“É óbvio que a campanha de Jair Bolsonaro à Presidência usou a internet para espalhar desinformação, viralizar notícias mentirosas, persuadir eleitores”, disse a executiva, em entrevista à Veja
A ex-diretora de negócios da Cambridge Analytica, empresa envolvida em crimes cibernéticos contra a democracia em todo o mundo, Brittany Kaiser, garantiu, em entrevista à revista Veja, que a campanha de Bolsonaro usou o esquema de fraude financiado pelo bilionário Robert Mercer e operado por Steve Bannon e Alexander Nix. Este último um inglês que era CEO da Cambridge.
“É óbvio que a campanha de Jair Bolsonaro à Presidência usou a internet para espalhar desinformação, viralizar notícias mentirosas, persuadir eleitores”, disse ela.
A Cambridge Analytica é uma empresa de orígem inglesa, que nasceu das entranhas da SCL Group, Ltd. A SCL prepara estratégias políticas para governos e empresas baseadas na análise de dados. Segundo seu site, o grupo já “conduziu programas de mudança comportamental em mais de 60 países” e tem escritórios na Ásia e na América Latina.
O SCL é dividido em dois braços: SCL Defesa e SCL Eleições, e já prestou serviços para os Departamentos de Defesa do Reino Unido e para a Otan. Eles trabalharam também para o Departamento de Estado dos Estados Unidos no Oriente Médio e no Afeganistão.
Segundo Christopher Wylie, o ex-funcionário da CA e da SCL que também delatou o vazamento de dados da rede social, a especialidade do SCL são as “operações psicológicas” – que procuram mudar as crenças e o pensamento político de pessoas por meio da “dominância informativa”, técnica que inclui rumores, desinformação e a circulação de notícias falsas”.
Mesmo tendo decretado falência, as duas empresas estão sendo remontadas com outros nomes e com os mesmos donos.
“Pela minha experiência e por fatores que não vou detalhar é óbvio que o presidente Jair Bolsonaro se apoiou nessa estratégia para se eleger. A Cambridge Analytica, depois de todos os escândalos, teve dificuldade para operar em solo brasileiro. Todavia, muitas empresas similares fizeram isso em favor de Bolsonaro. A campanha dele usou a internet para espalhar desinformação, viralizar notícias mentirosas, persuadir eleitores.
Diferentemente de Trump, ele recorreu mais ao WhatsApp, e não ao Facebook. De resto, foi muito parecido”, explicou.
“Sempre que eu ligava para os nossos advogados com dúvidas acerca de procedimentos de compliance, se alguma operação seria ilegal ou não, era reprimida. Para eles, eu estaria apenas criando ruído. Havia a visão de que os cientistas de dados saberiam, intuitivamente, o que pode, o que não pode, e ponto. Ficou evidente que não era bem assim”, disse a ex-executiva.
“Para mim, os problemas tornaram-se claríssimos um mês antes da vitória de Trump na eleição presidencial de 2016. Um então colega meu na Cambridge, que estava à frente do trabalho do candidato republicano, coordenou uma apresentação do que havia sido feito. Foram dois dias de detalhamentos. Explicou-se quais dados privados a Cambridge comprara de empresas variadas”, axplicou Brittany.
“Elucidou-se ainda a criação de estratégias específicas de convencimento, de acordo com o grupo de usuários das redes sociais que se pretendia impactar. À primeira vista, tudo soava banal. Mas, olhados de forma séria, logo esses procedimentos se revelaram problemas gravíssimos. A Cambridge não só trabalhava para convencer eleitores a optar por Trump. Também se esforçava para persuadir pessoas a não ir votar em Hillary Clinton, a ficar em casa no dia da eleição. Foram utilizadas muitas táticas chocantes. Antiéticas, certamente. E talvez se comprove serem ilegais”, denunciou.
“Há três pontos a ser considerados”, acrescentou a especialista em relações internacionais. “Primeiro, os dados foram obtidos com falsas pretensões. Dizia-se que a intenção da coleta, tanto por meio de empresas terceirizadas quanto por games e questionários do tipo ‘Qual princesa da Disney é a sua preferida?’, era de cunho acadêmico. Mentira. A segunda consideração, contudo, é que judicialmente seria possível contornar isso, dizendo que todos os usuários aceitaram expor suas informações ao concordar com os termos de serviço do Facebook”.
“Entretanto, isso é malandragem”, explicou a ex-diretora da Cambridge. “Agora, por fim, é inegável que foram utilizadas táticas como a disseminação de notícias falsas, de mensagens racistas e sexistas e a opressão do voto — incentivando eleitores a não ir às urnas —, que são ilegais em vários países, como nos Estados Unidos. Infelizmente, as legislações possuem diversas brechas que permitem múltiplas interpretações sobre o que é legal ou não na internet. Esse, de fato, é o maior problema. É o que deve ser debatido com urgência”, prosseguiu.
Reforçando as suspeitas da CPI das Fake News, que está em andamento no Brasil, para investigar crimes eleitorais na eleição de 2018, a especialista confirmou que outras empresas passaram a fazer a mesma coisa que a Cambridge. “Na verdade, a prática se disseminou. A companhia para a qual trabalhei esteve nos holofotes. Mas diversas outras fazem exatamente a mesma coisa. Um estudo recente da Universidade de Oxford constatou isso, identificando diversas agências do mesmo tipo, espalhadas pelo mundo, que realizam propaganda política antiética. Nos últimos três anos, esses profissionais ainda aprimoraram todas essas táticas, seguindo o avanço das tecnologias relacionadas à criação de bots nas redes sociais, à inteligência artificial, à produção e divulgação de fake news etc”, disse ela.
Para a ex-executiva da Cambridge, o esquema propiciou a ascensão de novos elementos que “põem em risco a democracia, em movimento similar ao que antecedeu a II Guerra Mundial”. “Eles atacam a civilização”, acrescentou.
Brittany falou sobre a experiência de trabalhar em uma empresa que cometeu crimes. “Quando comecei na Cambridge, estava completando o doutorado sobre diplomacia preventiva. A proposta era pesquisar como usar algoritmos para antever crises, como guerras, e adotar estratégias de prevenção. De início, já na Cambridge, uma das propostas era coletar dados para identificar quem poderia ser recrutado pelo Estado Islâmico, o Isis, e valer-se da propaganda nas redes para mudar a ideia dessas pessoas. Quando a estratégia é utilizada da maneira correta, pode solucionar grandes problemas do mundo. Reafirmo: em casos como esse, não há problema”, assinalou.