(HP 13/06/2003)
“Carandiru” é assim: o personagem interpretado por Rodrigo Santoro, o travesti Lady Day, é tão doce, meigo e boa gente, que você quase tem vontade de levá-lo para trabalhar de arrumadeira da sua casa. O detento interpretado por Milton Gonçalves, que após passar décadas atrás das grades, está prestes a sair da prisão, é quase um sábio; o chefe da cozinha, que, na hierarquia da cadeia, pelo menos no filme, é sempre um preso mais velho e “respeitado” pelos outros – na verdade é quem resolve as confusões mais sérias, brigas entre traficantes e viciados, ou decide quem deve morrer -, é mostrado como um homem tão sério, parcimonioso e inteligente, que qualquer pessoa comum fica se perguntando o que ele está fazendo ali. Provavelmente, todos eles foram parar na cadeia porque estavam rezando na porta de alguma igreja.
FARSA
Em suma, trata-se de mais uma farsa típica daquela página negra da História do país, mal chamada de governo Fernando Henrique. Ou seja, um elogio do banditismo. Não por acaso, o seu diretor entoa loas a essa abjeção: “o governo FHC deixou um legado de transparência, apesar do pouco que ele conseguiu fazer em função da oposição sistemática e cruel do PT ”, ou, “o comportamento do PT foi ignóbil com Fernando Henrique”, e, “José Serra e FHC são mais a esquerda do que o próprio PT”. Para quem confunde – ou idolatra – a traição e o roubo do país, isto é, a mais desenfreada corrupção, como “transparência”, e a entrega do patrimônio e da economia do país ao gangsterismo ianque como “esquerda”, é claro que os mocinhos só podem ser… os bandidos.
AQUARELA DO BRASIL
Naturalmente, “o comportamento do PT foi ignóbil com Fernando Henrique” porque o PT derrotou-o, tirou sua quadrilha, composta de renegados que odeiam o Brasil e seu povo, do poder. Coisa verdadeiramente inconcebível para um escravo mental – e não somente mental – de tudo o que não presta nos EUA.
A idiotice é mais explícita e asquerosa ainda: sobre o uso indecoroso de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, o nosso segundo Hino Nacional, no final do filme, diz Babenco que “tem algo a ver com o Casino da Urca, a ilusão de um país que ia dar certo. Cinelândia, Ary Barroso, a paródia… É o Brasil onde tudo acaba em pizza. Nenhum dos responsáveis pelo massacre está preso. Tem que acabar o filme com entretenimento, o equivalente a Carmen Miranda dançando com um chapéu de fruta na cabeça. Enquanto o brasileiro continuar se vendo de maneira tão passiva, vou continuar tocando ‘Aquarela do Brasil’ no final de um filme”.
Em poucas palavras, trata-se do esperneio – como sempre repugnante – das viúvas de Fernando Henrique, ou seja, dos serviçais da quadrilha de Bush, inapelavelmente derrotados nas últimas eleições. O problema de Babenco quanto a este acontecimento histórico, as últimas eleições, é exatamente que o povo brasileiro nada teve de passivo – repudiou os seus ídolos e mandou-os para a margem da vida pública, que é onde devem estar os marginais. Acontece que tudo acabava em pizza era, precisamente, nos oito anos que antecederam a eleição de Lula, onde a propriedade do povo – exatamente a base para que o país se desenvolva, isto é, “dê certo” – foi saqueada, pilhada, engordando receptadores de comissões e empanturrando os aventureiros além das fronteiras nacionais. Só que isso acabou.
“Aquarela do Brasil” é, exatamente, a obra que sintetizou o período mais florescente do Brasil, da nacionalidade, do povo brasileiro, período interrompido e, agora, retomado com a eleição de Lula. Daí o ódio do capacho pela obra do grande Ary.
MODELO AMERICANO
Para que serve o suposto retrato do repulsivo massacre do Carandiru, fato real, no filme? Apenas para inverter os valores, para, em nome de suas vítimas reais, inventar outras – ou seja, trocar indivíduos que estão pagando sua dívida para com a sociedade por homens de bem, trocar, em resumo, o bem pelo mal, o certo pelo errado. É evidente que o sistema carcerário brasileiro precisa ser reformado. É evidente, também, que o massacre do Carandiru foi abominável. Mas isso qualquer um, com bom senso, concorda. O problema é quando se manipulam coisas óbvias para falsificá-las, para elevar a heróis os bandidos e marginais. Bem típico da estupidez e indecência fernandistas, esse antro do lumpen.
Naturalmente, como todo fernandista, Babenco tem um modelo americano: é o seriado “Oz”, da HBO, isto é, da Warner, onde os mocinhos são exatamente os bandidos dentro de uma penitenciária. Naturalmente, quando se tem quatro milhões de presos, como os EUA – a maior população carcerária do mundo – as TVs têm que se preocupar com a audiência também dentro da cadeia… “Carandiru”, em que pese o uso que se fez do livro homônimo de Dráuzio Varela, é um pastiche de “Oz” elevado a grande obra por uma parcela bem específica da mídia: aquela que sempre apóia qualquer roubo contra o Brasil, qualquer crime contra a Humanidade – como no Iraque -, desde que beneficie seus amos ianques. É inevitável, portanto, que essa escória veja os bandidos como mocinhos – até porque os bandidos que fantasiam não são mais do que a sua auto-imagem, e a de seus heróis, aqueles que Marx já chamava de “os heróis da canalha”.
Transformar assassinos, traficantes e estupradores em vítimas e, em última instância, como disse um crítico francês, em “heróis positivos”, como fez Hector Babenco em seu filme, extrapola em muito a tão propalada liberdade de expressão ou o direito artístico de tratar apenas de determinados aspectos da realidade. A arte e a liberdade não convivem com a mentira. Nada há de mais estranho a elas.
ACORDO?
Em recente entrevista, a um crítico de cinema, o cineasta argentino afirmou que não via Carandiru “como um clímax, mas como um acordo”. A que se perguntar: acordo com o quê? Ou com quem? Com os bandidos? Talvez seja por causa desse acordo que ele estampou um injustificável sorriso simpático na cara do médico (o ator Luiz Carlos Vasconcelos, que interpretou o personagem do Dr. Dráuzio Varela, autor do livro que originou o filme) em todos os momentos em que ele ouvia as histórias criminosas de seus pacientes detentos.
Redação