O ministro da Casa Civil de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, anunciou que o futuro governo pretende transferir a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura.
O que significa que ela ficará no ministério dos agronegocistas e grileiros, doidos para tomar as terras indígenas. Aliás, até mesmo o presidente da notória UDR, um chefe de milícia chamado Nabhan, estará no mesmo Ministério, onde, certamente, poderá ajudar muito os índios, com sua vasta experiência (v. Bolsonaro coloca chefe da milícia da UDR para tratar da reforma agrária).
Segundo Onyx Lorenzoni, “a visão que o presidente tem é no sentido de poder dar condições para que aqueles indígenas que quiserem, aqueles grupamentos, pessoas ou indivíduos possam buscar uma outra condição”.
Ou seja, que saiam de suas terras para que sejam ocupadas pela grilagem interna – ou, sobretudo, estrangeira.
Bolsonaro, na campanha eleitoral, pregara o fim da proteção brasileira aos índios, numa cópia do que os norte-americanos fizeram:
“O índio norte-americano vive, em grande parte, dos royalties dos cassinos. Vocês, aqui, podem viver de royalties não só de minério, mas exploração da biodiversidade, bem como royalties de possíveis hidrelétricas que poderiam ser construídas na terra de vocês”, disse ele.
O que houve nos EUA foi um violento genocídio – pela bala, pela fome e também por doenças provocadas intencionalmente – que acabou com a maior parte da população indígena, matando 23 milhões de seres humanos, 92% da população de índios.
Ainda no começo da década de 30 do século passado, era a própria agência responsável pelos índios que espalhava o cólera em comunidades indígenas, para que os magnatas do petróleo instalassem torres nas suas terras.
Depois dessa chacina – o genocídio mais prolongado de toda a História – o establishment dos EUA tomou a decisão de que os índios se virassem. Daí os acordos com a máfia, que redundaram numa rede de cassinos dentro das reservas.
Bolsonaro acha que essa desgraça é um modelo para o Brasil.
Mas isso é um ataque, não somente aos índios, mas à toda a política oficial do Estado e do Exército Brasileiro, desde o marechal Rondon.
A Funai é a continuadora do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), fundado pelo Marechal Cândido Mariano Rondon, uma das maiores figuras de nossa História – e de nosso Exército –, a quem Carlos Drummond de Andrade dedicou, quando de seu falecimento, um de seus mais belos poemas, “Pranto Geral dos Índios”.
A compreensão da questão indígena, pelo marechal Rondon (ele mesmo um descendente dos Bororos e Terenas), foi expressa por seu lema: “morrer, se preciso; matar, nunca”.
A ideia era – e ainda é – que os índios necessitam da proteção do Estado. Todos os massacres por parte de grileiros, para se apropriar das terras em que vivem os índios, somente demonstraram que o marechal Rondon estava certo.
Desde a Constituição de 1934 que os índios estão sob a tutela do Estado – e a Constituição de 1988, além disso, reconheceu seus direitos (“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”).
Porém, Bolsonaro quer que os índios vivam de royalties (“não só de minério, mas exploração da biodiversidade”, etc.).
Mas isso significa acabar com as reservas, instalando lá as corporações que, supostamente, pagariam esses royalties.
Porque, segundo Bolsonaro, demarcar reservas é tratar os índios como “animais em zoológicos”.
Como se ele estivesse muito preocupado com a humanidade dos índios…
Sobre isso, aliás, ele está tão preocupado, que quer transferir a Funai para um Ministério dirigido por agronegocistas e grileiros.
Nós não temos dúvida que, no final, a borduna dos índios cantará em cima desses candidatos a genocidas.
Enquanto isso, leitor, vejamos o que disse Drummond sobre o marechal Rondon:
Pranto Geral dos Índios
Chamar-te Maíra
Dyuna
Criador
seria mentir
pois os seres e as coisas respiravam antes de ti
mas tão desfolhados em seu abandono
que melhor fora não existissem
As nações erravam em fuga e terror
Vieste e nos encontraste
Eras calmo pequeno determinado
teu gesto paralisou o medo
tua voz nos consolou, era irmã
Protegidos de teu braço nos sentimos
O akangatar mais púrpura e sol te cingiria
mas quiseste apenas nossa fidelidade
Eras um dos nossos voltando à origem
e trazias na mão o fio que fala
e o foste estendendo até o maior segredo da mata
A piranha a cobra a queixada a maleita
não te travavam o passo
militar e suave
Nossas brigas eram separadas
e nossos campos de mandioca marcados
pelo sinal da paz
E dos que se assustavam pendia o punho
fascinado pela força de teu bem-querer
Ó Rondon, trazias contigo o sentimento da terra
Uma terra sempre furtada
pelos que vêm de longe e não sabem
possuí-la
terra cada vez menor
onde o céu se esvazia da caça e o rio é memória
de peixes espavoridos pela dinamite
terra molhada de sangue
e de cinza estercada de lágrimas
e lues
em que o seringueiro o castanheiro o garimpeiro o bugreiro colonial e moderno
celebram festins de extermínio
Não nos deixaste sós quando te foste
Ficou a lembrança, rã pulando n’água
do rio da Dúvida: voltarias?
Amigos que nos despachaste contavam de ti sem luz
antigo, entre pressas e erros, guardando
em ti, no teu amor tornado velho
o que não pode o tempo esfarinhar
e quanto nossa pena te doía
Afinal já regressas. É janeiro
tempo de milho verde. Uma andorinha
um broto de buriti nos anunciam
tua volta completa e sem palavra
A coisa amarga
girirebboy circula nosso peito
e karori a libélula pousando
no silêncio de velhos e de novos
é como o fim de todo movimento
A manada dos rios emudece
Um apagar de rastos um sossego
de errantes falas saudosas uma paz
coroada de folhas nos roça
e te beijamos
como se beija a nuvem na tardinha
que vai dormir no rio ensanguentado
Agora dormes
um dormir tão sereno que dormimos
nas pregas de teu sono
Os que restam da glória velha feiticeiros
oleiros cantores bailarinos
estáticos debruçam-se em teu ombro
ron don ron don
repouso de felinos toque lento
de sinos na cidade murmurando
Rondon
Amigo e pai sorrindo na amplidão
(Carlos Drummond de Andrade, “A Vida Passada a Limpo”, 1959)
C.L.