portanto, está mentindo, mentindo, mentindo. Não tem qualquer freio ou vergonha em mentir, mesmo diante de um auditório que tem todas as condições de saber a verdade – como foi o caso na terça-feira.
É, a esse respeito – o respeito pela verdade -, completamente indecente.
Ressaltemos que o Brasil, até o governo Bolsonaro, tinha a melhor cobertura vacinal do mundo – e com larga experiência na produção de vacinas.
Mas isso foi avacalhado pela instalação, no Ministério da Saúde, de um magote de ignorantes, de obscurantistas, de incompetentes.
Pazuello somente não é uma síntese desse magote de débeis mentais, porque é apenas um serviçal de Bolsonaro. Mas os acontecimentos de Manaus, a distribuição de cloroquina e outros elixires até para gatos e cachorros, como “tratamento ou atendimento precoce” da Covid-19, e, sobretudo, o total descaso pela vacinação dos brasileiros, mostram como um serviçal pode ser tão criminoso quanto seu chefe (v. HP 19/01/2021, Mentiroso e pusilânime, Pazuello envergonha o Exército; e HP 22/01/2021, Não sobrou nem uma gota de caráter em Pazuello?).
MORTES
Na mesma terça-feira em que Bolsonaro falou no Credit Suisse, os mortos pela Covid-19, no Brasil, atingiram 218 mil e 878 pessoas.
Em suma, temos 10% dos mortos mundiais da pandemia, com apenas 2,7% da população humana da Terra.
A diferença, como disseram vários cientistas, é devida, sobretudo, à política do governo – isto é, à postura irracional de Bolsonaro e sua trupe.
Como escreveu um cientista, o professor Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas, em carta à revista “The Lancet”:
“Em 21 de janeiro de 2021, o Brasil ocupava o segundo lugar em número de mortes por COVID-19 e o terceiro em número de casos observados em qualquer país. Como cientista, tendo a não acreditar em coincidências. Em março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro referiu-se à COVID-19 como uma ‘gripezinha’. Em abril de 2020, ele declarou que havia sinais de que a pandemia estava chegando ao fim. Um mês depois, quando questionado por jornalistas sobre o número crescente de casos de COVID-19, Bolsonaro respondeu ‘E daí? O que você quer que eu faça?’ (…) Mais recentemente, Bolsonaro foi, até onde sei, o único chefe de estado no mundo a dizer que não seria vacinado. Chegou a desestimular a população a tomar a vacina ao dizer: ‘Se você virar jacaré é problema seu’ (v. Pedro C. Hallal, SOS Brazil: science under attack, The Lancet, 22/01/2021).
O resultado, escreve Hallal, foi um desastre no combate à Covid-19:
“As taxas de testagem estão muito abaixo da média mundial. Não há políticas de rastreamento de contatos implementadas. O distanciamento social tem sido desacreditado. Em 4 semanas, o Brasil teve três ministros da Saúde. Apesar de cientistas e institutos de pesquisa brasileiros, como o Butantan e a Fiocruz, estarem fortemente envolvidos na corrida global pela vacina, a quantidade de seringas e agulhas era insuficiente para começar a campanha de vacinação” (idem).
Por isso, é mais mentirosa ainda que o resto, a suposta preocupação de Bolsonaro em “dar mais conforto à população e segurança a todos, de modo que a nossa economia não deixe de funcionar”.
Pelo contrário, ele transformou o país em um inferno para a população, em um cemitério sempre crescente, em uma abissal catástrofe econômica.
Já nos referimos, em artigos anteriores, à estupidez nazista de que a epidemia iria eliminar os fracos e deixar vivos os fortes – daí, quaisquer medidas para diminuir o número de mortos, seja o distanciamento social, o simples evitar aglomerações, ou, inclusive, a vacinação, eram, para Bolsonaro e sua corte de aberrações, indesejáveis.
Pois essa foi a “política” de Bolsonaro. Até mesmo, explicitamente, disse que não era possível implementar medidas de combate à Covid-19 para não parar a economia… Como se existisse alguma economia com mortos ou com gente, crescentemente, morrendo.
CRIMINOSOS
Por que, agora, ele mudou o disco – e se apresenta como adepto da vacinação, inclusive como um fã da Coronavac, aquela que, antes, chamava de “a vacina chinesa do Doria”? Aquela que, dizia, seu governo não iria adquirir, nem que fosse aprovada pela Anvisa.
Primeiro, porque é um sociopata sem nenhum respeito pelas pessoas, muito menos pela inteligência das pessoas.
Segundo, porque os últimos acontecimentos, em especial a tragédia de Manaus, apontaram, aos olhos de todos, para os culpados por esse crime inominável: o governo, isto é, Bolsonaro, seu ministro da Saúde e seus pervertidos acólitos.
Entretanto, é tão falsa essa conversão, que basta aparecer um súbito “gancho” para sabotar a vacinação, por mais precário que seja, que Bolsonaro adere imediatamente.
Assim foi no suposto caso em que alguns empresários se propuseram a furar a fila da vacinação, comprando, privadamente, alguns milhões de doses de vacina da multinacional AztraZeneca.
Prometiam doar metade das doses para o SUS – e ficar com a outra metade.
A proposta era imoral – e já fora vetada até pelo Ministério da Saúde, pois vacinas são, no Brasil e na maioria dos países do mundo, bens públicos, sobretudo quando existe uma epidemia que já matou mais de 200 mil cidadãos. Estabelecer uma desigualdade na vacinação, enquanto pessoas, que dependem do sistema público, morrem por não ter acesso à vacinas, é uma monstruosidade.
Além disso – justiça se faça – uma parte importante do empresariado foi contra a proposta, levantando a alternativa de que, se houvesse compra privada de vacinas da AztraZenica, todo o resultado da compra fosse entregue ao sistema público de Saúde, isto é, ao SUS (v. Bastidores: a tentativa frustrada de empresários de comprar vacinas da AstraZeneca, OESP 25/01/2021).
Porém, Bolsonaro imediatamente manifestou-se a favor da proposta dos fura-filas.
Foi, também, na terça-feira, no evento do Credit Suisse.
Disse Bolsonaro:
“Eu quero deixar bem claro que o governo federal é favorável a esse grupo de empresários para levar adiante a sua proposta, trazer vacina para cá, a custo zero para o governo federal.”
Desde o dia anterior, essa proposta não existia mais, detonada, exatamente, pelos empresários que foram contra furar a fila do sistema público.
Bolsonaro estava, portanto, tentando exumar um cadáver que já estava mal-cheiroso.
Porém, a situação de Bolsonaro ainda ficou pior, depois que a própria AztraZeneca declarou que não venderia sua vacina para particulares.
A nota da empresa é clara e sucinta:
“No momento, todas as doses da vacina estão disponíveis por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado.”
Aos poucos, soube-se o que aconteceu: o ministro da Economia, Paulo Guedes, ouviu a proposta de empresários na sexta-feira (22/01) e, claro, achou que era uma boa aqueles que têm mais dinheiro passar na frente dos que têm menos dinheiro, com a compra privada de vacinas da AztraZeneca.
Bolsonaro concordou imediatamente com Guedes e ordenou ao Ministério da Saúde que mudasse as suas regras para avalizar a compra privada de vacinas da AztraZeneca – contra a posição de algumas grandes empresas, inclusive o Banco Itaú.
Esqueceram apenas de consultar a AztraZeneca, que, no momento, mal consegue (aliás, não está conseguindo) cumprir seus contratos de fornecimento da vacina contra a Covid-19 com países europeus (esta informação pode ser lida em qualquer jornal, mas, pelo visto, Bolsonaro, Guedes, e o resto da turma, ignoravam-na).
Porém, por que Bolsonaro tão rapidamente – contra, inclusive, alguns grandes empresários e a própria multinacional que fabrica a vacina – se apegou à proposta “fura-fila” de alguns cabeças de alfinete do empresariado?
Principalmente por duas razões.
A primeira é que ele é, como todo fascista, sempre a favor da desigualdade – os “fortes” devem dominar os “fracos”, não é assim que esses bandidos acham que a vida deve ser?
A segunda é que não lhe restou, diante da indignação geral – sobretudo após os acontecimentos de Manaus – nada, além de tentar parasitar a vacina desenvolvida pelo Butantan/Sinovac, aquela que chamava de “a vacina chinesa do Doria”, que ele jurou que o governo jamais iria adquirir.
A aquisição de alguns milhões de doses da vacina da AztraZeneca – com quem o governo, através da Fiocruz, estabeleceu um contrato – por alguns empresários, pareceu, a Bolsonaro, livrá-lo do Doria e dos chineses.
Certamente, era uma fantasia. Mas para um anormal como Bolsonaro, as fantasias – e as mais doentias – são uma motivação muito maior do que qualquer realidade.
CARLOS LOPES
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