
Após aplicar um regime ditatorial, que suspendeu inúmeros direitos civis para facilitar a detenção arbitrária e massiva, prendeu mais de 80 mil pessoas
Aprovada em março de 2022, medida que duraria um mês já foi renovada dezenas de vezes, transformando cárceres em masmorras com mortes e torturas. À frente do governo desde 2019, Bukele rasgou a Constituição, estendeu o mandato de cinco para seis anos e eliminou o segundo turno.
O presidente Nayib Bukele triplicou a população carcerária desde março de 2022 quando aplicou um regime de exceção em El Salvador, suspendeu inúmeros direitos civis e coloca sob risco de prisão arbitrária os 6,3 milhões de habitantes. Agora, submetido a um clima de terror e com cerca de 120 mil pessoas detrás das grades, o país centro-americano tem o maior percentual de detentos do mundo, o equivalente a um preso para cada 53 moradores.
À frente do governo de El Salvador desde 2019, Bukele rasgou a Constituição na quinta-feira (31), decretou a reeleição indefinida, estendeu o mandato de cinco para seis anos e eliminou o segundo turno para fechar espaço à oposição. Aprovou atropelos – por ele chamados de “reformas” – junto com uma onda de prisões de oposicionistas e defensores dos direitos humanos, obrigando a que dezenas de jornalistas e ativistas dos movimentos sociais pedissem exílio ou abandonassem imediatamente o país.
Conforme parentes, ex-detentos e organizações de direitos humanos, são muitos milhares de inocentes presos sem recurso legal ou impedidos de se comunicar com suas famílias, como o comprova a detenção dos advogados e ativistas Ruth López e Enrique Anaya.
“Na véspera dos feriados, sem debate, sem informar o público, em uma única votação legislativa, eles mudaram o sistema político para permitir que o presidente permanecesse no poder indefinidamente e continuasse o caminho trilhado pelos autocratas”, condenou Noah Bullock, da organização de direitos humanos Cristosal, cujos membros tiveram que se exilar recentemente.
“Hoje, a democracia está morta em El Salvador”, protestou a deputada oposicionista Marcela Villatoro, erguendo uma placa com estes dizeres. Ela ressaltou que a aprovação do pacote golpista por um parlamento completamente viciado se deu no exato momento em que o país entra em férias de uma semana. “Os governistas tiraram as máscaras … Eles são desavergonhados”, assinalou, frisando que o atropelo foi aprovado “sem consulta, de forma grosseira e cínica”.
Claudia Ortiz, também deputada oposicionista, observou que são alterações sob encomenda “para perpetuar um pequeno grupo no poder e continuar acumulando recursos e poder, deixando as pessoas cada vez mais pobres”. Infelizmente, recordou, “essa história já foi contada muitas vezes em muitos países ao redor do mundo”.
PRISÃO PARA DETENTOS DE TRUMP
Em acordo com o presidente americano, Donald Trump, Bukele aceitou receber em suas prisões imigrantes expulsos dos EUA.
Os imigrantes presos desembarcados dos Estados Unidos estariam acusados de “ações terroristas”, no país do norte, em uma ilegalidade flagrante à lei internacional. Além de uma abjeta submissão do país a Washington, a medida configura uma ameaça de prisão sem defesa nem julgamento e por tempo indeterminado, para todos os imigrantes que sofrem a mais violenta das perseguições já vistas nos EUA.
TERRORISMO DE ESTADO ANIMA O BOLSONARISMO
O terrorismo de Estado praticado por Bukele faz estardalhaço midiático com o encarceramento sem provas de muitos inocentes. Assim foi erguido o Centro de Confinamento de Terroristas, conhecido como Cecot, em Tecoluca, San Vicente, com capacidade para 40.000 detentos.
Se somando à campanha desinformativa, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados viajou a El Salvador no final de 2023, liderada por Eduardo Bolsonaro, para aprender sobre o “modelo Bukele” e voltou deslumbrada com “a maior prisão das Américas”. Logo depois, o governo salvadorenho propôs de forma vexamiosa a Donald Trump transformar o país de Farabundo Martí numa gigantesca cadeia.
Enquanto isso, centenas de mortes foram documentadas dentro das prisões salvadorenhas, onde as famílias também relataram tortura e mutilação. Os pais de José Alfredo Vega denunciaram ao The New York Times que só conseguiram identificar o corpo do filho por uma cicatriz de infância. O corpo estava tão inchado que ficou irreconhecível.
“Ele saiu daqui bem”, disse seu pai, Miguel Ángel Vega, relembrando a noite, quase três anos atrás, quando a polícia invadiu a casa da família e levou seu filho. “Ele estava saudável”. Agora, aos 29 anos, José Alfredo jazia morto em um necrotério.
Numa reportagem pormenorizada sobre a situação, o jornal francês Le Grand Continent apresentou o depoimento anônimo de um padeiro que foi detido repentina e arbitrariamente pela manhã. “Ele tinha problemas de saúde, foi proibido de tomar seus medicamentos, foi espancado e, em dez meses, teve as duas pernas amputadas. Tudo isso aconteceu em Mariona”, relatou. Também chamada de La Esperanza, Mariona foi a maior penitenciária do país até 2023, com 33 mil detentos.
Ingrid Escobar, da ONG salvadorenha Assistência Jurídica Humanitária, assinalou que são inúmeros os depoimentos de presos libertados apontando na mesma direção: há atos comprovados de tortura.
PRESOS COMO MÃO DE OBRA ESCRAVA PARA FAMÍLIA DE BUKELE
Além da falta de transparência e a inexistência de um marco legal para o conjunto de detenções, foram comprovados abusos e casos de corrupção no Cecot, nos quais presos são forçados a trabalhar para empresas privadas ou até mesmo na construção de uma casa para parentes de Bukele. Sem receberem um centavo em troca, nem redução da pena.
Os jornalistas que tiveram acesso a uma parte do local ficaram impressionados com a falta de luz natural do Cecot, com uma luz artificial acesa 24 horas por dia. “Nos mostraram os dois baldes de água aos quais têm acesso: um para se lavar e outro para beber. Também vimos o único banheiro disponível para 80 presos por cela”, relatou a reportagem francesa, atestando a desumanidade reinante.
A questão é o que acontecerá agora, questiona o repórter Lucas Menget, uma vez que “as prisões arbitrárias de inocentes começam a causar preocupação, mas apenas em voz baixa… Ninguém ousa dizer isso ainda”.