Manifesto de intelectuais e artistas apontou
“Estivemos juntos na reconstrução democrática. É preciso defendê-la agora”. Já são 190 mil assinaturas
Abaixo, o leitor poderá tomar conhecimento do manifesto, lançado por cientistas, intelectuais, artistas – em suma, homens e mulheres da cultura e da ciência, brasileiros e brasileiras que se dedicam à arte, à pesquisa, ao Direito, sobre a ameaça que representa a camarilha que se reúne em torno de Bolsonaro, para o país e para as conquistas civilizatórias que nós alcançamos em 500 anos de História do Brasil.
Lançado por 300 personalidades, o manifesto foi, em seguida, aberto à assinatura do público – no início da noite de quarta-feira, dia 17/10, as assinaturas já chegavam a 190 mil (o leitor que desejar apor também a sua assinatura poderá fazê-lo em “Democracia Sim”).
“É preciso dizer, mais que uma escolha política, a candidatura de Jair Bolsonaro representa uma ameaça franca ao nosso patrimônio civilizatório primordial.”, diz o manifesto.
A questão é essa: Bolsonaro é a estupidez, o ódio à ciência, às artes e à cultura em geral – mas, especialmente, à cultura nacional que nós, em meio às vicissitudes de nossa História, conseguimos construir, com imenso esforço e a contribuição dos melhores dentre nós, expressando o nosso ethos – essa mistura étnica que o general Antonio Carlos de Andrada Serpa chamava de “raça cósmica”.
Bolsonaro, e o que se reúne em torno dele, é o retrocesso anticivilizatório – é o rancor à vida civilizada.
Há poucos dias, dissemos, aqui, que uma ditadura de Bolsonaro e cia. seria pior que a antiga ditadura.
Mas não citamos a maior prova disso: o grande especialista de Bolsonaro em questões educacionais – que, segundo corre, se eleito, ele colocaria no Ministério da Educação – declarou que o “criacionismo” deve ser introduzido nas escolas.
O sujeito, chamado Aléssio Ribeiro Souto, que um dia foi general do Exército Brasileiro, declarou o seguinte:
“Cabe citar o criacionismo, o darwinismo, mas não cabe querer tratar que criacionismo não existe. Houve Darwin? Houve, temos de conhecê-lo. Não é para concordar, tem de saber que existiu.”
A obra de Charles Darwin, a evolução dos seres vivos, é uma das maiores descobertas científicas da História da Humanidade, uma das maiores revoluções no conhecimento humano já acontecidas neste Planeta.
O “cérebro” de Bolsonaro para a Educação está propondo, portanto, que se regrida 160 anos na História – e voltemos a um mundo imerso nas trevas, no medo, na superstição nas questões biológicas.
Não se trata de um problema religioso. Um sacerdote como o padre Teilhard de Chardin – citado pelo papa Francisco na encíclica “Laudato si” – não viu conflito entre a evolução de Darwin e suas convicções religiosas.
Não são os religiosos que querem introduzir o criacionismo – a concepção de que a vida foi criada, tal e qual é, por um fenômeno sobrenatural – nas escolas.
Os verdadeiros religiosos sabem a diferença entre ciência e fé – e não pretendem que a fé seja imposta como matéria escolar.
Pelo contrário, quem quer fazer isso são os obscurantistas que se travestem de religiosos para explorar o próximo – uma parte grande da base de Bolsonaro é composta por esses aproveitadores estúpidos e pelos que são aproveitados por eles.
Esta é, aliás, uma das razões do grau de imbecilidade que acomete certos bolsonaristas.
Porém, é necessário dizer algo mais: quando esse “educador” bolsonarista diz uma idiotice dessas, algo que parece anterior à civilização, não está apenas exibindo sua ignorância – e a ignorância que quer impor aos demais, a começar pelas crianças.
Está, também, macaqueando o que há de pior nos EUA: aquelas seitas que saqueiam pobres coitados, que são a base da direita norte-americana mais delirante, e os charlatães do “intelligent design”, que não tentam passar o criacionismo como religião, mas como ciência – o que, talvez, seja pior.
No Brasil, a separação entre o Estado e a religião – com sua consequência: a escola pública laica – foi estabelecida pelo marechal Deodoro da Fonseca e pelo marechal Floriano Peixoto, após a aprovação da Constituição de 1891.
Era, aliás, uma bandeira de Benjamin Constant e demais militares positivistas que fizeram a República.
Desde essa época, ninguém contestou que o objetivo da escola era ensinar o que é ciência, para iluminar o caminho dos alunos, brasileiros em formação.
Nos EUA, essa questão se definiu com maior atraso – daí a repercussão do “caso Scopes” ou “julgamento do macaco” (Scopes Monkey Trial), ocorrido em 1925, na cidade de Dayton, Tennessee.
Nesse julgamento, um professor foi acusado de infringir a Lei Butler, que proibia “o ensino de qualquer teoria que negue a história da criação divina do homem e a substitui pelo ensino de que o homem descende de uma ordem de animais inferiores”.
O caso rendeu uma bela peça e quatro belos filmes, todos intitulados “O Vento Será Tua Herança” (Inherit the Wind).
Pois o caso selou o fim das proibições, nos EUA, ao ensino da evolução das espécies.
Isso foi em 1925 – portanto, há 93 anos.
Desde essa época, somente aquele lixo intelectual – e, para ser preciso, social – constituído por seitas ignorantes, composta por mentecaptos, geralmente com espertalhões usufruindo seu dinheiro, é que reivindicou o criacionismo como matéria escolar e a proibição do ensino da evolução.
Não se trata, portanto, de uma questão religiosa – um cientista, muitas vezes, tem as suas crenças religiosas, como o próprio Darwin ou como Einstein.
Trata-se de obscurantismo.
É esse tipo de botocudo mental (que nos desculpem os verdadeiros botocudos) que povoa a campanha de Bolsonaro.
Aliás, começando pelo próprio, com aquele aspecto de que, até hoje, não abriu um livro – e, se abriu, não deve ter sido para lê-lo.
O que, aliás, nada tem a ver, também, com a tradição de nossas Forças Armadas – com um Caxias, com um Benjamin Constant, com um Siqueira Campos, com um Lott.
CARLOS LOPES
Abaixo, a íntegra do manifesto:
Democracia Sim
Pela Democracia, pelo Brasil
Somos diferentes. Temos trajetórias pessoais e públicas variadas. Votamos em pessoas e partidos diversos. Defendemos causas, ideias e projetos distintos para nosso país, muitas vezes antagônicos.
Mas temos em comum o compromisso com a democracia. Com a liberdade, a convivência plural e o respeito mútuo. E acreditamos no Brasil. Um Brasil formado por todos os seus cidadãos, ético, pacífico, dinâmico, livre de intolerância, preconceito e discriminação.
Como todos os brasileiros e brasileiras sabemos da profundidade dos desafios que nos convocam nesse momento. Mais além deles, do imperativo de superar o colapso do nosso sistema político, que está na raiz das crises múltiplas que vivemos nos últimos anos e que nos trazem ao presente de frustração e descrença.
Mas sabemos também dos perigos de pretender responder a isso com concessões ao autoritarismo, à erosão das instituições democráticas ou à desconstrução da nossa herança humanista primordial.
Podemos divergir intensamente sobre os rumos das políticas econômicas, sociais ou ambientais, a qualidade deste ou daquele ator político, o acerto do nosso sistema legal nos mais variados temas e dos processos e decisões judiciais para sua aplicação. Nisso, estamos no terreno da democracia, da disputa legítima de ideias e projetos no debate público.
Quando, no entanto, nos deparamos com projetos que negam a existência de um passado autoritário no Brasil, flertam explicitamente com conceitos como a produção de nova Constituição sem delegação popular, a manipulação do número de juízes nas cortes superiores ou recurso a autogolpes presidenciais, acumulam declarações francamente xenofóbicas e discriminatórias contra setores diversos da sociedade, refutam textualmente o princípio da proteção de minorias contra o arbítrio e lamentam o fato das forças do Estado terem historicamente matado menos dissidentes do que deveriam, temos a consciência inequívoca de estarmos lidando com algo maior, e anterior a todo dissenso democrático.
Conhecemos amplamente os resultados de processos históricos assim. Tivemos em Jânio e Collor outros pretensos heróis da pátria, aventureiros eleitos como supostos redentores da ética e da limpeza política, para nos levar ao desastre. Conhecemos 20 anos de sombras sob a ditadura, iniciados com o respaldo de não poucos atores na sociedade. Testemunhamos os ecos de experiências autoritárias pelo mundo, deflagradas pela expectativa de responder a crises ou superar impasses políticos, afundando seus países no isolamento, na violência e na ruína econômica. Nunca é demais lembrar, líderes fascistas, nazistas e diversos outros regimes autocráticos na história e no presente foram originalmente eleitos, com a promessa de resgatar a autoestima e a credibilidade de suas nações, antes de subordiná-las aos mais variados desmandos autoritários.
Em momento de crise, é preciso ter a clareza máxima da responsabilidade histórica das escolhas que fazemos.
Esta clareza nos move a esta manifestação conjunta, nesse momento do país. Para além de todas as diferenças, estivemos juntos na construção democrática no Brasil. E é preciso saber defendê-la assim agora.
É preciso dizer, mais que uma escolha política, a candidatura de Jair Bolsonaro representa uma ameaça franca ao nosso patrimônio civilizatório primordial. É preciso recusar sua normalização, e somar forças na defesa da liberdade, da tolerância e do destino coletivo entre nós.
Prezamos a democracia. A democracia que provê abertura, inclusão e prosperidade aos povos que a cultivam com solidez no mundo. Que nos trouxe nos últimos 30 anos a estabilidade econômica, o início da superação de desigualdades históricas e a expansão sem precedentes da cidadania entre nós. Não são, certamente, poucos os desafios para avançar por dentro dela, mas sabemos ser sempre o único e mais promissor caminho, sem ovos de serpente ou ilusões armadas.
Por isso, estamos preparados para estar juntos na sua defesa em qualquer situação, e nos reunimos aqui no chamado para que novas vozes possam convergir nisso. E para que possamos, na soma da nossa pluralidade e diversidade, refazer as bases da política e cidadania compartilhadas e retomar o curso da sociedade vibrante, plena e exitosa que precisamos e podemos ser.