Um militar descreve em detalhes o assassinato, comandado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, do preso político Stuart Angel, na Base Aérea do Galeão, em 1971. Documento que iria a leilão confirma relato que havia sido feito por Alex Polari, preso junto com Stuart
Um documento histórico de grande importância foi casualmente encontrado em um dos lotes do leilão de “Postais, Documentos, Publicações e Afins”, que iria acontecer no próximo dia 5 de abril, no Rio de Janeiro. Trata-se da declaração, em primeira pessoa, de um oficial da Aeronáutica que participou da prisão, interrogatórios, torturas e assassinato do preso político Stuart Angel, militante do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), em 1971.
DOCUMENTO DATILOGRAFADO
Segundo relato da colunista de “O Globo”, Dorrit Harazim, o oficial se identifica como Marco Aurélio Carvalho, e aponta em dez parágrafos datilografados a sequência de horrores que levaram à morte o jovem preso político, de 25 anos, na Base Aérea do Galeão. O documento, composto de duas páginas datilografadas, é datado de 29 de março de 1976.
“De acordo com a prática naquela unidade militar, o jovem sofreu afogamentos, choques eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusava a dar a informação exigida, o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço da referido subversivo, que ele se negava a dar (…) Depois de horas nessa situação, foi levado de novo para a cela (…)”. “O médico que trabalhava em parceria com os torturadores garantia que Stuart continuava em ‘boas condições'”.
Não se sabe os motivos que levaram o militar a registrar sua participação nestes acontecimentos e no dia seguinte registrá-lo em cartório. Dorrit Harazim aventa a hipótese de remorso. Pode ser, mas isto é uma coisa que dificilmente poderá ser esclarecida nesta altura dos fatos. Na verdade muitos militares não concordavam com as práticas criminosas conduzidas pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, o monstro que, em última instância, foi o assassino de Stuart Angel e, certamente, de outros presos políticos.
RELATO CONFIRMOU O QUE ALEX POLARI JÁ HAVIA DESCRITO
O documento confirma a carta redigida por Alex Polari, vizinho de cela de Stuart, e endereçada a Zuzu Angel, mãe de Stuart. Alex havia sido preso com Stuart e fez uma descrição detalhada da prisão, da tortura e da morte do companheiro. “À noite alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esta alguém estava em estado precário e pude ver tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, “Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (…)”, narrou Polari.
Ele ainda informou na carta que dois coronéis e um enfermeiro passaram pela cela à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo”. Stuart estava morto. A mãe e Stuart buscava desesperadamente informações sobre o paradeiro de seu filho e, ao receber a carta, iniciou uma ampla campanha de denúncia contra a ditadura e o assassinato de seu filho. A carta foi reproduzida pelo historiador Hélio Silva e teve ampla repercussão. O cineasta Sérgio Rezende retratou a epopeia de Zuzu Angel em busca de seu filho e na denúncia dos crimes da ditadura.
Na descrição do site do promotor do leilão, Alberto Lopes, afirmava-se que “Trata-se de documento não oficial, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil”. Na descrição do documento para leilão é relatada também a morte suspeita da estilista Zuzu Angel, que se tornou uma grande denunciadora dos crimes da ditadura.
Reprodução do anúncio do leilão:
MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS
Diante dos fato que vieram a público, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) divulgou uma nota onde presta solidariedade à família Stuart “na pessoa da jornalista Hildegard Angel, que além do irmão Stuart, perdeu também a mãe, Zuzu Angel, e a cunhada Sonia Maria de Moraes Angel Jones, todas vítimas da ditadura militar”.
“Após o Dia Internacional para o Direito à Verdade para as Vítimas de Graves Violações dos Direitos Humanos, lembrando em dia 24 de março, o governo brasileiro foi surpreendido com a denúncia sobre o leilão de um suposto documento assinado por um oficial da Aeronáutica, no qual confessa ter presenciado e participado das diversas violações que resultaram na morte de Stuart Edgar Angel Jones. O militante do MR-8 está desaparecido desde o ano de 1971, quando tinha 25 anos”, diz a nota.
“Os documentos que contém indícios e provas sobre violações de direitos humanos são parte fundamental na garantia do direito à verdade. Por isso, reforçamos nossa convicção nos arquivos públicos dedicados à salvaguarda desses acervos, tal qual o Arquivo Nacional, que abriga o Centro de Referência Memórias Reveladas – um dos mais relevantes centros brasileiros de guarda e garantia de acesso a esse tipo de documentação”, prossegue o documento.
“E cabe lembrar”, acrescenta o ministério, que “o passado registrado nesses documentos não diz respeito apenas às famílias diretamente atingidas pela violência autoritária, mas a todas e todos nós do Brasil. Ressaltamos, portanto, que essa nefasta parte de nossas histórias não deve ser esquecida para que nunca mais se repita. Por isso, a preservação da memória se faz imperativa, pois somente conhecendo o nosso passado poderemos firmar o compromisso sobre o que nunca mais aceitaremos”.
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Mais um dos absurdos cometidos durante a ditadura militar vergonhoso fato.