MARCUS VINICIUS DE ANDRADE (*)
O maestro Marcus Vinicius tem uma qualidade além da música: é um escritor de estilo – nós diríamos, um escritor de estilo impressionante. Confira o leitor o texto abaixo, que é, também, o relatório de março, escrito pelo maestro para o Observatório da Democracia, sobre a situação cultural do país (C.L.)
Quando no início de 2019 este OBSERVATÓRIO DA DEMOCRACIA deu início à sua tarefa de monitorar em tempo real o (des)governo do capitão Bolsonaro, provavelmente jamais imaginaria que, passados apenas 15 meses, todo aquele quadro negativo que já então se prenunciava para a cultura iria ganhar contornos muito mais graves e, por que não dizê-lo?, assustadores porque arautos do fim.
Se antes suspeitávamos que no âmbito governamental só teríamos (como efetivamente tivemos e ainda temos) ódio declarado à arte e à ciência, autoritarismo e incompetência gestora, letargia, ignorância cultural, flerte com o nazifascismo, aparelhamento da máquina estatal por bolsominions e milicianos, etc., hoje constatamos que o que seria ruim tornou-se de fato muito pior: com a irrupção da pandemia do coronavírus, a perspectiva agora é de uma verdadeira hecatombe para a cultura, em escala planetária, aliás. O mundo efetivamente terá de repensar a cultura, após a crise. No Brasil, as estatísticas mostram que o coronavírus parece estar apostando corrida com o Capitão Fanfarrão para ver quem extermina a cultura mais depressa: cientes de que o páreo será difícil, ambos os contendores deram-se as mãos e associaram-se no Goebbels Inn, um perfeito condomínio pró-assassinato cultural.
Ainda que o mundo da cultura já estivesse atento a esse contubérnio, foi o Sindicato dos Escritores do Estado de São Paulo, através de sua Diretoria, presidida pelo Prof. Nilson Araújo, uma das primeira entidades culturais a denunciá-lo pública e detalhadamente com veemência, em documento intitulado Em Defesa da Vida, Basta de Bolsonaro!, datado de 31.03.2020. Nesse documento, o Sindicato aponta não apenas a hedionda política do governo contra a cultura, a arte, a literatura e a comunicação, mas também demonstra que ela compõe – e agrava – a crise econômica, social e política em que o Brasil se arrasta desde 2014. Vai adiante o Sindicato dos Escritores ao explicitar que, além da profunda crise sanitária em que ora nos debatemos, o país também passou a sofrer constantes ameaças de violação à sua democracia, junto a uma redução drástica da produção e do emprego e nova(s) ameaça(s) golpista(s) por parte do chefe do grupo palaciano. Esse conjunto de fatores, por si só altamente explosivo, não tem recebido das autoridades brasileiras uma atenção minimamente equivalente à que outros países do mundo estão concedendo às suas economias nestes tempos de crise. Pelo contrário, e é o próprio Sindicato quem o afirma, em lugar de priorizar a garantia de emprego dos trabalhadores e a proteção da população mais vulnerável (desempregados, subempregados, trabalhadores informais e autônomos), o ’governo´ vem se perdendo em decisões meramente paliativas e circunstanciais, quando não francamente hostis ao povo brasileiro, como a Medida Provisória que suspendia os contratos de trabalho – e por consequência os salários – por quatro meses; ou a concessão de auxílios financeiros insuficientes e até vergonhosos, que melhor seriam se fossem chamados de bolsas-miséria. E que para a Economia da Cultura seriam absolutamente inócuas.
Será essa política anticultural do governo vem sendo impactada pelo agravamento da crise do coronavírus, como indaga o Sindicato dos escritores paulistas? Não há por que duvidar disso, a julgar pelo que ocorre na principal área de atuação dos escritores, o mercado editorial. Segundo Marcos Pereira, editor e presidente do SNEL – Sindicato Nacional dos Editores de Livros, com a pandemia do coronavírus e o fechamento do varejo estima-se que esse mercado terá uma redução de 70% em suas receitas, retração muito mais grave que a causada pelas dificuldades das duas maiores redes de livrarias nacionais. Em razão desse quadro, muitas editoras do país, das maiores às mais modestas, estão suspendendo lançamentos por prazo indeterminado, ainda que já esteja havendo, entre os principais players da atividade (editoras, escritores, distribuidores, gráficas, etc.) uma concertação para que práticas e preços sejam melhor compatibilizados, de forma a minimizar, até onde for possível, os impactos da crise (ver https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mauricio-meireles/2020/03/editoras-prendem-a-respiracao-com-novo-coronavirus.shtml ). Por outro lado, feiras e eventos literários similares foram cancelados, não só no país como em todo o mundo, privando os escritores da fonte adicional de renda que tinham com palestras, conferências, cursos e noites de autógrafos. Para grande parte do primeiro escalão bolsonarista, que tem notória incompatibilidade de gênio com os livros, essa crise do setor editorial pouco ou nada significa; mas para estudantes, pesquisadores, professores, leitores contumazes ou simples amantes das letras, essa crise terá efeitos desastrosos, a começar pelo fato de poder desestabilizar, por alguns meses ou anos, o mercado editorial nacional que tão arduamente vinha sendo consolidado.
Para outros setores da cultura, o prejuízo causado pelo coronavírus, alavancado pela inépcia governamental, também se faz sentir com intensidade. O Prof. João Luiz de Figueiredo, coordenador do mestrado profissional em gestão de economia criativa da ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing, estima que o prejuízo no setor cultural (que responde por 2,64% do PIB brasileiro) pode ultrapassar neste ano os 100 bilhões de reais. Para Figueiredo, o fundamental no momento é impedir a falência das empresas do ramo, que em 2018 agregavam 5,12 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Registre-se, além do mais, que grande parte dos profissionais da cultura trabalham por demandas ocasionais e não têm vínculos formais de emprego, o que significa dizer que os prejuízos da área cultural podem ser superiores aos 100 bilhões estimados pelo Prof. Figueiredo, se consideradas a informalidade e as perdas de receitas em negócios indiretos mas tangenciais à cultura propriamente dita (como alimentação, transporte, publicidade, etc.). Os prejuízos são mais diretamente sentidos nas atividades que dependem de público, como teatro, cinema e shows, cujos fluxos de caixa são mantidos em função das receitas das bilheterias, ora paradas devido à interrupção das apresentações e às restrições ao ajuntamento de pessoas. Segundo a ABRAPE – Associação Brasileira dos Promotores de Eventos, 51,9% dos eventos programados para 2020 no Brasil foram cancelados, adiados ou estão em situação incerta devido à pandemia. Enquanto a crise na cultura se expande pra valer, as estruturas governamentais se omitem ou adotam providências cosméticas e/ou paliativas: para a Profa. Silvia Finguerut, coordenadora de projetos da FGV – Fundação Getúlio Vargas, os R$ 600 propostos pelo governo para amenizar o impacto da pandemia sobre os trabalhadores informais, assim como as acanhadas linhas de microcrédito, como a oferecida pelo estado do RJ (juros de 0,25% ao mês para limites de até R$ 21 mil) ou a disponibilizada pelo estado de SP (juros de 0,35% ao mês para valores até R$ 20 mil), poderiam até ajudar a reiniciar os negócios, mas seriam insuficientes para mantê-los, visto que o público continuaria ausente, confinado em casa. Para os trabalhadores da cultura, em geral indivíduos melhor remunerados do que a média nacional, tais verbas são, no dizer de Finguerut, “quase uma caridade” que, além do mais, podem ocasionar o êxodo em massa dos trabalhadores da área. Ou seja, uma vergonha para a cultura. (ver https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/impacto-do-coronavirus-na-cultura-sera-de-mais-de-r-100-bilhoes-diz-especialista.shtml).
Segundo os produtores, o setor de entretenimento está quase à beira do colapso, com cerca de 580 mil profissionais sob risco de desemprego no Brasil, após a pandemia do coronavírus (ver https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/580-mil-podem-ser-demitidos-no-setor-cultural-apos-coronavirus-diz-pesquisa.shtml ). Diz-se que esta é a maior crise da indústria da música ao vivo, tanto nacional quanto internacionalmente (ver https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/industria-de-shows-ja-sente-impacto-do-que-pode-ser-a-maior-crise-da-historia.shtml ), o que não está longe de ser exagero. A alternativa possível, que seria a migração dos programas culturais para o universo virtual tem-se mostrado problemática, não apenas porque este continua sob o controle dos quatro gigantes da tecnologia (Apple, Amazon, Facebook e Google), que com suas empresas-satélites do ramo do entretenimento dominam quase todo o fluxo de acessos e informações culturais na rede, como também porque o aumento do streaming em razão da pandemia está trazendo junto o crescimento da velha pirataria, que faz com que os usos ilegais de conteúdos culturais corroam os legítimos ganhos de criadores e produtores e inviabilizem muitos negócios na rede. Assim, a crise da cultura desloca-se do analógico para o digital, mas continua sendo crise e com prejuízos talvez maximizados. (ver https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/streaming-tem-estouro-de-audiencia-com-pandemia-mas-pirataria-tambem-cresce.shtml ). Prova de que o coronavírus vem afetando direta e profundamente o mercado está também no fato de que o ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição prevê que deixará de arrecadar e distribuir neste ano, cerca de 140 milhões de reais, apenas em direitos de execução pública de obras musicais, o que não inclui receitas obtidas com shows e concertos, nem tampouco com vendas de CDs, DVDs e outros suportes (ver https://veja.abril.com.br/entretenimento/ecad-preve-queda-de-r-140-milhoes-na-arrecadacao-de-direitos-autorais/ ). Se consideradas as perdas nestes segmentos, o prejuízo na área musical como um todo será imensurável.
Se servir de consolo, registre-se que, devido ao coronavírus, a crise na área da cultura é mundial e igualmente avassaladora. Não deixa de ser irônico que o país mais rico do mundo, os Estados Unidos, que em 2017 teve um investimento público em artes e cultura de US$ 4 per capita (muito abaixo dos da Finlândia e da Alemanha no mesmo período, com US$ 95 e US$ 30 per capita, respectivamente) seja aquele que, no mundo desenvolvido, tenha a indústria cultural mais vulnerável ao mercado. Entre fins de março e começos de abril deste ano, cerca de 10 milhões de pessoas perderam o emprego nos EUA, a maior economia do mundo, onde se estima que o desemprego chegará em breve a 32%, o que é assustador se levar-se em conta que, no auge da Grande Depressão de 1933, menos de um quarto dos trabalhadores norte-americanos foram afetados. Tem-se por certo que grande parte dos empregos a serem perdidos estarão na área da cultura e do entretenimento, como já sugerem alguns indícios: 21 produções da Broadway foram canceladas e as perdas com vendas de ingressos já montam a 100 milhões de dólares; os teatros off-Broadway e as produções regionais estão em risco de fechar definitivamente devido à pandemia; os museus de Nova York estão parados desde 12 de março e mesmo o Metropolitan, o terceiro mais visitado do mundo, já estima um prejuízo inicial também da ordem de 100 milhões de dólares. Buscando debelar essa crise, inúmeras estratégias estão sendo traçadas por intelectuais e artistas dos EUA, os quais se inspiram, inclusive, nas políticas do Presidente Franklin Delano Roosevelt, que, em plena Grande Depressão, instaurou o Works Progress Administration, o mais ambicioso projeto de financiamento cultural da história americana, que empregou dezenas de milhares de artistas plásticos, músicos, escritores e atores, entre os quais o pintor Jackson Pollock, o dramaturgo Arthur Miller, o diretor Orson Welles e a fotógrafa Berenice Abbott, que depois do auxílio recebido, tornaram-se grandes ícones da cultura norte-americana. Muitos nomes da atual cultura dos EUA pleiteiam abertamente a urgente criação de um equivalente interno do antigo Plano Marshall, agora para a recuperação da cultura do país. (ver https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/coronavirus-devasta-a-industria-cultural-nos-eua-que-pede-plano-marshall.shtml).
Outros países como a Alemanha, a França, Portugal e até o pequeno Equador, que está tendo dificuldades até para enterrar seus mortos na pandemia, também vêm executando regularmente projetos de apoio às artes e à cultura, que geralmente consistem na promoção de espetáculos emergenciais de música, teatro e dança, com o fito de não deixar paralisada a Economia da Cultura, nem os artistas sem remuneração; em muitos casos, esses auxílios se dão pela concessão de bolsas, empréstimos e financiamentos públicos, ou mesmo pela complementação, pelo Estado, dos salários devidos aos artistas.
E nós do Brasil, que devemos fazer? Que bandeiras devemos sustentar para superar esse momento? São as perguntas que o Sindicato dos Escritores do Estado de São Paulo dirige a todos que hoje vivemos num cenário de filme de terror, como acertadamente definiu Sérgio Sá Leitão, ex-Ministro da Cultura e atual Secretário de Cultura e Economia Criativa do estado de São Paulo. Para Sá Leitão, o setor cultural e criativo foi um dos primeiros a ser devastado pela crise sócio-econômica gerada pelo novo coronavírus, continuando ainda a ser um dos mais impactados: entre a segunda e a terceira semanas de março, com exceção das programações por meios eletrônicos, as atividades na área foram a zero em quase todos os outros segmentos. Até agora, no Brasil, as tímidas reações governamentais em prol da cultura restringem-se, como já dito, a ajudas pontuais, geralmente de caráter assistencialista, que funcionam como tapa-buracos ou remendos para esconder a crise geral do setor. No incentivo da sobrevivência, busca-se conceder auxílios individuais a determinados trabalhadores da cultura, o que não deixa de ser importante, só que não basta: socorre-se os artistas, mas não a arte; ampara-se os músicos, mas não a música, e por aí vai…
Por mais louváveis que possam ser tais iniciativas isoladas, elas poucos significam se não estiverem atreladas organicamente a um projeto nacional de cultura, algo que até hoje o governo do capitão Bolsonada (e também os governos anteriores, a bem da verdade) sequer foi capaz de esboçar. Respondendo à indagação do Sindicato dos Escritores, a cobrança desse projeto deve ser bandeira prioritária dos setores políticos e da cidadania: sem ele, a cultura do Brasil continuará à deriva, imersa em perfumaria e sem uma espinha-dorsal que a sustente. Caso continue apenas distribuindo migalhas assistenciais, segundo critérios e escolhas no mínimo questionáveis, o governo brasileiro pouco ou nada estará fazendo pela cultura, enquanto a dupla Bozovírus-Coronaro continuará se aperfeiçoando em dizimá-la. Segundo o Prof. João Luiz de Figueiredo, da ESPM, para a recuperação da economia criativa nacional não bastam linhas de crédito subsidiadas: é preciso investir dinheiro público num plano do governo específico para o setor. Em havendo um consistente projeto nacional de cultura, as linhas de ação e as políticas de investimento para o setor logo ficarão definidas. Mas haverá dinheiro para isso?
Há sim. Diz o Prof. Nilson Araújo, presidente do Sindicato dos Escritores de São Paulo e também economista, por sinal:
“Há dinheiro suficiente para garantir emprego e salário para os trabalhadores, renda básica emergencial para os mais vulneráveis e apoio para as micro, pequena e média empresas nacionais. Basta o Banco Central seguir o exemplo mundial e praticar juro nominal zero para o conjunto da dívida pública que se economizaria cerca de R$ 200 bilhões por ano. Basta taxar adequadamente grandes fortunas e distribuição de lucros e dividendos que se obterá receita de mais R$ 200 bilhões. Além disso, existe no caixa único do Tesouro um pouco mais de R$ 1,3 trilhão. Basta suspender os obstáculos à sua utilização, como a lei do teto, que esse dinheiro estará disponível. No limite, emitir dinheiro. Em lugar de enfrentar esses problemas, o ministro da Economia promete encher as burras dos bancos de dinheiro (chegou a falar de R$ 1,2 trilhão) e mente descaradamente sobre o montante de recursos a serem destinados aos trabalhadores e às empresas nacionais.”
Hoje, a prioridade é que o povo brasileiro se proteja das duas maiores ameaças que o cercam: o coronavírus e o governo Bolsonaro. Se todos estamos em quarentena, é fundamental que, para o bem da nação, o vírus do bolsonarismo seja também imediatamente afastado.
Portanto: Bozovírus, fique em casa. E não saia nunca mais!!!
(*) pela Fundação Claudio Campos
Göring,Goebbels e Hitler,se vivo fossem,morreriam de inveja do seu pupilo, o Bozovirus17.