Algumas pessoas, inclusive candidatos a presidente, observaram que a entrevista de Bolsonaro na TV Record é uma demonstração do quanto ele respeita as regras – inclusive, as leis.
Pois, depois de encerrados, de acordo com a lei, os horários eleitorais na TV – ao mesmo tempo que começava um debate entre alguns candidatos, na Globo, ao qual Bolsonaro não compareceu, supostamente, por razões de saúde – o candidato do PSL entrou com um “horário eleitoral” de 26 minutos, completamente ilegal.
Essa “entrevista” – uma pantomina com um repórter levantando a bola para Bolsonaro chutar, acompanhada de uma narração sugestivamente laudatória – foi uma mera peça de propaganda eleitoral, portanto, completamente proibida pela lei.
Mas se existe algo com que Bolsonaro não se preocupa é com a lei – desde o tempo em que planejava, contra o Alto Comando do Exército, pequenos atentados na Vila Militar, na Academia das Agulhas Negras e outras dependências militares (v. Terrorismo de baixa potência).
Assim, o seu programa na Record foi uma completa transgressão da lei, até porque não foi uma entrevista.
Por outro lado, a Record não fez “entrevistas” semelhantes com outros candidatos. Nenhum teve direito a 26 minutos, no último dia do horário eleitoral.
Apesar disso, a audiência da “entrevista” de Bolsonaro parece bastante magra – alcançou 12,2 pontos, segundo o Ibope, contra 26 pontos, no mesmo horário, para o debate organizado pela Globo (e 11,2 pontos para a programação habitual do SBT).
A audiência variou, evidentemente, de cidade para cidade, e, segundo o Ibope, o jornal da Record ficou perto do dobro de sua média.
Mas é significativo que, apesar disso, a audiência do debate da Globo tenha sido mais do que o dobro daquela da “entrevista” de Bolsonaro, durante a transmissão desta última.
Quanto à “entrevista” da Record, Bolsonaro está cada vez mais parecido com Collor.
Na verdade, o que se viu foi um show, mais ou menos bem encenado, mas sempre ridículo.
A melhor parte foi a participação do auxiliar de enfermagem, que o interrompia, para que não forçasse a sua saúde, e lhe administrava remédios por via oral…
O profissional de enfermagem era, claro, negro – para mostrar que Bolsonaro não é racista; pelo menos no papel de enfermeiro, ele aceita muito bem os negros.
Depois disso, o melhor ficou por conta dos esgares de Bolsonaro para expor a sua exaustão ou dor ou mal-estar – e de como foi atingido pela facada em Juiz de Fora.
A “entrevista” era gravada. Por isso, não havia necessidade de mostrar esses detalhes. Bastava editar a gravação e retirá-los.
Mas tudo foi feito, exatamente, para mostrar essas coisas. O que o candidato dizia ou deixava de dizer, tinham muito menos importância. Assim, a edição foi para retirar outras coisas. Não os esgares de Bolsonaro ou as interrupções do enfermeiro, pois esse era o conteúdo principal do show.
A tática de Bolsonaro, no momento, em boa parte, é a vitimização. Nisso, ele, mais uma vez, se parece muito com Lula & cia.
Assim, o sujeito é um artista – ou, como se dizia, um histrião.
Os leitores mais novos devem estranhar esse termo antigo. A última vez em que ele foi usado mais intensamente, no Brasil, foi durante o governo Collor – que tinha, realmente, um histrião como chefe.
Antes, Mussolini também foi chamado, corretamente, de histrião. Mas parece que a origem do termo, no sentido político, está na descrição de um imperador romano de nome Nero, conhecido hoje apenas pela perseguição aos cristãos e pelo incêndio de Roma.
Como, às vezes, aparecem as coisas mais inesperadas nas bocas mais insólitas (?!), quem definiu melhor o “horário eleitoral” ilegal de Bolsonaro foi o candidato do PMDB, Henrique Meirelles, durante o debate da Globo:
“[isso] mostra alguém que não só está fugindo do debate, mas está fugindo do seu compromisso com a população. E, mais importante, não é meramente o debate, é a questão de estar aqui sujeito a crítica, sujeito a ataque, sujeito a discordância, muitas vezes a até ofensas ou coisas injustas ou falsas, mas que cada um de nós está aqui e enfrentando isso com seriedade e com respeito ao eleitor. E isto é que é importante, o eleitor merece respeito. Por quê? Porque nós temos aqui que apresentar propostas que o país precisa e também dizer o que fizemos. Cada um pode dizer o que já fez ou pode dizer o que não fez, ou pode simplesmente estar acusando ou brigando com outros candidatos por falta do que dizer. Mas é muito importante que o eleitor tenha a capacidade e a possibilidade de ver isso. Se alguém foge do debate, se alguém se esconde, se alguém não aparece e só vai dar uma entrevista numa situação de absoluto controle e numa situação amigável significa que essa pessoa, na minha visão, não tem condições de administrar o país. E por quê? Alguém para administrar o país tem que enfrentar as intempéries, tem que enfrentar chuvas e tempestades, tem que estar disposto a se expor”.
Se até o Meirelles consegue enxergar tal coisa, não é difícil expor o conteúdo do “horário eleitoral” de 26 minutos, conseguido por Bolsonaro após a adesão do proprietário da Record, Edir Macedo, à sua campanha.
Até nisso, aliás, ele se parece com alguns personagens que diz detestar – e, provavelmente, detesta mesmo. O leitor lembra-se de Dilma, puxando o saco do bispo Macedo, na inauguração do “Templo de Salomão”?
Pois é.
Por falar nisso, Bolsonaro – ou o vice-presidente da Record, Douglas Tavolaro, que organizou a encenação – escolheu aparecer à frente de um candelabro de sete braços, um “menorá”, símbolo do judaísmo e de certos cultos que mimetizam o judaísmo.
Deve ser para provar que não é nazista – ou puxar o saco de Israel.
No espetáculo, entre caretas, suspiros – e as interrupções do enfermeiro para que descansasse e engolisse algumas pílulas -, Bolsonaro negou o que todo mundo sabe que ele acha – em relação às mulheres e aos negros, por exemplo.
Além disso, desmentiu que seu guru econômico, Paulo Guedes, e seu candidato a vice-presidente, Hamilton Mourão, tenham dito o que disseram: que pretendem aumentar os impostos dos mais pobres e aliviar os impostos dos mais ricos, acabar com o 13º salário e com o adicional de férias.
Falou bastante da corrupção do PT – e, como essa foi a única parte verdadeira do que falou, pareceu até convincente. Embora, nisso, qualquer um pareceria convincente.
O que estragou foi o glacê: Bolsonaro tentou se apresentar como um bom moço, respeitador da democracia e cheio de boas intenções.
Mas aí era demais.
C.L.