Conversa sobre Mulheres no Cinema
Live realizada no dia 13 de outubro de 2020, às 19h, no canal do Cine-Teatro Denoy de Oliveira no Youtube.
Convidada:
Débora Ivanov, produtora, ex-diretora da Ancine e do Sindicato da Indústria do Audiovisual do Estado de São Paulo, conselheira da SPCine.
Mediadora:
Luísa Lopes, coordenadora da Mostra Permanente de Cinema Italiano, Cine-Teatro Denoy de Oliveira/CPC-UMES
Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=_Qgpt5qc8Tg
LUÍSA LOPES: Você tem uma atuação, tanto na época da Ancine, mas também fora da Ancine, nessa questão da mulher no audiovisual. Queria começar perguntando sobre isso. Fala um pouco sobre esse trabalho.
DÉBORA IVANOV: Bom, antes de começar, queria dizer que eu tenho um carinho imenso pela UMES e lembrar que no começo da minha trajetória profissional eu fiz um documentário junto com a UMES. Se chama “Geraldo Filme”, que conta a história da cultura negra da cidade de São Paulo através do samba, e como que essa cultura negra que era vandalizada, criminalizada, qualquer grupo de negros que tocasse um samba na rua era preso, até se tornar símbolo da cultura nacional.
Esse filme foi muito importante na minha carreira porque eu ganhei o prêmio do festival É Tudo Verdade, o mais importante de documentários aqui da América Latina, com esse filme. Esse filme também foi o primeiro filme assinado pela Gullane, que hoje é uma produtora gigante, uma das maiores do país. Então eu queria dizer que a UMES fez parte da minha história, faz parte da história da Gullane e por isso eu estou muito feliz de estar aqui com vocês.
LUÍSA LOPES: Chegamos a fazer uma exposição de Geraldo Filme há um tempo atrás lá na UMES. Volta e meia nós passamos esse filme. Ele é muito importante pra gente também.
DÉBORA IVANOV: Muito legal, muito legal. Eu lembro que quando eu ganhei esse prêmio, eu fiquei muito emocionada, e era tão importante esse prêmio, que eu nem conseguia sair da sala. Era o começo da minha carreira, tinha feito curta-metragens e tinha feito também vídeos para movimentos sociais, movimento de mulheres, de estudantes, movimento de trabalhadores.
Mas esse filme foi o primeiro média metragem em película, foi 16 mm. Eu e o Carlos fizemos juntos e foi por causa desse filme que eu conheci os irmãos Gullane, que iam ser no futuro os meus sócios. Ele agrega muitas histórias e foi muito importante no começo da minha carreira.
Bom, falando um pouquinho sobre sua pergunta, há muitos anos nós formamos um grupo de mulheres produtoras, que se reunia uma vez por mês para trocar informação, para formar uma rede de colaboração.
Passando alguns anos, a SPCINE, que era recém-criada aqui na cidade de São Paulo, convocou uma reunião de mulheres do setor para falar sobre a situação delas na indústria audiovisual. E que tinham ali, jovens e veteranas.
Tinham vários setores também, publicidade, televisão, cinema. Eu lembro que aquele dia foi uma catarse, sabe?
Todas elas começaram a contar histórias das dificuldades que elas sentiam de se inserir e serem valorizadas no mercado. Naquele dia, isso foi em 2015, tiramos alguns propósitos.
O primeiro deles, buscar informações, pesquisa. Porque falávamos que a gente sentia dificuldade e não se sentia valorizada, que era difícil alavancar nossas carreiras, mas que a gente não tinha número. Então se a gente ficasse falando isso na imprensa, ficasse falando isso por aí, iam falar que era “mimimi”, né?
E o segundo propósito que a gente criou era levar essa discussão para o maior número de eventos, festivais e etc. E também formar um grupo de mulheres nas redes sociais, para que a gente pudesse se conhecer. E nós fizemos essas três coisas. Criamos um grupo que hoje tem mais de 25 mil mulheres nas redes sociais, nós pautamos o tema em muitos eventos e, logo em seguida, teve uma coincidência, que eu fui para a Ancine. Fui fazer parte da diretoria da Ancine e pude, ali, levantar números. Números muito reveladores. Uma base de dados de mais de 2.500 obras registradas na Ancine, sendo que em torno de 20% de mulheres na direção, em torno de 20% de mulheres no roteiro.
Então, a gente passou a ter esse número, que ajudou a gente a visualizar aquilo que a gente enfrenta no mercado.
A gente tem um número bom de mulheres na produção, que é de 40%. Só que quem constrói as narrativas que vão influenciar e construir o imaginário da sociedade, a maioria, são homens.
Esse grupo de mulheres foi crescendo e através desse grupo de pesquisa a gente mudou o patamar da nossa pauta, da nossa discussão. Ficou tudo mais claro, de como é difícil.
Isso não é só no Brasil, né, me conforta muito que nossas irmãs no mundo todo lutam para conquistar espaço, que não é só no audiovisual, né, em toda a economia, que é restritiva para a liderança feminina.
LUÍSA LOPES: Eu vi que vocês, na SPCine, fizeram um seminário internacional no ano passado, encontro de mulheres. Eu pude ver também a organização, assim as britânicas, as alemãs, falando. Achei muito interessante isso.
O que você considera que a gente possa fazer para melhorar essa situação?
DÉBORA IVANOV: Nós podemos fazer muitas coisas, nós fizemos os Seminários Internacionais e a gente pode observar o que outros estão fazendo para diminuir a desigualdade.
Eu vi em vários países, que se abriram para discutir essa pauta, todos eles começaram com levantamento de números e pesquisa.
A gente vê que temos muitas mulheres formadas. Aqui no Brasil, tem mais mulher com pós-graduação, mestrado, que os homens. E, no entanto, elas não estão no topo, na liderança.
O que eu vi que sempre é o primeiro passo, é a igualdade de gênero nas comissões, as comissões dos financiamentos públicos, quem seleciona os projetos para os financiamentos e os festivais.
Você lembra que em 2018 o Festival de Cannes teve um protesto midiático nas escadarias do tapete vermelho, com 85 mulheres, celebridades, fazendo um protesto junto aos festivais, pedindo que tivesse meio a meio de mulheres e homens nas comissões de seleção dos festivais.
E isso já mudou, mais de 100 festivais aderiram a esse compromisso no mundo, e todas as políticas públicas começaram assim, com essa qualidade.
A SPCine teve a primeira experiência no Brasil, ela fez um edital de curtas com paridade de gênero nas comissões. O resultado que deu: 43% de mulheres selecionadas.
Se você tem apenas homens na seleção, é natural que eles se identifiquem com obras mais masculinas. Agora, se você tem uma diversidade na seleção, essa porcentagem vai se refletir também na seleção dessas obras. Então, começa com paridade de gênero, quem define os prêmios, os financiamentos.
Cada país tem uma política. A França, por exemplo, te dá possibilidade de acessar mais recursos, se você comprovar que tem uma equipe mais diversa. A diversidade não é só entre homens e mulheres, diversidade de gênero e raça.
No Reino Unido, você também conta pontos, se você demonstrar mais diversidade na sua produção, no Canadá também. Então, dá pra fazer muitas coisas, mas, infelizmente, no período que a gente está passando aqui no Brasil, está muito difícil.
A pauta da diversidade caiu completamente.
LUÍSA LOPES: Ao invés da gente ir para a frente, a gente está indo para trás, até porque a própria Ancine está parada…
DEBORA IVANOV: Sim, como eu vou falar de diversidade, se o setor está parado, né?
LUÍSA LOPES: Exatamente. Fugindo um pouco do ponto mulheres no cinema, mas é porque eu também vi na mesma matéria, estava lá escrito que, em 2016, era uma média de 15% de participação de mulheres na direção de um filme. Quando se refere a homens negros, era 2% e mulheres negras eram 0%. Isso, no Brasil, é inimaginável, quem é que está falando sobre os negros hoje em dia? Então, não são os negros.
DÉBORA IVANOV: Quando a gente trouxe aqui o Canadá, o Reino Unido para os seminários internacionais, eles falando de diversidades, quando a gente falou que aqui no Brasil 54% da população é negra, eles ficaram em choque.
Eles não imaginavam que no Brasil tivesse essa proporção na sociedade. Se você assiste o audiovisual brasileiro, você pensa que está em um país branco, um país europeu.
Nos EUA, só 15% da população é negra, aqui é 54%. Se você ver as produções audiovisuais deles, tem muitos negros nas telas.
Quando a gente fez essa pesquisa, em 2016, foi um escândalo, um absurdo total. As mulheres negras só apareceram na produção, quando as equipes eram mistas, ali com 2%.
É triste de ver isso. Muito triste.
LUÍSA LOPES: Você falou dos americanos, é interessante que esses americanos mais famosos, negros, eles constroem um seriado, um filme que é para eles mesmos. Até um tempo atrás era muito mais assim: o seriado sobre a família negra. Aqui no Brasil, além de não ter uma narrativa sobre os negros, também não tem a pessoa na direção, né?
DÉBORA IVANOV: O que a gente vê, na verdade, é muitos filmes sobre mulheres dirigidos pelos homens, o que é ok, também. Nós mulheres podemos dirigir filmes sobre homens, também, não tem problema nenhum. A questão é que a proporção é brutal. E por que os homens e as mulheres negras não podem também levar a sua narrativa? Por que a narrativa terá que ser sempre do ponto de vista branco?
Agora, isso só começou a mudar, os cineastas negros afirmam com clareza, isso começou a mudar com a política de cotas nas universidades. A comunidade negra, que sempre desejou estar dirigindo filmes e contando histórias, trazendo a sua visão de mundo para as telas da TV e do cinema.
Acontece que eles não tinham como chegar, a partir das políticas de cotas nas universidades, a gente teve toda uma geração que pôde se formar nas escolas de cinema e televisão. Então, a gente tem algumas mulheres negras já em 2017, 2018, 2019, graças à essa política de inserção e combate à desigualdade.
LUÍSA LOPES: Essa questão da narrativa, falando como espectadora do cinema italiano, é interessante o que você falou, porque tem um filme que eu gosto muito “Esposamante”, que fala sobre a questão do cara que trai a mulher, mas é um cara que luta pela libertação feminina, porém não aguenta quando a mulher trai ele.
São filmes que a gente passou esse ano, então, por isso que estou falando. “Libera, amore mio”, do Mauro Bolognini, é um filme com a Claudia Cardinale, em que ela entra para a resistência antifascista e tem dois filhos, é um filme muito incrível.
Até o filme que a gente passou ontem, que é “O Inocente”, do Luchino Visconti, são filmes que eu considero feministas. Ano que vem a gente vai passar “Angelina, A Deputada”, que é outro filme excelente, do Luigi Zampa. São todos filmes que eu imagino como seriam, se fossem feitos por uma mulher, porque são filmes excelentes.
Quando se fala de cineastas, das mulheres italianas você ouve falar menos ainda, muito mais difícil você conseguir um filme.
Existe um filme que chama “Mi piace lavorare”, da Francesca Comencini. Uma mulher de 40 anos de idade com uma filha pré-adolescente, e ela é sozinha e precisa trabalhar. O que a diretora queria com esse filme? Mostrar uma prática recorrente no mundo do trabalho, que chama mobbing, que é você isolar o trabalhador para forçar ele a se demitir.
E ela fez isso, não com uma riqueza de detalhes, mas uma coisa assim que gera um sentimento de angústia e indignação na pessoa.
Eu acho que tem coisas assim que as mulheres, quando querem, conseguem muito melhor do que o homem. Eu acho assim, os diretores são ótimos, mas eu sempre quis saber como são os filmes na lógica feminina.
DÉBORA IVANOV: E, Luísa, os filmes dirigidos pelos nossos colegas homens são maravilhosos, o que a gente quer, é ter a mesma oportunidade que eles.
Nós somos mais da metade da população, nós também queremos trazer nossas belíssimas histórias, a gente também quer fazer belíssimos filmes e trazer o nosso ponto de vista sobre tudo. Sobre política, sobre relacionamento, comportamento, histórias de amor, drama, terror, a gente quer fazer de tudo.
Porque também tem um estigma das mulheres, reivindicam seu espaço e tal. Então, se um filme é mais romântico, vamos dar para elas? Não, nós queremos fazer qualquer tipo de filme.
LUÍSA LOPES: Débora, no cinema italiano, homens e mulheres, o que você gosta?
DÉBORA IVANOV: Hoje eu estava conversando aqui, com a produção desse encontro, e elas citaram a Lina Wertmüller, que eu acho importante a gente falar sobre ela nesse nosso encontro.
A Lina tem um valor simbólico com a história do cinema mundial, e para nós mulheres, que é o fato dela ter sido a primeira mulher a ser indicada para a premiação do Oscar, pela direção de uma obra, com o “Pasqualino Sete Belezas”.
Claro que ela não levou na década de 70. Ela é indicada ao Oscar com um filme brilhante, ela tem uma trajetória brilhante, ela é uma inspiração para todas nós. Porque, além desse pioneirismo, dela ser indicada ao Oscar, o fato de ter uma mulher fazendo filmes que trazem políticas, que trazem uma visão crítica social, trazem uma visão crítica sobre o machismo, sobre o papel da mulher.
Eu a considero genial, e fazer tudo isso com irreverência, você não sabe se está assistindo um drama ou uma comédia, porque ela faz você chorar e rir ao mesmo tempo.
Engraçado, vi aqui que — eu levantei aqui alguns dados — existe uma fundação europeia que se dedica a mapear a produção feminina na Europa.
Fizeram um levantamento em sete países e eu conheci elas agora, ali no Festival de Berlim, antes da pandemia em fevereiro, em um encontro de mulheres de mais de 50 países. E elas me apresentaram essa pesquisa em sete países, que incluía a Itália.
A gente pensa que nos países europeus a discussão está mais adiantada. E não está. A proporção é a mesma da nossa.
Isso é inacreditável. É em torno de 1% de mulheres na direção e no roteiro. E um dado mais dramático ainda, as mulheres só acessam 16% dos recursos para produzir suas obras. Mesmo que elas cheguem a 20% das obras lançadas, os filmes são mais baratos.
Elas têm menos chance de produzir uma obra de maior impacto.
E voltando pra Lina, eu fico pensando, o que era uma mulher nos anos 70, assistente do Fellini, começar a dirigir os seus próprios filmes, que eram românticos, dramáticos, divertidos, mas, ao mesmo tempo, críticas tão ácidas à nossa sociedade, à luta de classes.
Enfim, a Lina é uma inspiração que perpassa gerações.
“Mimi, o Metalúrgico”, também, né, que ela fala sobre o machismo de uma forma tão debochada.
Eu estava vendo que vocês passaram “Mimi, o Metalúrgico”… É isso?
LUÍSA LOPES: Acho que passamos umas duas vezes, já. De tão bom que é, do tanto que gostamos do filme. Exibimos vários filmes da Lina, alguns até mais desconhecidos.
Passamos o “Pasqualino Settebellezze”, o Mimi, mas também exibimos a “Pequena Órfã”, que ela fez com Giancarlo Giannini e com a Sophia Loren, que eles estão mais velhos. E “Sábado, Domingo e Segunda”, também um filme dela.
Esse ano a gente ainda vai passar “Ciao Professores”, que é um diferente da Lina.
Nós temos uma deficiência em encontrar filmes de mulheres para exibir.
No ano que vem, acho que a gente vai passar mais do que Lina. Eu acho que ela conseguiu ser quem ela é, porque quebrou as regras. Antes dela ser a primeira mulher a ser indicada ao Oscar, ela foi também a primeira mulher a ser indicada para a Palma de Ouro, com “Mimi, o Metalúrgico”. É bom lembrar que no ano passado ela foi a primeira mulher a ganhar um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra. Chegou lá, velhinha, ao lado da Isabella Rossellini, que estava traduzindo ela. Achei emocionante uma coisa dessas.
DÉBORA IVANOV: Vamos fazer no ano que vem uma mostra da Lina Wertmüller?
LUÍSA LOPES: Eu aceito. Eu tinha muito preconceito com ela. Estamos há cinco anos fazendo a Mostra de Cinema Italiano. Já exibimos mais de 200 filmes. E começamos tímidos, todos jovens… Começamos em maio, para terminar em novembro. Hoje nós começamos em fevereiro, são cerca de 40 filmes ao longo do ano. E eu jamais gostei de “Pasqualino Sete Belezas”.
Mas ouvimos bastante o nosso público. Graças a Deus. Quando o filme foi lançado em 1960, eles assistiram no cinema. Para nós, esses filmes são uma novidade, nós não passamos por aquele período.
Então, eu falava que não gostava de “Pasqualino Sete Belezas”. Acho muito louco, não entendo nada. Aí, ele disse assim: “Não tenha preconceito, não. Foram filmes que marcaram época. É uma coisa que tem que ser valorizada”.
Na verdade, acho que eu não tinha entendido nada. O Pasqualino, na verdade, é um cara que traz todos os valores morais, para poder sobreviver. Não é realmente para ele ser uma pessoa que você olha para ele e se sinta bem. Não é para ser agradável o que ele está fazendo.
Ironicamente, eu só fui entender isso agora. Depois que começou o governo Bolsonaro. E agora eu acho esse filme excelente.
Eu acho que ela tem um senso de humor muito interessante. “Mimi, o Metalúrgico” também mostra isso.
A gente ainda não passou o outro famoso dela “Por um destino insólito”, falta passar.
DÉBORA IVANOV: O “Pasqualino Sete Belezas”, exatamente, é mostrar um homem, que se pode dizer que é cheio de defeitos, mas, ao mesmo tempo, ao se submeter àquilo que ele tá sofrendo do nazismo, é você mostrar também, de uma forma dramática e cômica, ao mesmo tempo, a atrocidade do nazismo.
Mostra o que ele iria fazer, lamber botas, para poder se manter vivo. E aí vale tudo.
É muito engraçado e sórdido. É muito cruel e engraçado, ao mesmo tempo.
LUÍSA LOPES: É o filme que é a marca da Lina Wertmüller. Você olha e não tem como não ser.
Engraçado, porque o nosso público mais jovem, essa questão da Lina, ele não conhece. Mas o público mais velho conhece. O público mais jovem, quando vai querer pedir para a gente passar algum filme, é Ettore Scola, é Fellini. Você vê pessoas mais jovens aparecendo.
Mas a Lina, infelizmente o pessoal ainda não conhece.
DÉBORA IVANOV: Sim, não é tão conhecida quanto Fellini, quanto Ettore Scolla… Verdade.
E também tem uma coisa que a gente tem levantado a discussão, é de que, na universidade e nas escolas, toda a bibliografia que é oferecida. Todas as referências que são citadas nos cursos de graduação e pós-graduação são sempre masculinas.
Então, se você vai resumir a história do Cinema Mundial, do Cinema da Itália, você vai falar do Fellini, do Ettore Scola, não tem ali a Lina Wertmüller.
E é assim também no cinema brasileiro e no Mundial. É tudo assim.
No primeiro seminário que a gente fez, fizemos questão de passar a obra da Alice Guy–Blaché.
Pois todo mundo fala que o Lumière foi a pessoa que criou o cinema, a magia do cinema. De fato, ele descobriu e fez acontecer a imagem em movimento.
Mas quem criou as primeiras histórias de ficção, com essa imagem em movimento, com cortes, com dramaturgia e etc. foi Alice Guy-Blaché, que só agora, quase 100 anos depois, foi homenageada em toda a França, nas mostras, festivais etc., pela sua obra.
Ela fez mais de mil curtas-metragens, ela foi uma empresária de muito sucesso. Ela se mudou para os Estados Unidos e fez muito sucesso como produtora. Caramba! E como é que só agora que a gente conhece essa mulher?
Sabe, tem isso também da gente estar sempre no nosso padrão social. Ninguém tem culpa disso. Mas existem vários estudos de neurociência que trazem à tona essa questão de que é mais comum que você dê continuidade ao status quo, à maneira de pensar da sociedade naquele momento.
A neurociência mostra que mais de 85% das nossas decisões cotidianas são inconscientes. Apesar da gente achar que é super-racional, que a gente elabora tudo, na hora de tomar decisão, ali no cotidiano, repetimos o que é tradicional, o que é comum na sociedade, o que está implementado na nossa cultura, na família, na sociedade… E aí a gente vai perpetuando essa história. E essa é uma história de apagamento das lideranças femininas.
Essa história da Alice Guy–Blaché é muito impressionante. A mulher é um colosso. Fez loucuras junto com Lumière. E só agora, a história dela foi revelada.
Então é muito comum, quando se pensa na cinematografia, quando você pensa nos grandes ícones, você não fala de alguns marcos femininos. Como a Alice Guy–Blaché, ou a Lina Wertmüller.
Vamos fazer uma mostra sobre ela?
LUÍSA LOPES: Você já falou duas vezes e eu já estou aceitando, viu.
A gente combina isso. Eu começo a estudar os filmes dela e a gente faz essa mostra.
Agora, fazendo minha campanha, nós temos um projetor de 35 mm lá na UMES, no nosso cine-teatro, e a gente ia estrear ele na nossa mostra. Íamos fazer uma coisa interessante. Fellini, 100 anos… Aí veio a pandemia e a gente não conseguiu até agora estrear nosso projetor. Então, se conseguirmos um filme da Lina em 35 mm para passar, vai ser excelente.
DÉBORA IVANOV: Essa mostra que vocês fazem, é em parceria com o Consulado da Itália? Ou com a Embaixada da Itália?
LUÍSA LOPES: Por enquanto, não. Nossa mostra, que é gratuita inclusive, faz parte da nossa programação. E o legal é que ela foi abraçada pelo público. Então, sempre aparece uma doação. Porque temos o cafezinho, o chazinho… Então, o público sempre traz um biscoitinho, uma coisinha, o público faz parte das nossas loucuras.
DÉBORA IVANOV: Eu acho que a Embaixada da Itália vai amar apoiar vocês. Não é?
LUÍSA LOPES: Há muito tempo atrás, a gente pensou em ir lá falar com eles. Mas acho que, nessa volta, vamos retomar essa conversa.
Até porque vem muita gente que já ouviu falar, não só no consulado, mas também nas escolas italianas. O pessoal gosta de vir. Esses filmes não estão passando em outro lugar. Está passando no nosso cinema e está passando de graça.
DÉBORA IVANOV: Quantos lugares tem o cinema?
LUÍSA LOPES: São 97. Estamos com um espaço bonito. Trocamos as cadeiras um tempo atrás. Então, muitas vezes a gente lota o teatro. E aí tem gente querendo entrar e não podemos deixar entrar.
Nosso espaço é bastante bonito. Você devia vir nos visitar, quando for possível reabrir.
DÉBORA IVANOV: Bacana que vocês conseguiram também vencer as dificuldades dessa pandemia e poder fazer uma programação virtual, que não é simples, leva um tempo para se adaptar, para continuar com a programação.
LUÍSA LOPES: É importante, pois o nosso público fala que estava precisando disso nesse momento. São muitos idosos, como eu disse para você, e eles estão em casa, não estão podendo sair na rua. Então eles agradecem muito a nossa mostra.
Temos também a Mostra de Cinema Russo, que acontece todas as sextas-feiras. Com um filme no YouTube, que fica de sexta até domingo, que também é muito legal.
DÉBORA IVANOV: Que bacana. Um trabalhão de curadoria e conseguir os direitos de poder disponibilizar.
LUÍSA LOPES: Tem alguns filmes, inclusive, que nós legendamos para poder passar, porque tem filme que não existe no Brasil. Não foi lançado aqui. Então, às vezes, também a gente pode fazer isso, a conversa com a pessoa é tempo mais recente, a gente pode fazer essa conversa com a pessoa e trazer a obra para exibir aqui.
DÉBORA IVANOV: Eu soube que você estavam fazendo alguma parceria com uma instituição na Rússia…
LUÍSA LOPES: O Mosfilm, o maior estúdio da Europa, que possui vários títulos e temos lançado aqui no Brasil. Todo ano fazemos a Mostra de Cinema Russo e Soviético, por volta de novembro, dezembro. Mas, pelo visto, esse ano não vamos ter, ou vai ser pela Internet.
DÉBORA IVANOV: Bacana o que vocês estão tocando aí. Também essa homenagem. A sala de vocês, que se chama Denoy de Oliveira…
O Denoy foi muito generoso com as novas gerações.
Eu tinha muita vontade de entrar nesse universo do audiovisual e o Denoy oferecia cursos para a inserção nesse mercado. Eu lembro que no começo da minha carreira, eu queria fazer esse curso, mas eu estava dura para caramba. Aí eu fui lá e conheci o Denoy, que eu não conhecia.
Aí, disse pra ele que eu queria muito fazer esse curso, mas era mui caro para mim, não dá.
Na hora, não precisei nem falar muito. Ele já, generoso como ele era, assim como ele fez para mim, ele fez para muita gente, ele deixou a mensalidade bem pequenininha, para a gente poder fazer o curso.
E esse curso foi muito importante na minha vida. O Toni Venturi, que é um cineasta paulista, muito importante também na nossa cinematografia, nós nos conhecemos lá.
É muito importante conhecer pessoas que já estão no status da sua carreira e se doam para a formação das novas gerações. E o Denoy sempre foi um porto seguro no início da minha carreira. Ele ajudou muita gente.
LUÍSA LOPES: Débora, para encerrarmos, eu gostaria de agradecer muito a sua presença e fique à vontade para falar mais alguma coisa.
DÉBORA IVANOV: Como o nosso foco é em mulheres, acho toda pauta da diversidade. Não só mulheres, mas quando a gente fala de mulheres está falando de diversidade, também, de gênero e de raça. Temos que nos perguntar hoje em dia por que falar deste tema, se estamos com nossas políticas de desenvolvimento da indústria audiovisual ruindo. Por que falar disso, se a indústria está nessa crise?
É sempre bom lembrar que, conta da crise, esse mercado vai ficar muito mais competitivo. Os espaços de liderança, de acesso aos recursos, vão ficar muitos mais duros.
Temos agora a Mostra Internacional de Cinema, onde vamos realizar um seminário internacional, que eu quero te convidar Luísa, vai trazer algumas experiências de fora, inclusive as políticas de diversidade da Netflix.
E por que falar diversidade?
Porque o mundo está falando em diversidade. O mundo clama por diversidade e por igualdade social e igualdade de acesso.
Nós, mulheres de todas as raças, continuaremos firmes na nossa luta para que a gente possa ter na obra audiovisual uma visão de mundo mais equilibrada, uma distribuição dos recursos de uma forma mais equilibrada, sempre valorizando as novas gerações e a diversidade regional. De norte a sul do país, não só São Paulo e Rio de Janeiro, mas o Pará, o Amazonas, a Bahia, o Piauí… Que a gente possa também espelhar nossa diversidade cultural. É uma pauta que não vai morrer nunca. Vamos estar sempre falando sobre ela.
E eu me despeço aqui, parabenizando vocês pela iniciativa do ciclo, pelos debates das mulheres, e espero que vocês destaquem sempre a cinematografia feminina na curadoria de vocês, contribui muito com essa luta para um mundo mais justo.
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