“Agora a Coisa Vai”, cantam os revolucionários, a monarquia já vai ruir, mas os arrivistas, envoltos em suas ninharias, nada percebem. Trama, músicas especialmente compostas, e a competente direção de Bete Dorgam, se combinam para trazer à cena uma comédia rica e atual
“Acorda Paris”, é o chamado da primeira frase da música que abre a comédia, Canção Dentro do Pão, que o Centro Popular de Cultura da UMES traz ao palco, em temporada até 7 de outubro no Cine-Teatro Denoy de Oliveira.
“O dia tá no forno”, prossegue a letra, “Prontinho pra sair” e segue: “A Massa irá fazer a manhã”, antevê. É 13 de julho de 1779. É o último dia de uma monarquia que já vai ruir.
Tem início um espetáculo que, ao tempo em que nos vai remetendo aos fatos daqueles convulsionados dias, traduzidos pela pena de um brasileiro, Raimundo Magalhães Júnior, que condensa – numa comédia muito bem sucedida – as trapalhadas de um grupo de arrivistas que almejam a vida de cortesãos em uma monarquia pra lá de decadente e nos sinaliza acontecimentos que se desenrolam diante de nós, agora.
O que vale destacar é que, quem assiste à nova montagem de Canção Dentro do Pão se diverte com o resgate do que há de mais criativo e divertido na histórica comédia brasileira, com a combinação de elementos de chiste e de tiradas e situações hilárias, a serviço da trama dessa crônica de costumes.
Quem for até o Denoy de Oliveira, no Bixiga, vai poder presenciar, seja nas animadas encenações, onde os elementos de consciência vão aflorando a cada cena da história, seja nos papéis destinados a cada personagem, que os desempenham emoldurados por sua colocação social, suas aspirações e ilusões numa Paris a um passo da sublevação, ou ainda nas letras das músicas, a uma reunião bem encadeada de elementos teatrais que fazem da peça um momento especial e que vale a pena conferir.
É 13 de julho de 1779, a Revolução Francesa, que fez famoso o 14 de julho e a queda da Bastilha, vai eclodir.
Em torno de uma corte – cuja rainha (que logo será deposta e guilhotinada) sugere ao povo, que brada por pão, ‘comer brioches’ – chafurda um séquito de serviçais seguros de que as coisas continuarão como estão, para sempre, nos palácios de Versailles e Tuilleries. Uma chusma que cuida de subir posições a serviço do rei (como representado por um padeiro que almeja ser “confeiteiro de sua majestade”) ou busca a fuga do tédio, isolamento e insegurança de uma nobreza decadente, engendrando aventuras de alcova (como representado pelo malsinado Monsier Finot). Na trama que reúne os personagens – que afinal não são nobres, mas se identificam, ao ponto da bajulação mais abjeta, com a nobreza – tudo converge para dar à história seu aspecto de novela folhetinesca.
Levar a comédia ao palco fica a cargo de um elenco competente e da intensa direção de uma das maiores especialistas em Clown do país, a destacada Bete Dorgam (prêmios Shell, de melhor atriz, 2011, e APCA, melhor atriz em comédia, 2014). Bete Dorgam há mais de vinte anos estuda, atua, ensina e dirige a arte de fazer rir.
O esforço para transportar o espectador ao momento onde a história acontece está também presente e bem resolvido na cenografia de Caio Marinho e no caprichado figurino de Atílio Béline Vaz.
Todo o trabalho consegue realçar, entre outros aspectos, as tiradas do expressivo texto do dramaturgo brasileiro, que – partindo da obra crítica de Denis Diderot, “Jacques le Fataliste et Son Maitre” (Jacques, o Fatalista e Seu Amo) – levam a plateia ao riso, praticamente da primeira à última cena. Um texto que se serve de uma fina ironia que para colocar, sem descurar do divertimento, o espectador diante das mudanças urgentes, já então e, no caso de sua representação atual, de agora.
A esse respeito, o texto de Magalhães mostra, em diversos momentos, uma pungente atualidade. Como na inescapável comparação que se torna natural fazer com a revoltante e convulsionada situação do nosso país, quando o quase-nobre, monsieur Finot, diz ao padeiro, pretendente a confeiteiro, Jacquot, que a promoção de suas “confitures” nas “Tuilleries”, junto ao Rei e Rainha, é bem possível e, depende apenas de “nos entendermos quanto a certos detalhes”.
Por certo que os costumeiros “acertos” não vão adiante, pois tudo não passa de estratagema para envolver o padeiro, além do que, como anteveem os revolucionários, na canção, Ça Irá (algo assim como Essa Coisa Vai), “O Rei e a Rainha tombarão”.
Fica claro, que qualquer semelhança com “acertos” palaciano-planaltinos, presenciados por aqui todos os dias e com as possíveis sublevações e necessárias mudanças, não será mera coincidência.
Vale acrescentar o sabor de resgate da efervescência teatral da época em que Magalhães Júnior produziu a peça, conferido pelas músicas, produzidas especialmente para o espetáculo, pelo maestro Marcus Vinicius e pelo compositor Léo Nascimento e que se encaixam com precisão no espírito da peça, de forma que o enriquece e atualiza.
Como nos informa o maestro Marcus Vinicius (ver matéria nesta página), nas músicas compostas para a peça, a intenção é reforçar a comédia e isto se consegue, por exemplo, com o uso de recursos como o do ‘afrancesamento’, abertamente proposital, tanto nos termos como no sotaque.
Afinal, estamos em uma Paris que, como é expresso na perplexidade musicada de alguém que, mesmo não estando no centro do “fuzuê”, ou seja do processo revolucionário, percebe que “Paris está estranhe, tá agitade”; que a cidade “então pirou por que?/…/Tão me escondendo alguma coisa, o que?/ Deve ser merde que estão aprontando/…/Me diga então você, meu camarade:/ Alguma coisa tá para acontecer?”
Afinal, se a mudança, anunciada nos estertores do Régime, no dia 13, vai de fato acontecer no 14 de Julho, ou, quem sabe, aqui, onde, como diz uma das letras de suas músicas, “Agito assim nunca se viu”; se vão prevalecer os ideais de “Liberté, Egalité, Fraternité”…”Só a massa irá dizer”, ou, só indo ao Denoy, no Bixiga, para ver.
Cine-Teatro Denoy de Oliveira: Rua Rui Barbosa, 323/ Bela Vista – SP. Até 7 de outubro. Sextas e sábados às 21 horas. Ingressos: R$20,00 (Inteira) e R$10,00 (Meia).
Classificação: Livre. Duração: 90 minutos. Capacidade: 99 lugares. Telefone: (11) 3289-7475. Aceita Cartões. ***Entrada gratuita para moradores do bairro da Bela Vista mediante comprovante de residência e estudantes com Carteirinha da UMES.
NATHANIEL BRAIA
“Nossas músicas buscam realçar a essência de comédia, de crônica de costumes da peça”, afirma Vinícius
“A ideia, ao compor as músicas, foi ir no ritmo da peça de Raimundo Magalhães Júnior; foi realçar a sua essência de comédia, de crônica de costumes”, afirmou o maestro Marcus Vinicius ao falar de suas composições para Canção Dentro do Pão.
“Nosso intento era fortalecer o sabor de resgate da efervescência teatral da época em que Magalhães Júnior produziu a peça (1953)”, acrescenta Vinicius, “uma atividade que faz parte da nossa história teatral, um jeito brasileiro de fazer comédias, que transbordou nos Teatros de Revista (o nosso Vaudeville) pelo país afora”.
O maestro nos relata que “o reforço à comédia e a sua circunstância parisiense, está presente em recursos como o do uso de ‘afrancesamento’, uma blague recorrente e abertamente proposital, nos termos e sotaque”.
Marcus soube dosar de forma leve e bem humorada o fato da peça se passar na agitada Paris daqueles dias de final do século XVIII, mas também de ser escrita por um brasileiro em meados do século passado. O som vem também da nossa rua e de nossos campos, como na embolada que o maestro torna uma Embolée (ver letra da música nesta página).
“Aliás, para fazer essa Embolée, eu me inspirei em um presente que Guel Arraes me deu, que foi uma embolada cantada pelos franceses de Provence”, lembra o maestro.
Vinicius destaca ainda que para conseguir caracterizar a condição brasileira da peça, recorreu a “uma tradição já presente no cancioneiro popular brasileiro, como acontece no ‘Marré Deci’, das cantigas de roda das nossas crianças, ou nos ‘Anarriê’ e ‘Anavantu’ de nossas quadrilhas juninas”.
“Além da comédia”, diz Vinicius, “não podemos esquecer que o clima é de celebração, pois o povo vai abrir de par em par os portões da Bastilha e celebrar a queda da monarquia opressora, mergulhada no luxo e na leviandade”.
Pois como diz uma das letras de Vinicius,
Paris é uma festa
Pra quem sabe curtir
Mas que merda é ter fome
Sous le ciel de Paris
Os pobres pobres pobres
De marré marré deci
Já tão de saco cheio
Tão mesmo porraqui
De andar esfarrapados
Em plenaTuilleries
Sem nada na barriga
Mas, logo depois, virá a pergunta: “Afinal, também vai poder provar da ‘champagne’ e do ‘paté’?”
“O clima é, acima de tudo, de questionamento pois, será que vai conseguir fazer valer os ideais de ‘Liberté, Egalité, Fraternité’?”