Relatório diz que “restou comprovado que Luiz Miranda e seu irmão levaram ao presidente suspeitas de irregularidades na compra da Covaxin”. Estranhamente a PF conclui que Bolsonaro não precisava fazer nada
O delegado William Tito Schuman Marinho, da Polícia Federal, apresentou um relatório ao Supremo Tribunal Federal (STF) afirmando que não foi identificado crime de prevaricação do presidente Jair Bolsonaro (PL) no caso da compra fraudulenta da vacina indiana Covaxin. O documento foi enviado à ministra Rosa Weber, que já havia cobrado a PF sobre o andamento do caso no último dia 21.
De acordo com o Código Penal, prevaricação é o crime cometido pelo agente público que retarda ou deixa de praticar ato de ofício para satisfazer interesse próprio. Ou seja, prevarica o servidor público ou a autoridade que toma conhecimento de crime cometido dentro do governo e não faz nada ou não denuncia.
A própria PF informa que a investigação demonstrou que “restou comprovado” que Luis Miranda e seu irmão, Luis Ricardo, se reuniram com Bolsonaro em 20 de março de 2021, em um encontro fora da agenda do presidente. A PF diz, também, que “não há dúvidas” de que o congressista e o servidor levaram a Bolsonaro suspeitas de irregularidades na compra da Covaxin.
Contraditoriamente, o delegado diz em seguida que não há materialidade. “Ausente um dos elementos objetivos constitutivos do tipo penal incriminador, o Juízo de tipicidade necessariamente há de ser negativo. Significa dizer que não há correspondência, relação de adequação, entre os fatos e o crime de prevaricação atribuído ao Presidente da República Jair Messias Bolsonaro”, disse o delegado. “O juízo de tipicidade, neste caso, sequer pôde ultrapassar o contorno da tipicidade formal. Não há materialidade. Não há crime”, conclui.
A partir daí, a PF lista que há duas versões sobre a conduta de Bolsonaro: a primeira é a de que o presidente não agiu até as supostas irregularidades da Covaxin se tornarem públicas. A segunda é a de que o presidente e o governo agiram “exercendo o dever-poder de controle dos seus próprios atos administrativos”, anulando os contratos quando considerados ilegais. “Não é aceitável, face à impossibilidade de produção de prova concreta sobre tal circunstância, optar por uma das versões”, conclui a PF.
Bolsonaro, portanto, soube das irregularidades na conversa com o servidor no dia 20 de março de 2021, mas, mesmo assim, não tomou providências e ainda manteve o empenho dos recursos que ele havia assinado antes para a compra irregular das vacinas. A compra milionária dos imunizantes só foi interrompida meses depois quando o escândalo veio à tona na CPI da Pandemia.
Também não se explica por que Luiz Ricardo Miranda, o servidor do Ministério da Saúde que denunciou o caso da propina, foi exonerado de seu cargo.
Se Bolsonaro não prevaricou, ao não tomar nenhuma providência diante da denúncia e, ao invés de mandar investigar, abriu uma feroz perseguição ao denunciante, não há outra conclusão possível a não ser de cumplicidade com o esquema criminoso.
Aliás, o próprio Bolsonaro disse ao deputado Luis Miranda (DEM-DF) que sabia quem chefiava o esquema. O deputado informou, em seu depoimento à CPI, que Bolsonaro, durante a conversa, se referiu ao seu líder na Câmara dos Deputados, deputado Ricardo Barros (PP-PR), como chefe da falcatrua na compra de vacinas.
Em suma, o servidor Luiz Ricardo mostrou a Bolsonaro documentos que comprovavam que ele estava sendo pressionado a autorizar a compra de 15 milhões de doses da Covaxin com pagamento adiantado para uma terceira empresa com sede num paraíso fiscal.
O servidor não autorizou a compra irregular e denunciou o caso para o presidente. Como Bolsonaro não tomou nenhuma providência, o servidor denunciou ao Ministério Público e à CPI da Pandemia. Na Comissão do Senado, ficou patente, através de vários depoimentos, que haveria o pagamento de um dólar por dose da vacina indiana.
O esquema criminoso só foi abortado depois que veio à público na CPI. O desvio de dinheiro seria no valor de R$ 82 milhões, caso o negócio fosse concretizado. O roubo só não ocorreu porque Luiz Ricardo se recusou a autorizar a compra e levou o caso à CPI da Pandemia.
Após denunciar o esquema de corrupçãop ao presidente, o servidor começou a ser perseguido e passou a ser ameaçado de morte junto com toda a sua família. Na sequência, foi exonerado do cargo que ocupava no Ministério da Saúde e, atualmente, ele e sua família estão morando fora do país em razão das perseguições e, até, ameaças de morte. O denunciante, sua mulher e filhos estão residindo em Portugal e fazem parte de um programa especial de proteção à testemunhas.
Ao longo da investigação, prestaram depoimentos o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo, a diretora-executiva da Precisa Medicamentos Emanuela Medrades, o diretor-presidente da mesma empresa, Francisco Maximiano, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o assessor especial da Casa Civil Antônio Elcio Franco e o ajudante de ordens da Presidência Jonathas Diniz Coelho.
O delegado não achou importante ouvir o presidente da República para concluir o seu relatório. “De qualquer modo, no contexto dos fatos aqui considerados, ainda que não tenha agido, ao Presidente da República Jair Messias Bolsonaro não pode ser imputado o crime de prevaricação. Juridicamente, não é dever funcional (leia-se: legal), decorrente de regra de competência do cargo, a prática de ato de ofício de comunicação de irregularidades pelo Presidente da República”, diz o delegado.
Em resumo, o delegado designado para investigar o caso da Covaxin afirma que, mesmo sabendo do crime milionário, Bolsonaro não tinha obrigação de fazer nada. Isso é o que diz o relatório. Não por acaso Bolsonaro se empenhou tanto para controlar a direção geral da Polícia Federal.
O deputado Luiz Miranda, irmão do servidor que denunciou a corrupção no governo Bolsonaro, criticou a decisão do delegado e afirmou que Bolsonaro não combate corrupção e que a vacina Covaxin só não foi comprada por causa da denúncia dele e do irmão.
“Nós não prevaricamos. Segundo a PF, o presidente não cometeu nenhum crime de prevaricação, mas cometeu um crime grave contra seus eleitores, que votaram nele na bandeira de combate à corrupção. E combater a corrupção vocês já sabem que ele não faz. Pelo contrário: ele é o cara que vai para cima daqueles que lutam pelo povo brasileiro e pelo combate à corrupção”, afirmou o deputado.
“Vamos aprovar a convocação do diretor da PF e do ministro da Justiça para explicar o inexplicável. A CPI da Covid propôs o indiciamento do presidente por prevaricação no caso Covaxin baseado em análises de juristas renomados. Bolsonaro é o servidor público número um, é obrigação dele mandar investigar denúncias que chegam até ele”, disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), integrante do Observatório da Comissão e vice-presidente da CPI. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, também protestou. “O delegado subverteu a lei”, disse o emedebista.