
O jornalista Ahmed Aziz, que estava perto da tenda incendiada, relatou ao portal Middle East Eye os trágicos acontecimentos que levaram à morte de dois de seus colegas, Fakawi e Mansour, engolfados pelas chamas. Reproduzimos o relato da morte por queimaduras e dos ferimentos em outros pelo menos seis jornalistas palestinos, sob as bombas israelenses
“Estávamos nas tendas [próximo ao hospital Nasser] por volta da meia noite quando uma bomba atingiu uma delas. Dentro dela estavam os jornalistas Hassan Islayeh e Ahmed Mansour e Hilmi Farkawi. Mansour estava trabalhando em turno noturno como editor do portal Palestine Today.
O jornalista Hilmi al-Faqawi estava dormindo naquele momento. Faqawi trabalhava para a divulgação do Palestine Today através das redes sociais.
Ele foi atingido por estilhaços em seu peito, estômago e rosto e faleceu.
O celular de Islayeh pegou fogo. Ele conseguiu correr para fora mas foi atingido por estilhaços que feriram os dedos de sua mão direita.
Naquela situação tentamos apagar o intenso fogo.
Vídeo da Al Arabya mostra tenda em fogo e pode-se ver por entre as chamas o jornalista queimando vivo:
Outro pedaço de bomba atingiu outra tenda em frente a nós. Essa outra tenda pertencia aos correspondentes do portal Russia Today (RT). Um cilindro de gás que, por sorte estava vazio, explodiu com o pouco de gás restante em seu interior, enchendo a tenda de fumaça.
Corremos para acordar os colegas em meio à fumaça desta outra tenda e verificar se estavam feridos. Nosso colega Ehab al-Bourdaineh, fotógrafo da RT, foi ferido por um estilhaço que entrou pela nuca e saiu pelo seu olho direito.
Também foi ferido Yousef al-Khazindar, que atua na região e usa as tendas para dar uns cochilos. Abdullah al-Attar foi ferido à altura do baço e começou a sangrar muito. Mohammed Fayeq foi atingido na mão esquerda.
Fizemos tudo o que pudemos para tirar Mansour das chamas, mas as condições tornaram seu resgate impossível. Tentamos desesperadamente salvá-lo, mas sem sucesso.
SITUAÇÃO CRÍTICA
A situação na área ficou tomada pelo caos, pelo ataque às tendas. Os jornalistas que cobriam outro massacre em Khan Yunis, durante aquele dia, estavam exaustos.
Começamos a levar os feridos ao hospital Nasser, que não ficava longe, à pé.
Com os feridos acomodados no hospital Nasser, ficou claro quais estavam em condições críticas.
Bourdaineh ainda está em tratamento intermediário, em uma condição grave.
Islayeh, jornalista proeminente em Gaza, sofreu ferimentos graves. Além da mão, foi ferido na cabeça e na perna.
Mansour, que ficou tomado por queimaduras e estava de início no departamento de tratamento de queimaduras, em situação crítica, sucumbiu a suas feridas nesta terça-feira.
SONHOS ESTILHAÇADOS
Na segunda-feira, fizemos o funeral de Fakawi. Foi apenas poucos dias depois dele ter decidido me acompanhar na cobertura de procissões e em entrevistas.
Ele estava tão orgulhoso porque um vídeo filmado por ele havia viralizado no dia anterior. “Eu sou menos experiente do que você, mas vou ficar mais famoso”, brincou ele antes de morrer.
Em uma última conversa, ele me disse que queria ‘trabalhar, trabalhar, trabalhar’ e que seu sonho era se tornar correspondente de uma agência de notícias internacional.
Agora estou evitando conversar com jornalistas em torno de mim pois está difícil carregar a dor de perder mais um amigo.
Mansour, que conheci no dia 10 de outubro de 2023, três dias depois do começo da guerra, tinha uma filha e um filho. Ele visitava seu filho, Wissam, que estava nas proximidades, todos os dias.
Muitos dos seus parentes, deslocados, estavam hospedados em sua casa.
Durante os três primeiros meses da guerra trabalhamos juntos por longas horas, às vezes 13 horas por dia no mesmo local. Chegamos a passar fome juntos.
Ele era gentil e sempre prestativo, querendo ajudar.
Era cuidadoso com sua aparência, se vestia bem e sempre aparava o bigode e barba.
Ainda que não tivesse morrido, lhe teria sido muito difícil a sobrevivência devido à extensão de seus ferimentos. Era de cortar o coração vê-lo no hospital.
Me é difícil olhar para a bicicleta que usava e os restos da tenda onde foi queimado.
EM SUA MEMÓRIA
Estou exausto. Já estamos há um ano e meio desta tragédia. Nunca imaginei que minha carreira de jornalista seria assim.
Perdi tantos amigos e colegas, pessoas que conhecia há mais de 10 anos.
Agora eu evito ficar em tendas de imprensa.
As pessoas não conseguem sequer começar a imaginar pelo que passamos: bombardeio diário e perdas.
Confesso que não me considero feito de aço. Estou estilhaçado por dentro.
Eu continuo trabalhando todo dia para evitar ficar em casa, porque estas lembranças me destruiriam.
Às vezes penso que preferiria ser martirizado no trabalho de campo.
Apesar de também estar ferido, não posso parar de trabalhar.
Por meus colegas e por sua memória”.
AHMED AZIZ