Historicamente, o direito autoral vem sendo alvo de ataques inescrupulosos por aqueles que se negam a respeitar a criação, o artista e a cultura do povo. Nestes tempos turbulentos, em que o país enfrenta a pandemia de coronavírus, Medidas Provisórias, apresentadas pelo governo Bolsonaro, foram utilizadas como ferramenta para dificultar a arrecadação dos direitos autorais e inviabilizar a sua distribuição para a classe artística brasileira.
Numa vergonhosa atuação, o promotor de eventos e deputado federal Felipe Carreras, tentou incluir uma emenda ao texto da Medida Provisória 948/20 para dificultar a cobrança de direitos autorais em locais de frequência coletiva, como eventos públicos e privados, casas de shows, restaurantes, hotéis, cruzeiros etc. Graças à união da classe artística brasileira e com o apoio fundamental da cantora e compositora Anitta, o texto foi retirado da MP.
No texto, o deputado tenta impedir que o autor da obra, estabeleça os próprios critérios para a sua utilização, como define a Constituição Brasileira e a Lei de Direito Autoral (nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998).
A emenda do deputado alterava a lei acima referida, proibindo a cobrança dos direitos por: “pessoa física ou jurídica que não seja o intérprete em eventos públicos ou privados”.
O texto estabelecia ainda que a cobrança dos direitos autorais ficaria limitada a 5% “sobre o valor do cachê do artista que se apresentará nos eventos públicos e privados”. E proibia a“composição do preço da cobrança o critério de percentual sobre bilheteria”.
Com esse texto, caso fosse aprovada, a MP 948/2020 simplesmente inviabilizaria a arrecadação nacional de direitos autorais em locais de frequência coletiva. O que poderia significar o fim do Direito Autoral no Brasil.
Quando o conteúdo da emenda realizada pelo deputado veio à tona, o conjunto da classe artística brasileira se posicionou contra o ataque e foi iniciada uma grande mobilização para barrar o texto apresentado por Carreras.
LIVE
A cantora e compositora Anitta realizou uma “live”, em seu perfil no Instagram, questionando as intenções de Felipe Carreras em se aproveitar de uma MP, e do seu regime de urgência, para alterar as regras da arrecadação dos direitos autorais.
Para Anitta, incluir este ataque aos direitos dos autores numa MP, que aborda o cancelamento de serviços, reservas e eventos dos setores de turismo e cultura, em razão do estado de calamidade pública causada pelo coronavírus, foi “um ato de má fé”.
“A partir do momento em que fere a Constituição, na qual diz que o artista tem direito de decidir o que vai acontecer com sua obra, e como vai ser pago pelas coisas que fez”, rebateu durante a discussão com o deputado.
A live de Anitta teve mais de 3,2 milhões de visualizações:
Na noite da quarta-feira (6), a cantora compartilhou a foto do documento em que Carreras pede ao presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, a retirada da emenda. “Feliz de saber que toda a classe de músicos dormirá tranquila hoje com menos este problema. Agora vamos seguir com o foco no que importa no momento que é o Covid-19 e depois que tudo passar reitero meu convite feito ontem na live”, escreveu na postagem em que celebrou o recuo do deputado.
DESTREZA
O maestro e compositor Marcus Vinicius de Andrade, presidente da AMAR Sombrás (Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes), celebrou a vitória da classe artística brasileira e destacou o papel de Anitta no recuo de Carreras. Segundo Marcus, o deputado “foi desmontado pelo saber e pela destreza mental da jovem artista”.
“Além de talentosa, Anitta é uma cantora preparada e inteligente, razão pela qual deu uma entortada no deputado Carreras no debate da internet, deixando-o inteiramente batido e levando-o a recuar. O deputado contava vencê-la pela autoridade, mas foi desmontado pelo saber e pela destreza mental da jovem artista, que estudou o tema em questão, além de estar, como artista, plenamente convicta da justiça de suas ideias. O resultado foi o que se viu: venceu a razão, o placar foi de dez a zero para nossa menina”, apontou o maestro, em entrevista à Hora do Povo.
Ele ressaltou que Anitta “inclusive desmascarou o deputado, quando este dizia que o ECAD e as associações eram devedoras do CADIN, uma deslavada mentira. Por essa coragem, todo o Brasil a aplaudiu”.
Lamentavelmente, desta luta estava ausente a SECULT, a Secretaria de Cultura do Ministério do Turismo, órgão federal que costumeiramente tem se omitido de estar ao lado dos artistas nacionais em sua luta contra a intolerância dos exploradores da arte e da cultura. Existe mesmo quem diga que, dentro da própria SECULT, há quem trabalhe ao lado e a favor deles.’
AMPLA REAÇÃO
Marcus Vinicius ressalta a amplitude da mobilização dos artistas na defesa dos direitos autorais.
“É importante lembrar que Anitta jamais esteve só em sua campanha: junto a ela havia artistas como Danilo Caymmi, Alceu Valença, Jota Quest, Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Ana de Hollanda, Zezé Motta, Nei Lopes, Maria Gadú, Paulo César Pinheiro, Caetano Veloso e muitos outros, inclusive o grande Aldir Blanc, bem pouco antes de nos deixar…”
Mensagens de repúdio contra possível indicação de Carreras para a relatoria da MP também foram encaminhadas por dezenas de artistas a Rodrigo Maia. A cantora Marisa Monte fez um apelo: “Nesse momento, qualquer mudança em direitos autorais, seria muito mal recebida por todos”.
“O senhor Felipe Carreiras tem interesses pessoais, como organizador de eventos e shows, em prejudicar a classe, isentando vários setores do pagamento dos nossos direitos autorais”, denunciou a cantora Alcione.
Djavan, Erasmo Carlos, Dori Caymmi, Milton Nascimento, Ivan Lins, Nando Reis, Alceu Valença, Marcos Valle, Lenine, Rosemary, Roberto Frejat, Otto, Xande de Pilares, também apelaram a Maia contra a entrega da relatoria da MP a Carreras.
A reação dos artistas também trouxe a público mais detalhes sobre a famigerada intenção expropriatória da MP 948/2020, que foi denunciada com veemência numa carta endereçada ao Presidente do Congresso pelos compositores Marcos Valle, Joyce Moreno e outros criadores musicais:
“Prezado deputado:
Somos compositores e compositoras do Brasil, muitos de nós em atividade há décadas. Chegou ao nosso conhecimento que está para ser votada a MP 948, relatada pelo deputado Felipe Carreras (PSB-PE) e pela deputada Renata Abreu (PODEMOS-SP), que trata de cancelamento de shows, e que, entre outros assuntos, dispõe o seguinte:
“Retira a cobrança de direitos autorais em QUAISQUER LUGARES DE FREQUÊNCIA COLETIVA, como Casas de Shows e bares, além de TVs, rádios, cabines de Cruzeiros e Quartos de Hotéis.”
Os prejuízos para nós, compositores e compositoras, serão irreparáveis, enquanto empresas já milionárias irão enriquecer ainda mais às custas do nosso trabalho – pois é de trabalho que estamos falando. Somos nós os produtores de conteúdo, sem os quais nenhuma dessas mídias existiria, nem nenhum destes locais públicos teria qualquer atrativo.
A classe artística no Brasil já tem passado por inúmeras dificuldades, como todos sabem. Os direitos autorais, com o advento da internet, diminuíram sensivelmente. A música brasileira, principal bem cultural do nosso país, respeitada e admirada mundialmente, tem sofrido golpes sucessivos. Inclusive neste momento de pandemia, enquanto países como a Alemanha declaram a cultura como um bem essencial – o que de fato é, inclusive para a saúde mental da população – nossa sobrevivência está sendo seriamente ameaçada.
Vimos respeitosamente pedir sua atenção, como Presidente do Congresso , para as gravíssimas consequências que dela podem advir para o nosso país, sua imagem e sua cultura. Somos “aqueles que velam pela alegria do mundo”. Merecemos e precisamos continuar vivos.”
“Essa frente ampla em defesa dos direitos dos criadores musicais brasileiros conseguiu reunir valorosos artistas sertanejos do Centro-Oeste, forrozeiros do Nordeste, roqueiros do Centro-Sul, sambistas e pagodeiros de todas as regiões, além de emepebezistas de todos os sotaques, em suma, talentos do Brasil inteiro. Todos unidos contra os exploradores do talento e os maus pagadores que fazem da inadimplência o maior problema do direito autoral em nosso país”, celebrou Marcus Vinicius.
TRATADOS
Além da afronta à Constituição Federal e às leis do país, o ataque aos direitos autorais feito pela emenda de Carreras desrespeita os Tratados e Convenções Internacionais firmados pelo Brasil dificultando a remuneração de todos os agentes ligados à criação, interpretação, execução, edição e gravação de obras musicais sofreriam prejuízos imensuráveis em seus trabalhos, o que traria graves reflexos para a Economia Criativa e para a própria Cultura nacional. Senão, vejamos:
- A Constituição Federal seria desrespeitada e descumprida, pois os direitos autorais, que pertencem exclusivamente aos criadores, passariam a ter valores determinados (e achatados) pelos empresários dos eventos, o que na prática significaria a perda da autonomia dos titulares de direitos sobre suas obras e produções; além do mais, o PL 948/2020 investiria contra a liberdade de organização das entidades de gestão coletiva de direitos autorais, ao criar novas limitações para seu funcionamento, inaceitáveis e inconcebíveis em qualquer país do mundo.
- Os Tratados e Convenções Internacionais firmados pelo Brasil, que possuem regras sobre direitos autorais de cumprimento obrigatório, seriam aviltados pela eventual aprovação da MP 948/2020, o que submeteria nosso país a graves sanções econômicas no âmbito da Organização Mundial de Comércio e de acordos como o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property).
- Além de limitados no direito exclusivo de autorizar (ou não) o uso de suas obras, os compositores teriam seus direitos calculados a partir dos cachês pagos aos artistas dos shows, evidente absurdo que iria contra um princípio basilar de gestão emanado da Convenção de Berna e acolhido pela CISAC (Confederação Internacional de Sociedade de Autores e Compositores): o de que os direitos autorais devem ser pagos em razão do proveito econômico gerado pelo uso das obras e não por quaisquer outros parâmetros alheios a isso.
- Ao determinar que os direitos autorais nos shows e eventos deveriam ser pagos apenas e diretamente aos seus intérpretes, a emenda Carreras à MP 948/2020 repassaria a estes profissionais obrigações que deveriam caber aos empresários e produtores, tal como reza a lei. Ou seja, a suposta ‘gentileza’ aos intérpretes, na verdade seria um fardo para estes, ademais suscetível a erros, fraudes e manipulações econômicas de toda ordem.
- Como se dariam, então, os pagamentos de direitos aos autores, editores, gravadoras e demais componentes da cadeia produtiva da música que não possuíssem vínculos garantidores junto aos intérpretes dos eventos? Deixariam a gestão coletiva institucionalizada e passariam a depender de frágeis relações interpessoais?
- E quem garantiria que os autores, principalmente os de maior renome, aceitariam que seus direitos autorais correspondessem apenas a uma fatia dos cachês pagos aos intérpretes de suas obras, muitos dos quais desconhecidos até para eles? Como funcionaria isso num país em que os cachês são, na maior parte, irrisórios e a mão-de-obra artística notoriamente sub-remunerada?
- E os autores e titulares do repertório estrangeiro, autorizariam que suas obras fossem executadas no Brasil, inteiramente abaixo dos preços e parâmetros de reciprocidade vigentes em todo o mundo?
Na versão-Carreras da MP 948/2020 todos os agentes criativos, nacionais e estrangeiros, seriam prejudicados: autores, intérpretes, editores, gravadoras, etc., sairiam perdendo. O únicos a ganhar seriam os empresários-produtores: pagariam menos direitos autorais e repassariam ‘generosamente’ suas obrigações legais para os intérpretes… Seria a fórmula perfeita para o desmantelamento do direito autoral nos locais de frequência coletiva. Um elefante numa loja de louças não causaria maior estrago!