“Precisamos nos comprometer que o próximo governo não seja apenas de unidade da nossa coalizão, mas de unidade pelo país”, enfatizou o ministro da Economia. “Temos o segundo tempo”, convocou.
Com o país enredado nas teias do FMI há quase oito anos e sangrado pelos fundos abutres, inflação que ultrapassa 100%, juros estratosféricos, crise cambial e 40% da população na pobreza, os hermanos argentinos superaram o nosso voto cacareco de priscas eras nas chamadas primárias deste domingo (13), propiciando o primeiro lugar ao autodenominado “anarcocapitalista” Javier Milei.
O arrivista, além de entusiasta de Trump e Bolsonaro, também é roqueiro e adepto da dolarização, das privatizações, do porte de armas e da ‘comunicação’ com cães mortos e venda de órgãos humanos.
As eleições propriamente ditas serão em 22 de outubro, podendo haver um segundo turno em novembro. As primárias indicam os candidatos de cada partido a presidente, mais as chapas para metade dos deputados federais e um terço dos senadores.
O comparecimento às urnas ficou abaixo de 70%, o mais baixo para uma eleição primária desde que elas começaram a ser realizadas na Argentina há mais de uma década. Falhas no sistema de votação causaram longas filas na capital Buenos Aires,
Olhando com mais vagar, a votação se dividiu por terços nas primárias, com 30,04% para Milei; 28,7% para o macrismo do Juntos pela Mudança, mais exatamente sua ala mais extrema, Patrícia Bullrich, ex-ministra da Segurança; e 27,27% para o peronismo (União pela Pátria) com o ministro da Economia e atual negociador com o FMI, Sergio Massa (apurados 97,39% dos votos).
Quanto ao fenômeno da votação em Milei, fica a dúvida se deve ser denominado “voto terraplanista” ou “voto Jim Jones” (aquele do suicídio coletivo). Mas está ligado, acredita-se, ao grau de desespero, desorientação e desencanto que vem grassando na Argentina.
Foi Macri, de 2016 a 2019, que enfiou a Argentina no buraco, levando-a para o FMI e capitulando diante dos fundos abutres. Já o governo peronista que o sucedeu, de Alberto Fernández, tentou administrar a crise, para o que, crescentemente, se aproximou do agora candidato Sergio Massa e se distanciou da vice (e ex-presidente), Cristina Kirchner. Esta, praticamente impedida de concorrer por manobras judiciais sistemáticas arquitetadas pelo macrismo e até ameaçada de morte. O desgaste do atual governo já havia levado Fernández a abrir mão da reeleição.
TERRAPLANISMO ECONÔMICO E SOCIAL
Para Milei, é possível resolver tudo com seu terraplanismo econômico e social e, porque não, ter as melhores relações com o FMI. “O FMI não deve ter problemas com o programa que propusemos porque propomos um ajuste fiscal muito mais profundo do que eles propõem”, destacou o candidato a presidente, afinado com suas propostas de cortes, privatizações, demissões, liberalização da economia e abertura de importações em detrimento do aparato produtivo nacional, entre outros, levantados na campanha, como registrou o Página 12.
O desmanche de Milei pretende, ainda, eliminar as obras públicas, acabar com a educação gratuita, abolir o salário mínimo, negar o número de vítimas da ditadura militar, liberar o porte de armas, desencadear uma guerra cultural ao progressismo e ao feminismo. Também diz ser a favor de “eliminar o Banco Central” – cuja explicação, para além da demagogia, é que ele não quer nenhum intermediário atrapalhando o mínimo que seja os especuladores e banqueiros em suas negociatas.
Uma de suas mais repetidas promessas é a de acabar com “a casta”, isto é, a “classe política privilegiada e corrupta”. Embora tenha se alinhado, principalmente nas províncias, a todo tipo de político escuso. Há ainda múltiplas denúncias de que seu partido, Liberdade Avança, vendeu extensamente candidaturas por US$ 50.000.
“O crescimento de Milei é uma surpresa. Isso fala da raiva das pessoas com a política”, tentou justificar o ex-presidente Macri ao chegar ao centro de eleições do Juntos pela Mudança. Segundo o Página 12, a candidata do Juntos, Bullricht, já faz acenos a Milei.
DOLARIZAÇÃO FUNESTA
Entrevistado pela CNN, Matheus Pereira, doutor em Relações Internacionais, assinalou o desencanto com as alternativas políticas tradicionais e o desempenho da economia como fatores determinantes para o resultado das primárias.
“Isso se reflete tanto no voto que não é dado ao governo – que, de alguma forma, é visto como parte do problema – mas também não é dado ao partido do ex-presidente Mauricio Macri, que também parece ser muito associado a essa crise do presente. Aí o Javier Milei se coloca diante dessas duas insatisfações com uma proposta muito sedutora ao ouvido do cidadão médio, que é a dolarização da economia”. Que Milei tenta emplacar como solução para a inflação argentina, que é de 115,6% nos últimos 12 meses.
No caso da Argentina, há o precedente de que quem optou por essa via acabou fugindo da Casa Rosada de helicóptero, nem faz tanto tempo assim. Imagine-se agora que no mundo inteiro se fala de desdolarização.
Também o Página 12 chama a atenção para características inusitadas do novo mito da extrema-direita argentina, que vão além do que já mostrara em sua trajetória, tipo gritos, insultos e provocações. Afora a irmã Karina, apresentada como seu único apoio emocional, Milei também mantém uma estranha relação com seu cão, Conan, que clonou após sua morte. “Graças à intervenção de parapsicólogos, médiuns, bruxas e telepatas, Milei diz que ainda está em comunicação com Conan e seus outros cães, pede-lhes conselhos sobre sua estratégia de campanha, além de ajudando-o a saber o que vai acontecer no futuro e a fazer análises políticas e econômicas. Em alguns casos, ele também ‘se comunica’ com humanos mortos, principalmente economistas e filósofos”, diz um biógrafo.
FRENTE AMPLA
Agora, caberá a Massa ser o impulsionador de uma ampla frente que detenha o fascista Milei. Segundo o Página 12, Massa chamou a construir uma “nova maioria”, buscando aliados entre os setores do campo popular e os radicais.
“Precisamos nos comprometer que o próximo governo não seja apenas de unidade da nossa coalizão, mas de uma unidade pelo país”, enfatizou o candidato peronista, acrescentando que “ainda temos o segundo tempo”.
Em uma analogia futebolística, ele comparou a situação atual com o final do primeiro tempo e convocou sua equipe a estar preparada para o segundo tempo, a prorrogação e os pênaltis. Ressaltou a importância de manter a estabilidade econômica, a produção e a defesa dos direitos como valores fundamentais na Argentina.
Diante da divisão do cenário eleitoral em terços, Massa enfatizou a necessidade de debater o rumo do país em questões fundamentais, como a reindustrialização ou a abertura de importações, o ensino universitário público, o sistema de aposentadorias, os direitos trabalhistas e outras políticas-chave que definirão a direção do país nos próximos anos.
Registre-se que Massa conseguiu vencer em algumas áreas-chave, como a província de Buenos Aires – embora Milei esteja na frente em 17 de 24 distritos eleitorais nacionais. Outras lideranças peronistas enfatizaram a necessidade de sustentar a democracia, o dialogo e a unidade, em contraposição a divisão e retórica de ódio que tem caracterizado a oposição. Belém.
Ao concluir, Massa sublinhou que a eleição não se trata de uma confrontação entre peronismo e antiperonismo, mas entre a defesa dos direitos e a visão da direita. Fez um apelo à população para continuar exigindo mais e trabalhar juntos para construir um futuro melhor para todos os argentinos. As próximas semanas serão cruciais para definir o futuro da Argentina.
Em tempo: outra analogia futebolística corriqueira é que jogo é jogo e treino é treino.
APERTO OBSCENO DO FMI
A batalha também será travada no difícil quadro da crise econômica em curso na Argentina, que a duras penas, e com a ajuda da China, conseguiu manter em dia seus reembolsos ao FMI. No ‘day after’, o dólar disparou mais de 20%, os títulos argentinos caíram mais de 10% e o Banco Central da Argentina subiu o juro básico em 21 pontos, para 118% ao ano. O que foi interpretado pela CNN como uma reação negativa de todos os principais ativos financeiros argentinos ao resultado das urnas. O chamado “mercado” supostamente acreditava na vitória dos macristas.
Às 11h30 no horário de Brasília de segunda-feira, o dólar oficial era negociado com alta de 21,81%, a 394,95 pesos. Há oito meses, no fim de 2022, o dólar era negociado a 176 pesos no mercado oficial – entre bancos. Desde então, subiu 124%. No mercado paralelo, o chamado “dólar blue”, também sobe cerca de 10% e o dólar é negociado nesta manhã por volta de 670 pesos nas casas de câmbio do centro de Buenos Aires, segundo a imprensa argentina.
O efeito, porém, vai além do dólar. A Bolsa de Buenos Aires abriu os negócios com queda superior a 3% do índice Merval. Em Nova York, títulos da dívida argentina – que já são negociados com grande desconto diante do risco de calote – começaram a semana com quedas que chegaram a 13% diante da leitura de piora das condições do país vizinho. Por sua vez o Banco Central da Argentina aumentou a taxa básica de juro em 21 pontos percentuais, para 118% ao ano. Até sexta-feira, estava em 97% ao ano.
Já para o economista argentino Alfredo Zaiat, a desvalorização da taxa de câmbio oficial havia sido imposta pelo FMI para logo após as primárias. O que, conjugado com dos juros a níveis recordes, terá impacto na inflação, advertiu. Ele acrescentou ser imperativo uma política de renda compensatória: valor fixo para salários e programas sociais acompanhado de acordo de preços e posterior congelamento dos bens da cesta familiar. Os técnicos do FMI – acrescentou – queriam 100%.
“No entanto, este golpe cambial aplicado a 70 dias das eleições gerais, acompanhado de uma subida da taxa de juro para um recorde de 118% ao ano, terá impacto na taxa de inflação, especialmente na sensível categoria de Alimentos e Bebidas”.
Ele alertou que, dado o complexo quadro político-eleitoral emergente das primárias, e a delicada frente cambial de reservas no Banco Central, medidas compensatórias do lado da renda são “essenciais”. De acordo com o economista, “além de discursos amigáveis” e “suposta colaboração”, a direção do FMI e o dono da organização (Estados Unidos), “tiveram na prática comportamento desestabilizador no plano financeiro e, portanto, na economia em ano eleitoral em que se trata de um governo que não é de sua preferência política”. “A desvalorização de 22% confirma o obsceno aperto financeiro do FMI ao governo de Alberto Fernández”, destacou.