Moradores da região relatam as dificuldades no combate ao vírus e ao discurso anti-científico de Bolsonaro
A Brasilândia é um dos bairros mais comentados nos últimos dias, pois tem sido um dos territórios mais atingidos pelo novo coronavírus. A Brasilândia possui cerca de 265 mil habitantes e, até o último dia 11 de maio, foram registradas 123 mortes em virtude do vírus, entre suspeitas e confirmadas. A região da Freguesia do Ó, distrito que pertence a mesma subprefeitura, contabilizou 80 mortes.
Também pertence ao bairro umas das experiências de organização social mais combativas de toda a cidade, que reuniu em uma ampla rede entidades do movimento social, dos equipamentos de saúde e assistência social, da Igreja católica, entre outras, com o objetivo de unir esforços e organizar ações integradas visando o combate a pandemia e seu alto poder de destruição da vida e do tecido social, a Rede Brasilândia Solidária.
A Rede Brasilândia Solidária é composta por um conjunto de mais de 30 organizações, que atuam no território, e agrega mais de 200 pessoas das mais variadas origens, lideranças de organizações sociais, voluntários, professores universitários, estagiários de diversas áreas, profissionais da Saúde, Educação, Assistência, Gestores e Administradores Públicos, Diretores de Escolas, etc.
“A rede Brasilândia Solidária surgiu há cerca de um mês, quando algumas lideranças que temiam o avanço da pandemia no território, criaram um grupo no WhatsApp. Porém quando na semana em que foram anunciadas 54 mortes no bairro eu fiquei desesperado e fui chamar a atenção das pessoas participavam desse grupo e dizer que precisávamos fazer alguma coisa a respeito”, disse o advogado Jabes Campos, morador da Brasilândia e um dos articuladores da Rede.
A falta de ações nas periferias das cidades como um todo fez com que os moradores do bairro, percebendo a gravidade da crise, fossem para a linha de frente afim de evitar a explosão do número de mortes na região.
“As primeiras iniciativas surgiram com a intenção de levar informação de forma mais clara para a população, porque a gente tinha de um lado o a prefeitura e o governo do estado trazendo uma informação sobre a necessidade do isolamento social [para combater a pandemia] e o governo federal afirmando que não era necessário e que as pessoas deveriam manter suas rotinas, sem tomar nenhuma outra medida para ajudar a população”, disse o morador do bairro, sociólogo e educador popular, Fábio Ivo Aureliano.
“Foi quando eu fui atrás de um carro de som, o Ivo atrás de outro carro, nós conseguimos um trio elétrico e os gerentes das UBS compraram essa ideia de sair pelo bairro trabalhando”, lembrou Jabes.
Eles contam que as dificuldades para aderir à quarentena ficaram mais evidentes após o pronunciamento do presidente da República em rede nacional, no dia 24 de abril, em que Bolsonaro chamou a pandemia da Covid-19 de “gripezinha” e pediu a volta das atividades normais enquanto os governadores e todo o resto do mundo recomendavam a quarentena como forma de combater o coronavírus.
“A declaração do presidente claramente exerce uma influência grande na população. É um presidente recém eleito e o público tende a seguir as orientações que ele dá. No momento em que ele [Bolsonaro] vem a público e fala que ‘é uma gripezinha’, que as pessoas deveriam ir para a rua, que não deveriam ficar em casa. Não só fala, mas ele sai na rua nos finais de semana fazendo o que ele diz, passa uma mensagem muito clara para pessoas”, disse Fábio.
“Então diante de dois posicionamentos, um falando para você sair e outro para ficar em casa, aliado à necessidade das pessoas trabalharem para sobreviver, trabalhar para manter as suas famílias… Elas continuavam tendo uma rotina muito próxima do que tinham antes da pandemia porque, na verdade, elas não sabiam em qual versão que deveriam acreditar”, continuou Fábio.
A tentativa do governo federal de fazer com que as pessoas continuem suas atividades como eram antes da pandemia, contrariando todas as experiências do mundo e mesmo as do próprio Brasil, negando o que diz a ciência, tem jogado uma parcela mais vulnerável da população em direção a uma catástrofe social.
Fábio Ivo diz ainda que o que Bolsonaro está fazendo é abusar “da boa-fé das pessoas que têm baixa instrução e acesso à informação. As pessoas nem sempre tem acesso a outra informação mais qualificada, é a autoridade máxima do país passando uma mensagem”.
“É uma ação criminosa do governo federal, uma ação deliberada do líder do país que sai debochando da morte de brasileiros. O governo federal poderia sim, ter ações mais contundentes utilizando todas as formas e canais de comunicação oficiais, todas as ferramentas que têm à disposição para combater a pandemia para sensibilizar as comunidades. Principalmente com ações para aquelas comunidades que dependem de uma melhora do saneamento básico, que necessitam de mais atenção da saúde pública para consiguir se proteger”, denunciou Jabes.
As experiências dicotômicas da China e dos Estados Unidos reforçam ainda mais a necessidade de garantir a quarentena como forma de evitar o aumento descontrolado no contágio e propagação do coronavírus. Mas é preciso que o Estado garanta as condições de sobrevivência da população para que esta possa aderir ao distanciamento sem que corra o risco de faltar comida em seus lares.
Ação em rede
A rede Brasilândia Solidária, tem realizado diversas ações que vão desde a distribuição de máscaras aos moradores do bairro, coleta e distribuição de alimentos em áreas expostas a uma maior vulnerabilidade social, em articulação com os trabalhadores da saúde e da assistência social que atuam na região.
“Temos cerca de 40 costureiras que, de forma voluntária, estão trabalhando todos os dias produzindo máscaras para distribuir para a população do bairro. Conseguimos articulara confecção de 100 faixas, que deve se concretizar nesta semana, para distribuir pelo bairro como forma de levar a informação para as pessoas da região”, afirmou Jabes Campos.
Além disso, há mais de 10 dias os carros de som estão circulando pelas ruas do bairro para informar sobre os perigos do coronavírus. “Temos recebido mensagens de amigos e conhecidos agradecendo esse trabalho, pois as pessoas, em sua maioria, não estão saindo nas ruas para fazer festas ou por não ter coisas para fazer. As pessoas estão saindo para trabalhar, garantir seu sustento. Nós temos um número muito grande de trabalhadores informais na região e que mão conseguiram o auxílio emergencial”, disse Jabes.
Alguns dias da semana, circula também pelo bairro um “trio elétrico” com os trabalhadores da saúde informando sobre os perigos da pandemia e informando sobre os cuidados básico como lavar as mãos com frequência, não sair de casa e, se preciso sair, usar máscaras.
“Estamos fazendo chegar à população mais periférica, que tem mais dificuldade de acesso à informação, uma informação muito objetiva dos principais cuidados que deve tomar. Primeiro ficar em casa, segundo lavar as mãos com regularidade, terceiro quando sair de casa usar máscara”
“A população da Brasilândia se conseguir praticar esses três atos dentro do possível, o nível de contaminação crescerá numa velocidade muito menor e numa quantidade muito menor. Sabemos que ainda é pouco, mas dez dias de comunicação efetiva, de forma totalmente voluntária, com parceiros voluntários o número de pessoas usando máscara na nossa região é muito maior do que era 10 dias atrás.”, conta Jabes.
Esse é um trabalho da rede que visa combater as informações desencontradas entre o governo federal e as demais esferas do executivo, além de combater as notícias falsas (fake news) que circulam pelas redes sociais e grupos de aplicativos de mensagens.
“Sempre a partir de uma fala ou mesmo desses atos em Brasília, que Bolsonaro participa, surgem em seguida um conjunto de vídeos, de mensagens, de fake news reforçando aquilo que ele falou, reforçando aquilo que ele fez. Então se vê que tem uma ação articulada, como se ele desse um ‘start’ de uma ação. A partir dessa ação aparecem um conjunto de mensagens que são disparadas para reforçar o que ele falou”, disse Fábio.
“Nós não temos dúvida que uma parte dessa adesão ao uso de máscara tem a ver com essa campanha intensa feita pela Rede Brasilândia Solidária em parceria com o serviço de saúde. Nós já distribuímos mais de 3 mil máscaras junto às Unidades Básicas de Saúde”
Quarentena nas favelas brasileiras
A cidade de São Paulo é marcada por uma profunda desigualdade social que precisa ser considerada pelo poder público, estadual e municipal que é quem tem feito alguma ação, para o combate a pandemia. Na Brasilândia, assim como em diversas outras comunidades da cidade, é possível ver filas intermináveis nas agências da Caixa Econômica, na rede de Lotéricas e Banco do Brasil com pessoas em busca do auxílio emergencial de R$ 600.
“Se o governo tivesse pago [o auxílio emergencial] sem burocracias para todos que para todos que necessitam, que foram aprovados, nós não teríamos tantas pessoas nas filas sendo contaminadas. Isso é um ato de negligência com a população mais pobre. Empurra essas pessoas para as filas onde elas ficam cada vez mais expostas”, completou Jabes.
“Não é tão difícil de entender, se o governo dá as condições para que as pessoas fiquem em casa, com a garantia de alimento e leva a informações do perigo que ela corre ao sair de casa, que ela pode morrer ou contaminar sua família e alguém de sua família morrer, é evidente que as pessoas vão ficar em casa. Agora para isso precisa dar as condições para ela ficar em casa”, completou.
O governo federal tem pedido aos trabalhadores informais que se cadastrem utilizando o aplicativo ou site da Caixa, contudo “nós temos uma parte da periferia que não tem acesso à internet, que não tem casa, que não tem documento, mas essas pessoas são seres humanos e precisam comer”, argumenta Fábio.
“Nós temos uma parte da periferia que não tem acesso à internet, que não tem casa, que não tem documento, mas essas pessoas são seres humanos e precisam comer”
“Se vamos ter um plano para garantir comida na mesa das pessoas, nós temos de entender que existem muitas pessoas em cidades como São Paulo que não possuem documento, nesse momento não cabe discutir porque elas não têm, o fato é que não tem documento. Muito menos impor como critério para conseguir o auxílio que a pessoa tem um celular com acesso à internet, como se o celular fosse uma coisa obrigatória a todo ser humano”, completou Jabes.
Jabes conta que a rede está trabalhando para resolver a falta de água em alguns lugares do território e que sem acesso à água, não tem como a gente pedir o principal cuidado que é o de lavar as mãos. “Como exigir dessas que não possui água para lavar as mãos que ela tenha um celular e internet?”, questiona.
A Brasilândia, segundo dados do Mapa de Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo, possui cerca de 30% dos domicílios em favelas, a segunda maior proporção na capital. Já segundo a pesquisa “Origem Destino”, realizada em 2017 pelo Metrô de São Paulo, cerca de 50% não trabalha com carteira assinada. Cremos que esse número é ainda subestimado, dado o avanço da crise agravada pela pandemia da Covid-19.
“Alguns acham que essas pessoas têm que se informar por conta própria, ter uma consciência natural e ter condição de se alimentar, de ter acumulado recursos durante sua vida, de ter dinheiro no banco, patrimônio para conseguir sobreviver, mas isso não é o mundo real. Isso é o mundo real da classe média, mas na periferia que a maioria das pessoas vivendo como autônomos, como pedreiro, como ajudante de pedreiro, como eletricista ou no comércio são pessoas que tem dinheiro para ir ao açougue, lá na padaria, no mercado fazer a compra para os próximos três dias e ganhar três dias de novo”, argumenta Ivo.
Aumento da testagem e garantia de isolamento a infectados
Outro dado importante e que influencia na possibilidade e qualidade da quarentena é a condição das moradias. Na Brasilândia não é difícil encontrar casa e barracos de 1 ou 2 cômodos em que moram 5, 6 ou mais pessoas. Segundo dados da Prefeitura da Capital, os bairros da periferia possuem maiores concentrações de pessoas por quilometro quadrado em toda a cidade. Na Brasilândia são 12.615 pessoas por quilometro quadrado.
“Existem porções que temos mais de 5 mil famílias, que são pessoas que vivem de forma muito próxima, com grupos familiares muito grandes e com o convívio muito intenso que pode chegar a vinte pessoas no mesmo espaço, dividindo esse espaço para dormir, para comer”, lembra Fábio.
Essas pessoas possuem maiores dificuldades de manter um distanciamento adequado, devido ao número elevado de moradores. Assim, a rede Brasilândia Solidária vê como uma das principais demandas que o poder público municipal e estadual construa estruturas para que as pessoas testadas positivo possam se alojar durante o tempo de incubação do vírus, em observação.
“Nós entendemos que estes lugares devam ser as escolas municipais e estaduais que, hoje sem atividade, podem alojar estas pessoas que não estão apresentando sintomas graves ou mesmo as assintomáticas, para que estas não continuem transmitindo o vírus para a comunidade em que moram. Então é fundamental, para que seja possível garantir o isolamento dessas pessoas, que o poder público forneça o espaço para alojamento. Mesmo das pessoas que estão contaminadas e não desenvolveram sintomas, pois essas vão ficar durante 15 dias infectando outras pessoas na sua comunidade”, defende Jabes.
Para garantir que essas pessoas sejam identificadas e direcionadas para o que seriam essas “unidades de acolhimento”, defendidas pela Rede, será necessário a garantia de testes para que as pessoas contaminadas que não apresentam sintomas também sejam retiradas da proximidade de seus familiares para não os contaminar.
“No momento o governo precisa garantir que tenha testes para toda a população da Brasilândia, para que se possa isolar as pessoas que estão contaminadas, para não contaminar grandes porções que temos na região”, diz Ivo.
“É preciso que as medidas para garantir o sustento das famílias e a condição do distanciamento social aconteçam realmente. Falar para uma pessoa ficar em casa é fácil. Agora, ao olhar para uma pessoa com 17, 18 anos para mais que vive num barraquinho de 15 metros, 20 metros quadrados com quatro ou cinco pessoas, com cobertura de telha, chão de terra e com pouca comida para ficar três semanas sem sair, você vai entender porque muitas pessoas não ficam em casa e vão para as ruas”, completou.
“Temos clareza que precisamos assumir algumas ações, como estamos fazendo, mas também temos clareza que a solução do problema não está nas nossas mãos. Temos que cobrar do poder público que faça alguma coisa, como estamos fazendo com a cobrança para abrir o Hospital da Brasilândia, que o poder público tenha um plano de isolamento para as pessoas em maior vulnerabilidade. E é isso que estamos fazendo!”, completam Jabes e Fábio.
RODRIGO LUCAS
Artigo excelente ! Parabéns aos organizadores! Como poderíamos ajudar também?