Em 196 anos de história, desde a Independência, jamais um governante do país perpetrou um espetáculo de servilismo, subserviência – em suma, bajulice reles, vagabunda e sem limite – como o de Bolsonaro em sua viagem aos EUA.
Essa postura quadrúpede – em mais de um sentido – foi, pior ainda, diante de um pilantra, um marginal do establishment norte-americano, um patife de reality show, que nem em seu próprio país é respeitado.
Bolsonaro, perante Trump, portou-se como um lacaio peniqueiro.
Liberar os norte-americanos de visto para entrar no Brasil, enquanto os brasileiros continuarão precisando de visto para entrar nos EUA – obtido sob humilhantes condições e respostas a perguntas do tipo: “você já foi prostituta?”, “você já participou de um ato terrorista?” – é coisa de fazer corar qualquer múmia entreguista do passado.
Campos Salles – e seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho –, em sua viagem à Inglaterra, entregou o país aos bancos ingleses, entregou a alfândega a eles e quebrou toda a economia, inclusive os próprios bancos internos.
Mas nunca disse algo como Bolsonaro disse, nos EUA, à Fox News, na véspera do encontro com Trump: “eu estou disposto a abrir meu coração para ele e fazer o que for bom para o benefício de nós dois e do povo americano”.
O povo brasileiro não entrou em suas, digamos, considerações. Só o “povo americano”, quer dizer, Trump, pois é certo que Bolsonaro não considera que os negros dos EUA – ou os índios – são “povo americano”.
Por que os norte-americanos não precisarão de visto para entrar no Brasil, enquanto os brasileiros precisarão de visto para entrar nos EUA?
Ora, porque os brasileiros são bandidos – ao contrário dos norte-americanos, que são todos honestos, íntegros e ilibadíssimos.
Daí, a declaração de Bolsonaro de que “a grande maioria dos imigrantes em potencial não tem boas intenções nem quer fazer bem ao povo americano”.
Já os norte-americanos, claro, só saem dos EUA para fazer bem aos outros países…
Ou, nas palavras do deputado Eduardo Bolsonaro, também conhecido como zero-alguma coisa, os EUA não podem liberar o visto para os brasileiros porque “sem a necessidade de um visto, várias pessoas entrariam nos EUA de maneira ilegal e ilegalmente permaneceriam lá”.
Em milhares de filmes americanos há bandidos norte-americanos que têm como sonho fugir para o Brasil.
Bolsonaro deve achar, talvez, que os bandidos dos EUA merecem, também, tratamento privilegiado no Brasil.
Quanto aos brasileiros que não são bandidos… bem, ele não gosta deles. Prefere milicianos e outros tipos. Ou, como disse à Fox News: “Por coincidência um desses supostos assassinos de Marielle morava do lado oposto da minha rua”.
O assassino morava do outro lado da rua, mas ele não o conhecia?
Mas, voltemos aos EUA.
Segundo o filho zero-qualquer coisa, que passou a perna no olavista das Relações Exteriores durante a viagem, “faltava um carinho do Brasil aos Estados Unidos: é a maior potência do mundo, a maior potência militar, a economia número um”.
O olavista das Relações Exteriores, que ficou do lado de fora do Salão Oval, enquanto Eduardo Bolsonaro entrava com o pai para ver o chefe, revelou, em um artigo acadêmico (?!) que os EUA – e, especialmente, Trump – são o representante de Deus na Terra (cf. Ernesto Henrique Fraga Araújo, Trump e o Ocidente, Cadernos de Política Exterior, ano III, número 6, 2º semestre 2017, pp. 323-356).
Já Eduardo Bolsonaro quer fazer um carinho no Trump.
Enquanto isso, seu pai quer “abrir o coração” para o mesmo elemento.
Que gente esquisita!
PERDAS
Houve época em que Bolsonaro tinha a intenção de espalhar bombas “de baixa potência” em instalações militares (v. Terrorismo de baixa potência).
Depois, escudou-se atrás da imunidade parlamentar para fazer declarações que levariam qualquer um, ao menos, a um interrogatório pelo Ministério Público.
Candidato a presidente, usou bem a facada que um maluco lhe desferiu – em péssima hora – para fugir de qualquer debate durante a campanha eleitoral.
Presidente, usa o cargo para perseguir trabalhadores – e, antes de tudo, idosos em mísera situação de vida.
Se isso não é a carreira de um covarde, será impossível chamar alguém de covarde.
Foi assim, também, nos EUA.
Bolsonaro concordou em abrir mão de nosso status de país em desenvolvimento, na Organização Mundial do Comércio (OMC), em troca da promessa de Trump de apoiar a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O que significa isso?
“Há muito a perder no comércio externo, abrindo mão das vantagens que países em desenvolvimento têm dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em troca, o que o Brasil recebe? Um aviso de que os Estados Unidos apoiarão o nosso esforço de entrar na OCDE, cuja grande vantagem é meramente abstrata” (Miriam Leitão, Um acordo desequilibrado, 20/03/2019).
A mesma colunista prossegue:
“O que o Brasil prometeu em troca desse vago apoio foi abrir mão da vantagem de ser país em desenvolvimento na OMC. A Organização Mundial do Comércio estabelece que países em desenvolvimento têm um tratamento especial diferenciado no comércio internacional. Têm prazos de implementação de regras de defesa comercial maiores do que os países desenvolvidos. Na área agrícola, têm maior espaço de subsídios. Os países em desenvolvimento podem negociar entendimentos entre eles sem estender os benefícios para os países desenvolvidos. Os EUA, por serem a maior economia do mundo, querem acabar com essas vantagens para os outros países. Aceitar isso é fazer o jogo americano, com reflexos concretos em exportações brasileiras de inúmeros produtos”.
Por exemplo, “para o país desenvolvido, por exemplo, o subsídio à agricultura fica limitado a 5% da produção. No país em desenvolvimento, pode chegar a 10%, o dobro.
“Além disso, o Brasil abre mão antecipadamente de quaisquer benefícios em negociações futuras. É bem verdade que os Estados Unidos serão muito mais resistentes a aceitar tratamentos diferenciados no futuro, já que a China se declara país em desenvolvimento. Além dela, México, Coreia, Turquia e Cingapura, entre outros” (idem).
E, mais:
“O que se temia aconteceu. O deslumbramento pueril com a grande potência levou a comitiva do governo brasileiro a fazer concessões. ‘Demos tudo, não levamos nada’, resumiu outro diplomata. O Brasil retirou a exigência do visto sem exigir reciprocidade, e recebeu em troca a promessa de que serão dados ‘os passos necessários para permitir que o Brasil participe do programa global de visitantes confiáveis’ do Department of Homeland Security. Ou seja, nada” (Miriam Leitão, idem).
Somente para destacar algo mencionado pela colunista: a China, dentro da OMC, é um país em desenvolvimento, tal como o Brasil, antes da viagem de Bolsonaro.
A China nem pensa em renunciar a esse status.
Aliás, nenhum país, até hoje, na OMC, abriu mão de ser considerado país em desenvolvimento, pela simples razão de que isso é uma estupidez, que só beneficiaria os EUA, em detrimento do próprio país.
A única exceção não é um país, mas, exatamente, uma colônia dos EUA: Taiwan.
Porém, há mais: nenhum país precisa abrir mão da condição de país em desenvolvimento para entrar na OCDE.
Tanto é assim que México e Colômbia acabam de entrar na OCDE, sem que tivessem de abrir mão de seu status de países em desenvolvimento.
Por fim, os EUA não decidem quem entra na OCDE. Muito menos Trump.
O que Bolsonaro conseguiu, em troca de abrir mão de nossas prerrogativas, na OMC, de país em desenvolvimento, foi a promessa de que o governo dos EUA vão apoiar a entrada do Brasil na OCDE.
TROCA
A questão do trigo, e dos porcos, talvez seja pior – pois é mais imediata que a da OMC.
Bolsonaro se comprometeu a comprar – ou, melhor, que o Brasil compre – 750 mil toneladas de trigo dos EUA por ano, sem que seja cobrada qualquer tarifa (“o Brasil implementará uma quota tarifária, permitindo uma importação anual de 750 mil toneladas de trigo norte-americano com tarifa zero”).
Os EUA estão com problemas na venda de trigo, desde que começou a palhaçada das sanções contra a Rússia.
Bolsonaro está se oferecendo para livrá-los desse embaraço, causado por sua própria política de gangsters.
A vítima, aqui, além do Brasil, seria a Argentina, hoje nossa principal fonte de trigo (v. Abitrigo – importação).
Nesse mesmo ponto do comunicado conjunto, Bolsonaro se comprometeu a comprar carne de porco dos EUA (literalmente, diz o comunicado: “os Estados Unidos e o Brasil acordaram condições baseadas na ciência para permitir a importação de carne de porco dos Estados Unidos”).
O Brasil tem um rebanho de 42 milhões de suínos – e sem dificuldade em aumentá-lo.
Para que, então, importar carne de porco dos EUA?
Para beneficiar os EUA, que, no momento, estão com excesso de produção – ou, melhor, estão com um estoque encalhado descomunal de carne de porco.
Em troca dessas compras de trigo e carne de porco, o que os EUA vão dar ao Brasil?
Uma inspeção nos nossos frigoríficos.
Se o leitor não entendeu, não se preocupe. Há coisas que é difícil entender, não porque sejam difíceis, mas porque são irracionais, devido à extrema subserviência. É como certa espécie de pornografia, tão aberrante que é difícil entender como alguém pode ter prazer com semelhantes atividades.
Diz o comunicado de Trump e Bolsonaro, depois dos compromissos deste último de comprar trigo e carne de porco dos EUA:
“Com o objetivo de permitir a retomada das exportações de carne bovina do Brasil, os Estados Unidos concordaram a agendar rapidamente uma visita técnica do Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar do Departamento de Agricultura para inspecionar o sistema de inspeção de carne ‘in natura’ do Brasil, assim que esteja satisfeito com a documentação sobre segurança alimentar do Brasil”.
Em troca de comprar trigo e carne de porco, Bolsonaro conseguiu a promessa de uma visita para que os EUA inspecionem os nossos frigoríficos e “assim que esteja satisfeito com a documentação sobre segurança alimentar do Brasil”, talvez, retomem as compras de carne bovina.
ENCARREGADO
Bolsonaro também concordou com – ou, melhor, “saudou” – “a criação de um Fundo de Investimento de US$ 100 milhões com impacto na preservação da biodiversidade para servir de catalisador do investimento sustentável na região amazônica”.
Quanto a Trump, “anunciou a intenção dos Estados Unidos de designar o Brasil como um Aliado Prioritário Extra-Otan” – e pode-se imaginar o que isso quer dizer.
Em troca dessa “intenção”, Bolsonaro entregou a Base de Alcântara aos EUA (“assinatura de um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, que permitirá que empresas norte-americanas conduzam lançamentos espaciais comerciais a partir do Brasil”).
Quanto à Venezuela, segundo o comunicado, “o presidente Trump e o presidente Bolsonaro reiteraram que os Estados Unidos e o Brasil apoiam o Presidente Encarregado da Venezuela Juan Guaidó” (cf. Comunicado Conjunto, no site do Itamaraty).
Presidente “encarregado” da Venezuela?
“Encarregado” por quem?
Pelo Trump?
Ah, bom.
Por fim, a visita à CIA.
A CIA, além dos assassinatos e das técnicas de tortura, somente é notória por interferir e armar golpes de Estado em outros países – inclusive o Brasil – através de operações encobertas.
O jornal mais tradicional, talvez mais conservador do país, disse, em editorial:
“A visita totalmente despropositada que Jair Bolsonaro fez à sede da CIA, o serviço de inteligência norte-americano, simboliza o quão longe o presidente parece disposto a ir para mostrar seu deslumbramento. Segundo seu porta-voz, a ida de Bolsonaro à CIA se deveu ‘à importância que o presidente confere ao combate ao crime organizado e ao narcotráfico’. Ora, ainda que essa fosse a atribuição daquela agência de espionagem – o que não é o caso –, não se justifica de maneira nenhuma que um presidente brasileiro visite a CIA, ainda mais sem pauta definida” (O Estado de S. Paulo, 20/03/2019).
Tem mais, leitor, que ainda vamos abordar. Mas, por hoje, ficamos por aqui.
CARLOS LOPES
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