O pronunciamento de Jair Bolsonaro no ato realizado nesta quarta-feira (27) no Palácio do Planalto em defesa da “liberdade de expressão” é a mais fina repetição do golpismo, da desfaçatez e do cinismo.
O ato, em si, foi a consagração da hipocrisia.
Todavia, desta feita, foi mais longe.
Disse com todas as letras:
“Não pensam [sic] que uma possível suspensão de uma eleição seria só para presidente, isso seria para o Senado, para a Câmara, se tiver algo de anormal”, mas não esclareceu o que seria o “anormal”.
E, no mesmo diapasão golpista, ao dirigir-se ao ministro Luís Roberto Barroso, do STF, sentenciou: “Barroso, com currículo invejável, não deveria ter tido eleições de 2020 sem a conclusão daquele inquérito que deveria ser sigiloso. Ele mente”, acusou.
Para bom entendedor, meia palavra basta.
Não foi a primeira ameaça de um golpe contra as eleições e a democracia, e, seguramente, não será a última, mas, até a presente data, foi a mais explícita.
Bolsonaro deu a senha do que seria considerado fora das quatro linhas: o TSE não aceitar uma contagem de votos paralela por parte das Forças Armadas, conforme sugestão que teria sido feita pelos “técnicos” da instituição, quando, na verdade, se trata de mais uma tentativa do chefe do Executivo de jogar os militares numa aventura política.
O mandatário é bem conhecido pela sua desconfiança doentia em tudo e em todos. É do tipo que deve desconfiar de si mesmo quando olha no espelho.
Continuará desconfiando da Justiça Eleitoral. Desconfiou e lançou dúvidas, inclusive, no pleito de 2018 que o elegeu, imagine, agora, diante da iminência de ser defenestrado pelo povo urnas em consequência de seu trágico governo.
Confesso que não tive estômago para ouvir os discursos que o antecederam, todos de parlamentares reconhecidamente bolsonaristas, ou da bancada alcunhada “da bala” ou “evangélica”, embora, certamente, muitos dos integrantes dessas bancadas não se manifestariam de forma tão tosca, rasteira e subserviente, muito menos endossariam o que disseram seus pretensos porta-vozes.
Alguns chegaram a recorrer às palavras de Ulysses Guimarães na defesa da liberdade de expressão que teria sido negada, tolhida e condenada ao deputado Daniel Silveira pelo Supremo Tribunal Federal, vilão desse direito consagrado no texto constitucional.
O próprio Bolsonaro fez alusão a Ulysses, embora, com seu sincericídio costumeiro, tenha dito que “não era simpático a ele”.
Nem poderia.
Ulysses, ao lado de Tancredo, Teotônio e tantos outros, foi o timoneiro da luta pela democracia e a liberdade que Bolsonaro hoje prega de forma tão desavergonhada.
Bolsonaro foi e é a negação da luta de Ulysses, que, se vivo estivesse, certamente, estaria ombreando com a oposição.
Ulysses comandava os atos pelo direito à palavra no parlamento de figuras da estatura moral e política de Rubens Paiva, cassado, preso e desaparecido.
Ulysses estava à frente das manifestações que protestavam contra a morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura, exigiam a apuração do crime e a identificação de seus responsáveis, e defendiam a verdadeira liberdade de imprensa.
Ficamos aqui, apenas, nesses dois exemplos – um da resistência parlamentar e outro da imprensa amordaçada e censurada à época.
Bolsonaro, por sua vez, abre as portas do Planalto para um ato em resposta à condenação de Daniel Silveira, uma excrescência que surgiu na política na garupa do atual chefe do Executivo e cuja trajetória é marcada por sucessivos e doentios ataques à democracia, às instituições da República e aos seus defensores e representantes.
Sua ficha como policial militar rebelde é exemplar. Foi alvo de 60 sanções disciplinares, 26 dias de prisão e 54 de detenção, fatos que, inevitavelmente, geraram uma profunda sintonia entre Bolsonaro e o deputado condenado, hoje “beneficiado” por um decreto presidencial de indulto (graça) flagrantemente inconstitucional, usado como novo instrumento do mandatário para afrontar a Suprema Corte e seus ministros.
“A liberdade é o pilar”, disse ele, mas não esclareceu a que “liberdade” estava se referindo. A de ameaçar ministros do Supremo de morte e de invadir as instituições republicanas e democráticas?
“Antes anistiavam bandidos, hoje anistiamos inocentes”, blasfemou.
Seguramente, o “antes” de Bolsonaro não remetia à memória da ditadura que ele sempre apoiou e reverenciou, embora, mesmo naquela época, tenha afrontado a disciplina militar, o que por pouco não o levou à expulsão do Exército.
Sua indisciplina, entretanto, nada tinha a ver com as perseguições às variadas formas de oposição que se expressavam contra o regime ditatorial, muito menos ao cerceamento à liberdade de expressão ou à censura vigentes à época.
Mesmo depois da redemocratização do país, continuou elogiando a ditadura e, mais do que isso, o que existia de pior e mais repugnante nela, a tortura e os torturadores, chegando a afirmar que um dos erros do governo foi não ter matado, pelo menos, entre 20 e 30 mil opositores ao regime.
Sua ficha corrida não lhe dá o direito moral de falar em nome da liberdade como um bem superior à vida, que, segundo ele, em seu novo despautério, só teria sentido se assegurada a primeira.
Diga isso, golpista, às famílias que perderam seus filhos e entes queridos na luta pela verdadeira liberdade de expressão e pela democracia, responsáveis, em última instância, pelo seu direito de se eleger parlamentar e, depois, por um desses acidentes políticos que acontecem de século em século, presidente da República.
A “liberdade” apregoada por Bolsonaro não tem limites e está, pela Constituição, fora das quatro linhas, pois ele não consegue jogar dentro delas em razão de seu DNA golpista.
A “liberdade” defendida por Bolsonaro é a de continuar produzindo e reproduzindo mentiras, fake News e utilizando sem regras e limitações as redes sociais e o que estiver ao seu alcance.
O problema, no fundo, é a Constituição de 88, a mesma Carta Cidadã promulgada pela Constituinte de Ulysses.
Bolsonaro tem aversão e nojo dela (Ulysses tinha “nojo” da ditadura e dos ditadores), pois é ela que estabelece, entre outros, o direito à liberdade de expressão, mas também a responsabilidade de que valores pétreos como a democracia e suas instituições devam ser respeitados, sob as penas da lei.
O STF, no caso de Daniel Silveira, como de outros, apenas fez valer a Constituição, dentro, rigorosamente, das quatro linhas – insuportáveis para Bolsonaro, pois, nelas, será difícil conseguir a reeleição.
Em se tratando de Bolsonaro, difícil dizer que chegou ao seu limite nas ameaças à democracia, à Justiça e às suas instituições. Seguramente, outros episódios virão.
E virão diante da incontida e irrefreável obsessão golpista presidencial, cujo último episódio, também manifesto em seu pronunciamento, é a nova ameaça de usar as Forças Armadas na seara eleitoral, território consagrado à Justiça e reconhecido como seguro e inexpugnável, mesmo depois das frustradas tentativas dele e de sua horda em desacreditar as urnas eletrônicas.
Mais um motivo para as instituições ficarem alertas sobre os próximos passos do atual ocupante do Palácio do Planalto e as forças democráticas de todas os matizes fortalecerem a união e mobilização na defesa da Constituição e de suas conquistas civilizatórias.
MAC