Dois comentários sintetizam tudo o que aconteceu na quarta-feira na Grã-Bretanha, quando o primeiro-ministro Boris Johnson, mais conhecido como ‘BoJo’, obteve da rainha Elizabeth II a suspensão do parlamento britânico por cinco semanas, para impedir que os parlamentares intervenham nas decisões sobre o Brexit – a saída da União Europeia -, a mais importante questão da vida do país em décadas, marcado para o dia 31 de outubro.
Achaque que, pelo visto nas cenas ridículas do G7 de Biarritz protagonizadas pelo louro Boris e pelo bilionário da Casa Branca, implica em desvirtuar a decisão majoritária em referendo de um Brexit pró soberania britânica, para um ‘Brexit com Trump’, que torne o país ainda mais avassalado.
“Ultraje constitucional”, definiu o presidente da câmara baixa do parlamento inglês, o conservador John Bercow, enquanto o líder do maior partido de oposição, o trabalhista Jeremy Corbyn, denunciava o Brexit de Boris Johnson como “uma corrida de cabeça nos braços de Trump”.
O que praticamente foi confirmado via Twitter pelo @realDonald Trump, instruindo os britânicos de que “Boris é exatamente o que o Reino Unido está procurando & provará ser ‘um grande’!’ Amo o Reino Unido”.
A rainha da Grã-Bretanha Elizabeth II acedeu à suspensão dos trabalhos do parlamento de 9 a 12 de setembro a 14 de outubro. A data do Brexit é 31 de outubro, sendo que o Conselho Europeu que irá votar o acordo final com a Grã Bretanha irá ocorrer nos dias 17 e 18. Além disso, é praxe que o discurso da rainha, que inaugura a nova sessão do parlamento, seja debatido por seis dias.
Como o parlamento está de recesso e volta no dia 3 de setembro, trata-se, como descreveu o número 2 do trabalhismo, John McConnell, de um “golpe muito britânico”.
Quanto à apologia de BoJo feita pelo Twitter por Trump, para Corbyn “o que o presidente dos EUA está dizendo é que Boris Johnson é exatamente o que ele está procurando, um primeiro-ministro complacente que entregará serviços públicos e proteções da Grã-Bretanha a corporações americanas em um acordo de livre comércio”.
“PARE O GOLPE, NINGUÉM VOTOU EM BORIS!”
Mal se tornou pública a manobra de Boris Johnson para manter o parlamento fechado por cinco semanas, os manifestantes começaram a tomar as ruas em Londres e outras cidades, bradando “Salve nossa democracia, pare o golpe!”, “Vergonha sobre você!” e “Ninguém votou em Boris”.
O que é verdade: ele foi eleito em uma votação interna dos conservadores, após a queda da primeira-ministra Theresa May, e não nas urnas.
Milhares de manifestantes se concentraram no final da tarde no Common Green, perto do parlamento, e marcharam até Downing Street, sede do governo britânico. Atos de repúdio também ocorreram em Manchester, Edimburgo, Cardiff, Birmighan, Liverpool, Bristol, Durham, Brighton e Cambridge. Entre os participantes, havia também defensores da permanência na União Europeia.
Na internet, em poucas horas quase um milhão de pessoas subscreveu um abaixo-assinado para exigir que o parlamento seja ouvido sobre o acordo de saída final, em negociação por Boris Johnson com Bruxelas. Pela lei britânica, qualquer abaixo assinado com pelo menos 100 mil assinaturas deve ser apreciado pelos parlamentares.
Uma pesquisa da YouGov registrou que 47% dos entrevistados consideravam inaceitável que o governo suspendesse o parlamento durante o processo final do Brexit, em comparação com apenas 27% que apoiou a medida.
“QUEBRA E AGARRA”
Corbyn também comparou a decretação da suspensão do parlamento – isto é, o fechamento do parlamento através de uma manobra no momento mais crítico do país em décadas – a um “smash and grab”, termo com que os ingleses se referem aquele tipo de furto em que um trombadinha quebra uma vidraça, agarra o que pode e sai correndo sem se importar com o barulho, os destroços que deixou ou o soar de um alarme.
“Quaisquer que sejam as opiniões sobre o Brexit, uma vez que você permita que um primeiro-ministro impeça a operação plena e livre de nossas instituições democráticas, você está em um caminho muito precário”, assinalou McDonnell.
O acinte também causou danos no próprio partido de Johnson: a deputada Ruth Davidson renunciou ao cargo de líder dos conservadores na Escócia. O ex-ministro do Tesouro sob May, Philip Hammond, considerou “um escândalo constitucional impedir o Parlamento de exercer sua função de controlar o governo em um momento de crise nacional como o atual”.
A primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, pediu que os parlamentares ingleses se unissem para deter BoJo na próxima semana. Se isso não for feito – acrescentou -, esta quarta-feira passará para a história como “um dia sombrio para a democracia do Reino Unido”.
Segundo ela, o objetivo de Johnson é “forçar um Brexit sem acordo”.
A vice-líder dos verdes, Amelia Womack, confessou que não esperava que o primeiro-ministro conservador faria “um movimento tão brutal que mostrasse tal desrespeito pelos nossos procedimentos parlamentares”. O que Boris Johnson acabará fazendo – destacou – é “unir os britânicos que não apoiam um não-acordo e essa negação da democracia”.
Uma das poucas vozes de endosso veio dos unionistas da Irlanda do Norte, coligados a Johnson, que saudaram a decisão de realizar o discurso da rainha.
NÃO-ACORDO
Enquanto a expectativa dos 52% que votaram pelo Brexit era de uma Grã Bretanha com mais soberania e de uma escapatória da herança maldita do thatcherismo, o núcleo duro conservador, que nas negociações com Bruxelas sempre privilegiou os interesses da City londrina, do setor financeiro, vem se definindo por marchar para o colo de Trump, ao qual o presidente bilionário prometeu um acordo bilateral em substituição às relações econômicas com os países europeus.
Toda essa tensão está se condensando na questão do não-acordo, que jamais esteve sobre a mesa durante os debates do referendo.
Como salientou Corbyn, o plano de Boris Johnson de suspender o parlamento é para “evitar o escrutínio de seu plano de Brexit sem acordo” – o que chamou de “um escândalo e uma ameaça à nossa democracia”.
Apoiadores de Johnson asseveram que sem colocar a carta do não-acordo na mesa não há como pressionar suficientemente os europeus para mudarem o que May já aceitou. O que é contestado pela oposição, que denuncia que o objetivo real é empurrar o país para um neoliberalismo ainda mais extremado e submisso a Trump.
Estudo do próprio governo britânico, divulgado pelo jornal Sunday Times, advertiu que um Brexit sem acordo, ou seja, um desacoplamento econômico anárquico, depois de uma integração que data de 1973, ameaça o país com desabastecimento de alimentos, remédios e combustível, entre outros desastres.
Johnson diz que, impreterivelmente, com ou sem acordo, a Grã Bretanha irá sair da União Europeia no dia 31 de outubro e cobrou de Bruxelas que faça uma proposta alternativa ao chamado backstop irlandês.
BUFONARIA
Para o jornalista inglês John Wight, a persistência de BoJo nesse caminho do não-acordo ameaça até mesmo a integridade da Grã Bretanha como nação, já que 62% dos escoceses e 55% dos norte-irlandeses votaram para ‘permanecer’ no referendo de 2016. Como ele registra no portal RT, Johnson está agindo “não em nome da democracia em nome do povo britânico, mas em nome do capitalismo de desastre, em nome das corporações dos EUA”.
“O Brexit que Johnson e seus acólitos preferem é aquele que lhes dá a oportunidade de terminar a revolução de direita de Margaret Thatcher, que começou nos anos 80. Seus objetivos são a dizimação do que resta do Estado de bem-estar, incluindo o NHS (apesar do que Johnson diz em contrário), a dizimação do que resta do movimento sindical e o desenraizamento dos últimos vestígios de coletivismo e solidariedade social deixados ao longo do consenso keynesiano do pós-guerra”.
O jornalista também sublinha que Johnson tem uma vida pública “mergulhada em controvérsias e escândalos”, não passando de um “charlatão político, que pratica a bufonaria, nascido para afrontar o senso de direito, e cujo tributo a Winston Churchil não é senão motivo de riso”.
A raiz das divisões atuais na sociedade britânica – ressaltou Wight – está nos “seis anos de austeridade selvagem Tory”, que plantou “miséria e pobreza em uma escala vitoriana em partes do país que já estavam sofrendo o impacto de anos de negligência, falta de investimento e o darwinismo social da economia neoliberal e valores acompanhantes”.
ANTONIO PIMENTA