“A situação continua sendo de uma catástrofe humanitária”, denuncia Ricardo Pires. “É uma guerra contra as crianças”
O brasileiro Ricardo Pires, que trabalha para a Unicef, contou que a situação na Faixa de Gaza é de “um nível de destruição” maior do que em qualquer outro país que já esteve, com crianças desabrigadas e passando fome. O relato foi feito à coluna de Jamil Chade, do UOL.
“O que havia ali era um nível de destruição que eu nunca tinha visto. Já fui para Síria, República Centro Africana, Sudão do Sul, Somália. Já vi muita coisa triste. Mas o que eu vi em Gaza é uma cicatriz que não acho que vai fechar tão cedo”,
Ricardo comentou que sua maior preocupação é com as crianças, que tiveram sua infância “completamente removida” e terão que viver com traumas.
“Não tem mais escolas. As salas de aula viraram abrigos e esses abrigos foram atacados e elas morreram. Essa parte da infância foi completamente removida”, disse.
A Unicef, órgão da ONU para a infância, calcula que 20 mil crianças foram mortas por Israel, enquanto 44 mil sofreram ferimentos graves. 25% delas terão marcas físicas ou sequelas para o resto da vida.
Para além das mortes, Israel usou a destruição de infraestrutura básica na Faixa de Gaza, como a de hospitais, como mecanismo do genocídio.
“O hospital estava lotado, tinha que empurrar para ir de uma sala a outra. Quando os palestinos nos viam, com o colete da Unicef, vinham desesperados pedindo para dar leite para crianças ou qualquer produto para recuperar seus filhos da desnutrição”, relatou.
Segundo a Unicef, todas as cerca de 320 mil crianças com menos de 5 anos de Gaza estão correndo risco de desnutrição aguda. “É uma guerra contra as crianças”, denunciou.
Ricardo Pires ainda falou que pais faziam filas tentando levar seus filhos para outro país. “Um pai me segurou pelo ombro e pedia que eu fizesse algo. Ele me dizia que já tinha perdido uma filha e que corria o risco agora de perder a segunda”. Das crianças que estavam na fila para deixar Gaza, 170 foram mortas por Israel.
“A infraestrutura era muito pobre. Fiquei muito admirado com a coragem e dedicação dos trabalhadores de saúde, que tentavam fazer de tudo para atender a demanda”, continuou.
Um cessar-fogo foi iniciado em 10 de outubro. O brasileiro contou que, mesmo assim, “a situação continua sendo de uma catástrofe humanitária”.
“O cessar-fogo traz um pouco de esperança. Paramos de receber informes de que crianças estão sendo atacadas. O silêncio das armas é um passo importante para melhorar a vida delas. Mas são 500 mil pessoas enfrentando uma situação de fome e isso não muda em poucos dias”, disse.
Para ele, “qualquer plano de cessar-fogo tem de priorizar a recuperação infantil”.
Israel continua controlando a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza. A Unicef tem 1,3 mil caminhões prontos para entrar em Gaza com mantimentos, mas menos de 100 foram autorizados por Israel para entrar.
“Os suprimentos para tratá-las e tirar o ciclo devastador ainda não estão entrando em quantidade suficiente. Longe disso”, descreveu.
Ricardo narrou ter visto uma menina de cerca de 10 anos de idade queimada e ferida por conta de estilhaços. “Quando olhei nos olhos dela, ela estava absolutamente traumatizada. A respiração forte. Parecia uma pessoa que não conseguia sair de uma crise de pânico”. Ele foi até perto e segurou a mão da criança.
“Sem conseguir esse acesso humanitário e garantir os direitos dessas crianças, vai ser muito difícil prever um futuro para essas pessoas que não seja uma geração perdida”, acrescentou. “Não será reconstruindo prédio que se resolve ou um cessar-fogo. O presente delas é de muito sofrimento”.
“A questão de higiene é terrível, com lixo em todo lugar. A pólio pode voltar a qualquer momento”, disse o trabalhador da Unicef.
Em seu relato, contou que pedia “desculpas” às famílias palestinas que estavam desesperada por conta dos crimes cometidos por Israel. “O sentimento é de que estamos falhando. Só conseguia pedir desculpas, dizer que íamos continuar tentando. Mas que tínhamos falhado em não estar conseguindo impedir esse apocalipse”.