Um dos mais relevantes cantores e compositores nicaraguenses, Carlos Mejía Godoy, denunciou que, com a multiplicação de mortos, feridos, presos e desaparecidos pela repressão orteguista, seu país está vivendo “um verdadeiro pesadelo, do qual gostaria de despertar”. “Cada manhã que me levanto, invoco ao Senhor e lhe peço que não amanheça um morto a mais nas ruas, um desaparecido, um ferido à bala. Estou farto de tanta miséria humana, de tanto crime e de tanta impunidade”, acrescentou.
O célebre cantautor que exaltou com “Nicarágua, Nicaraguita” a Pátria como “a flor mais linda do meu querer” – impulsionando a revolução popular sandinista após a derrubada da ditadura pró-EUA de Anastácio Somoza (1936-1979) -, condenou a gravíssima crise política, social e moral em que se vê mergulhado o país pela corrupta política neoliberal de Daniel Ortega e Rosario Murilo, presidente e vice, marido e mulher. Nas palavras de Mejía Godoy, “uma réplica sórdida da tirania dos Somoza” responsáveis pela “tragicomédia mais vergonhosa dos últimos anos”.
Mejía Godoy acredita ter “renascido” quando os protestos contra o corte no orçamento da educação, o rebaixamento do salário dos professores e das aposentadorias ganharam as ruas, porque acreditava que “jamais ia voltar a canções de luta política, contra o crime, contra a desgraça de nosso povo”. Neste instante, assinalou, “me sinto mil vezes mais comprometido com o meu país”.
“A resistência pacífica”, acredita, “é muito dolorosa, mas eficaz”, citando “Monimbó, siempre con vos”, sua última produção musical, que exalta a luta atual da cidade de Masaya, foco da resistência aos desmandos da dupla.
Um informe apresentado pela Associação Nicaragüense pró-Direitos Humanos indica que ao menos 285 pessoas morreram e mais de 1.500 ficaram feridas entre 18 de abril e 25 de junho.
Na semana passada, acompanhado de mães e avós que buscam desesperadas pelos filhos presos, bem posicionado no portão principal da penitenciária de Chipote, o músico de 75 anos também se solidarizou com o “companheiro de canto” Milcíades Pavon, músico fundador do grupo Palacagüina, cujo genro Joel Moraga foi detido em casa, de forma arbitrária e violenta. Depois de uma semana, nenhuma informação havia chegado aos familiares a respeito da situação de Moraga, nem sequer sobre o teor da acusação.
ALVARITO CONRADO
Em frente ao cárcere, o músico interpretou vários de seus clássicos como “Vivirás Monimbó” e também temas novos inspirados na luta atual, como “Madres de Abril” e “Soy Alvarito Conrado”, que homenageia um dos adolescentes vítimas da repressão.
Álvaro Conrado acabava de completar 15 anos, era músico, atleta e queria ser advogado, e tão somente levava água aos universitários que se concentravam na Catedral quando teve sua vida ceifada pelo regime orteguista. O governo não só mandou disparar a bala, como negar o socorro no hospital, conforme foi fartamente denunciado. Como se fosse o próprio Alvarito, Mejía Godoy reforça na canção: “Escutei já moribundo que os médicos de turno me deixariam morrer, enquanto eu sangrava, os sepulcros me negavam o direito de viver”. Assim, “no azul de meu céu, empreendi meu eterno voo e lhes posso assegurar que aqui desde esta estrelinha te verei, Nicaraguita, conquistar tua liberdade”. E arrematava, confiante na vitória: “Sou Alvarito Conrado, meu sangue não foi em vão, vem um futuro melhor, não me tenham jamais por morto, estou vivo e ressuscitado em cada raio de sol”.
Ignorado pelos guardas, o cantautor elevou o tom: “Quero saber se Joel Moraga está vivo, se ele existe, tenho direito como cidadão de saber se está aqui”. “Temos nos desumanizado, me sinto indefeso neste país. De que serve ser amigo de pessoas, ser conhecido? Nos agridem, nos prendem, nos matam”, disse consternado. Para o renomado militante cultural sandinista, Daniel e Rosário deveriam “ao menos pôr a mão na consciência e pensar que estes jovens poderiam ser seus filhos ou de sua família”.
“Eu sei que com as canções não vamos poder mudar, porém simplesmente elas se unem aos meninos que estão nas barricadas, às mães que estão aqui em El Chipote, esperando que deem liberdade aos seus filhos. Esta é nossa modesta quota, ela está e sempre estará aqui, ao lado dos humildes, ao lado dos que sempre põem os mortos”, frisou.
Entre suas muitas canções que embalaram a luta da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) contra Somoza está “Quincho Barrilete”, que lhe deu fama internacional quando ganhou o Festival Iberoamericano da Canção de 1977.
Autor do hino da Unidade Sandinista, que exalta o povo como “dono de sua história e arquiteto de sua libertação”, ele disse que ao contrário da dupla Daniel-Rosario, que ocupa o governo, está coerente com sua trajetória. “Sigo sendo sandinista. Uma vez eu disse: me retiro do partido, porém não vou jamais me retirar dos princípios”, sublinhou, condenando Ortega e os que trairam a história de Carlos Fonseca e de tantos dirigentes e militantes que entregaram a vida à causa da liberdade e da independência. Qualificando o conflito atual como “um verdadeiro apocalipse na Nicarágua”, o cantautor enfatizou: “no seu momento vamos sentar no banco dos réus os responsáveis por este massacre”.
LEONARDO SEVERO