Grandes “jogadores”, inflados pelas injeções bilionárias de liquidez dos BCs e acostumados a ganhar sempre, levaram um tombo pela ação conjunta dos pequenos investidores. Wall Street está furiosa
O caso GameStop, que agitou Wall Street essa semana, é bem ilustrativo de como anda a febre nos centros da agiotagem e como agem nelas os falcões da especulação. De posse de informações de que a empresa vendedora de games estava em dificuldades, agravadas pela pandemia – como acontece com boa parte das empresas da economia real – os grandes fundos hedge de investimentos (especuladores) apostaram tudo na queda de suas ações.
Uma de suas apostas é a chamada ‘venda a descoberto’, ou seja, um fundo de hedge toma emprestado (aluga) as ações da empresa alvo que estão na mão de outros investidores. Fazem isso por uma taxa e com prazo de retorno definido.
Depois vende essas ações no mercado. Em seguida, espera até que seu valor caia para depois comprá-las de volta. As ações emprestadas são devolvidas ao proprietário original e o fundo de hedge embolsa um lucro gigantesco na diferença entre a venda na alta e a compra na baixa. E assim muito são enganados.
Operações desse tipo, que proporcionam lucros enormes para os grandes fundos, provocam perdas na mesma proporção para pequenos aplicadores e os desavisados que, na maioria das vezes, não detêm informações privilegiadas e são sistematicamente enganados. Ou seja, são sempre os últimos a saber. Quando percebem as jogadas já é tarde demais.
Além disso, esses movimentos especulativos com os papéis das empresas na bolsa muitas vezes levam-nas à falência ou aceleram esse processo, provocando mais crise na economia e levando ao aumento do desemprego. Para o cassino o que interessa são os movimentos e a variação nos valores da ações. Se as empresas vão quebrar, o problema é delas e de seus trabalhadores. É assim que a banda toca.
É claro que orgias financeiras desse tipo podem parecer irrelevantes para a maioria das pessoas comuns, que, afinal, estão longe de tudo isso. Os 1% mais ricos dos EUA , por exemplo, possuem 53% da riqueza do mercado de ações do país, com os 10% do topo possuindo 93%. Os 90% mais pobres possuem apenas 7%. No entanto, as pensões dos trabalhadores e contas de aposentadoria são investidas por gestores de fundos de pensão privados em ativos financeiros.
Portanto, as economias que as famílias trabalhadoras têm são vulneráveis às atividades de jogo dos vigaristas no cassino financeiro – como o colapso financeiro global de 2007-8 mostrou muito bem. Além do mais os custos dos quantitative easing (QE), ou flexibilização quantitativa, e dos demais recursos que são injetados pelos Bancos Centrais e pelos Tesouros, sempre acabam sendo cobrados de alguém, e não são dos bancos e rentistas.
Pois bem, a novidade neste episódio da GameStop é que um grupo de pequenos investidores – grande parte deles, funcionários e executivos que estavam em home-office – jogou água no chope dos grandes especuladores. Eles se juntaram, através de uma plataforma digital chamada “Reddit”, e, com ordens combinadas de compra, fizeram a ação da GameStop disparar de US$ 19,26 no final de dezembro para impressionantes US$ 380 na máxima registrada na quarta-feira (27) na Bolsa de Nova York, uma alta de mais de 1.800%.
Ou seja eles apostaram e fizeram o oposto do que fazem os fundos hedge. Usaram seu poder de fogo para elevar o preço das ações, forçando esses fundos, mantidos por grandes bancos e instituições, a recomprar as ações a preços mais altos à medida que o tempo se esgotava para suas apostas ‘curtas’. As ações que os fundos hedge venderam tinham que ser recompradas porque eram alugadas de outros investidores. Eles normalmente as recomprariam a preços mais baixos do que venderam, ganhando muito dinheiro.
Como resultado da ação dos pequenos investidores que se juntaram, vários fundos de hedge ‘vendidos’ tiveram um prejuízo enorme (US $ 13 bilhões) e um fundo teve que ser resgatado por seus investidores no montante de US $ 2,75 bilhões.
Wall Street está furiosa. Os pequenos investidores ‘fraudaram’ o mercado, clamam, ameaçando o valor dos seus fundos de pensão e colocando os bancos em risco. Isso é um absurdo, é claro, bradaram os donos de fundos hedge. O que realmente mostra é que os mercados financeiros são ‘manipulados’ pelos grandes e são os pequenos investidores que geralmente são os ‘enganados’ neste antro de jogos de azar.
Já há o temor que no Brasil se repita em escala menor o que aconteceu com a GameStop. As ações do IRB Brasil desabaram após a Berkshire Hathaway, empresa de investimentos do bilionário Warren Buffet, ter afirmado que não é acionista da resseguradora brasileira e nem pretende ser. Um movimento semelhante ao da GameStop, de investidores na Bovespa, está sendo observado.
A ação da resseguradora que estava em queda teve alta de 14,3%. O volume financeiro das operações da empresa subiu 245% entre terça e quinta-feira (28). Fundos de hedge que já operavam com 10% das ações alugadas do IRB botaram as barbas de molho. No caso da GameStop, 100% das ações estavam alugadas.
Além disso, a participação de brasileiros na bolsa é muito menor do que nos EUA. O Brasil tem, ao todo, 3 milhões de investidores cadastrados na B3, enquanto 55% dos americanos em idade adulta têm investimentos em bolsa.
O economista britânico Michael Roberts chama a atenção para o fato de que essa febre especulativa que já vinha numa crescente antes, foi multiplicada por muito durante a pandemia de Covid-19. “Durante o ano da Covid, a produção, o investimento e o emprego em quase todas as economias do mundo despencaram, à medida que os bloqueios, o isolamento social e o colapso do comércio internacional reduziram a produção e os gastos”, explicou o economista.
“No entanto”, prossegue, “o oposto foi o caso para os mercados de ações e títulos das principais economias. Os índices do mercado de ações dos Estados Unidos (junto com outros) encerraram 2020 em máximos históricos. Após o choque inicial da pandemia e os bloqueios subsequentes, quando os índices do mercado de ações dos EUA despencaram 40%, os mercados tiveram uma recuperação dramática, ultrapassando os níveis pré-pandêmicos”.
E ele dá a dica do porque isso aconteceu. “Foi a injeção de dinheiro de crédito nas economias. O Federal Reserve e outros grandes bancos injetaram enormes quantidades de dinheiro / crédito no sistema bancário e até mesmo diretamente nas corporações por meio da compra de títulos do governo dos bancos e títulos corporativos”.
“As taxas de juros desse crédito caíram para zero e, com os chamados ‘ativos seguros’, como os títulos do governo, as taxas de juros chegaram a ser negativas. Os compradores de títulos estavam pagando juros ao governo para comprar seu papel!”, explicou.
“Grande parte dessa generosidade de crédito não foi usada para manter os funcionários com salários e empregos ou para sustentar as operações corporativas. Em vez disso, os empréstimos têm sido usados como empréstimos muito baratos ou quase a custo zero para especular em ativos financeiros. O que é chamado de ‘margem de dívida’ mede quanto das compras no mercado de ações foram feitas por meio de empréstimos. O nível de dívida de margem mais recente subiu 7,7% mês a mês e atingiu uma alta recorde”, completou Michael Roberts.
SÉRGIO CRUZ
Ótima matéria!