CARLOS LOPES
(HP 30/05/2012)
[NOTA: o texto abaixo não é aquele que, em sua forma final, foi publicado na edição impressa da Hora do Povo; na verdade, é o seu rascunho, que reproduzimos, apesar de suas imperfeições e trechos repetidos, porque há nele algumas ideias importantes que não haviam, ainda, sido publicadas.]
O escritor cearense Lira Neto acaba de lançar o primeiro volume de sua biografia de Getúlio Vargas. Ainda não terminamos sua leitura, mas, por coincidência, preparávamos este artigo, em boa parte baseado na biografia que o autor dedicou a Castello Branco (Lira Neto, “Castello – A marcha para a ditadura”, Editora Contexto, 1ª edição, São Paulo, 2004).
O assunto – o primeiro presidente da ditadura – é mais do que atual, no momento em que a presidenta Dilma instala a “Comissão da Verdade”. Independente dos resultados ou da qualidade dessa comissão, realmente, o que interessa é a verdade – pois esta existe, ao contrário do que afirmam algumas teorias tão modernas quanto os demônios, fantasmas e duendes que assustavam os homens na Idade da Pedra.
Permita-nos o leitor algumas considerações iniciais sobre o debate atual. Já veremos como o livro de Lira Neto se relaciona com elas.
Há um motivo – provavelmente, decisivo – pelo qual os nossos atuais oficiais das Forças Armadas não têm porque se sentir constrangidos pela instalação da “Comissão da Verdade” e outras iniciativas correlatas do governo da presidenta Dilma. Simplesmente, eles não têm nada a ver com o golpe de 1964, e, muito menos, com o que veio depois. Não há razão para vincular-se a algo com que nada tiveram a ver. Mais que isso, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não podem ser culpadas pelo que alguns, escondendo-se sob a farda, fizeram há mais de 30 ou 40 anos. O Exército, com toda razão, jamais assumiu como seus os feitos do sinistro Carneiro da Fontoura, no governo Arthur Bernardes, apesar desse elemento portar um título de marechal. Por que teria de assumir os crimes de alguns outros elementos durante a ditadura?
Não estamos falando em rever a Lei de Anistia – não é essa a função da “Comissão da Verdade”, muito menos essa é a política da presidenta, nem é essa, como os leitores sabem, a nossa posição. Apesar de algumas opiniões – ao nosso ver equivocadas – favoráveis a essa revisão, ela não está em curso, nem foi projetada pelo governo. Portanto, o charivari de alguns em torno dessa questão é porque consideram que a pior punição é a verdade.
Talvez tenham razão, mas é melhor contentarem-se com a anistia judicial – até porque sepultar a verdade é uma tarefa inútil, e muito mais difícil do que esconder, por algum tempo, os mortos.
A questão reside em que, se houve crimes – e houve – eles são responsabilidade pessoal de quem os cometeu. Ninguém os obrigava a cometê-los: os que se desonraram com tais crimes foram minoria nas Forças Armadas – poder-se-ia dizer, com exatidão, minoria minúscula. Se há quem tente usar as Forças Armadas para fugir à sua responsabilidade pessoal, evidentemente não serão os nossos militares a dar respaldo a essa fuga covarde à responsabilidade própria. A coragem é parte intrínseca da profissão militar; quem não a tem, deveria ter escolhido outro ofício.
Portanto, que os responsáveis assumam os seus atos. A responsabilidade continua sendo pessoal em qualquer circunstância, mesmo em regimes piores que a ditadura de 1964. Desde Nuremberg, ninguém pode alegar que cometeu crimes porque recebeu ordens. Muito menos pode atribuir seus próprios malfeitos à instituição a que pertencia, ou seja, ao conjunto das Forças Armadas. Quanto a cometer crimes supostamente por uma causa que os justificaria, essa argumentação caiu em desuso depois que um criminoso japonês assim justificou o assassinato, que havia tramado e organizado, da imperatriz da Coreia.
Mas isso foi em 1895. No Japão, o Código de Processo Penal que permitia tal infâmia já foi revogado.
Apresentar o golpe de 1964, ou as torturas, prisões e assassinatos posteriores, como “atos patrióticos”, ressalta mais ainda a indignidade dessa fuga às próprias responsabilidades.
O EXÉRCITO
Quando a filha – Edna – lhe disse que seu neto, Nelson, estava sendo torturado, a reação do marechal Lott foi imediata:
– Meu Exército não faz isso.
O momento é registrado na página 419 de “O Soldado Absoluto”, magnífica biografia de Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, escrita por Wagner William (1ª edição: 2005, Editora Record).
O marechal Lott, essencialmente, tinha razão. Não foi o “seu” Exército, isto é, o Exército Brasileiro, o Exército de Caxias, o Exército que recusou-se a ser capitão do mato dos senhores de escravos, o Exército que proclamou a República, o Exército dos tenentes que se rebelaram contra a ditadura da oligarquia em 1922 e 1924 e estiveram com Getúlio na Revolução de 1930, que foi responsável pelo golpe de Estado de 1964 (a “quartelada de 1º de abril”, expressão cunhada por Carlos Heitor Cony, em seus artigos dos dias seguintes ao golpe, no “Correio da Manhã”) e pelo que veio depois.
Apesar disso, Nelson Lott foi barbaramente torturado (seu relato é reproduzido no mesmo livro) – e até por ser neto de quem era: “… nos primeiros dias, os torturadores queriam que Nelson confessasse que Lott, então com 75 anos, era um dos líderes dos movimentos da luta armada” (idem, pág. 432).
Evidentemente, ninguém acreditava nisso – era uma vingança mesquinha contra um homem que, como nenhum outro após a II Guerra Mundial, encarnava a trajetória patriótica e progressista das nossas Forças Armadas.
O mais importante, sobretudo, é: o que tem essa infâmia a ver com a História, a formação e o espírito de nosso Exército?
De nossa parte, não temos dúvidas: nada.
O BALANÇO
Em “Castello – A marcha para a ditadura”, Lira Neto reproduz trechos de um artigo publicado numa rede nacional de jornais no dia 15 de março de 1967, data em que terminou o primeiro governo da ditadura – isto é, quando Castello Branco passou a Presidência ao sucessor, Costa e Silva:
“O novo governo recebe o governo da mão de outro, que exauriu o mercado interno e pôs em fuga o externo, um governo que infligiu à sua gente os piores vexames sem contudo defender a moeda, cada vez mais aviltada. O saldo que se apresenta é este: ele [Castello Branco] … parte com sua turma de coveiros. O alto sexagenário poderá ficar resumido num singelo título, mais ou menos assim: administrador de cemitérios” (Lira Neto, op. cit., pág. 399).
O autor desse artigo é Assis Chateaubriand. Parecerá estranho a muitos leitores que um direitista entranhado, como Chateaubriand, que apoiou o golpe de Estado em 1964, fizesse esse julgamento – muito exato, ainda que não seja uma descrição completa das desgraças acontecidas.
Mas não foi o único. O “Correio da Manhã”, que até 1964 era o jornal mais importante do Rio de Janeiro, apoiara o golpe de Estado, inclusive com dois virulentos editoriais contra o presidente João Goulart que ficaram famosos, não somente pela virulência, mas porque acabaram por ser o epitáfio do próprio jornal (o primeiro, intitulado “Basta!”, na edição de 31 de março de 1964; o segundo, a 1º de abril, com o título “Fora!” – ao que se somou um terceiro, no dia 2 de abril, intitulado “Vitória!”).
Três anos depois, a 16 de março de 1967, o mesmo jornal assim comentou o discurso de Castello Branco no dia anterior, onde ele afirmava que “não quis nem usei o poder como instrumento do despotismo”:
“A frase, pronunciada enfaticamente pelo marechal Castello Branco, ao fazer suas despedidas, com o ministério presente, reflete a face hipócrita do governo que encarnou. (…) Seria excesso de inconsciência? Um lance de narcisismo? Seria, no entanto, perda de tempo diagnosticar o homem que deixa o governo sem deixar saudades.” (idem, ibidem)
Chateaubriand, apesar de todas as suas trampolinagens, era mais ligado ao país – vale dizer, à Nação – que o regime implantado pelo golpe de Estado. Por isso se refere à ditadura como um regime que “exauriu o mercado interno e pôs em fuga o externo, um governo que infligiu à sua gente os piores vexames sem contudo defender a moeda, cada vez mais aviltada”, ou seja, um governo que, a título de política econômica, conduziu uma guerra contra o país e seu povo.
O mesmo se pode dizer do “Correio da Manhã”, que fizera oposição a Getúlio Vargas, apoiara a candidatura da UDN em 1945 e 1950, o golpe lacerdista de 1954, e, até mesmo, a instalação de Eugênio Gudin no Ministério da Fazenda, após a morte de Getúlio (embora, é verdade, tenha apoiado Juscelino Kubitschek e a posse de Jango, em 1961). Mesmo com a morte de seu dono, Paulo Bittencourt, em 1963, e a sucessão na presidência do jornal por sua viúva, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, que não tinha exatamente a mesma posição política do marido, o jornal continuou reacionário – e, incidentalmente, golpista, ainda que de um golpismo algo ingênuo: por exemplo, no dia 3 de abril de 1964, em editorial, o jornal denunciava que a “polícia política de Lacerda” (sic) estava “prendendo e espancando como se estivéssemos em plena ditadura”. O que não o impediu de fazer um elogio rasgado a Castello Branco, identificando-o com o próprio Exército, apenas dois dias depois (v., a propósito, um trabalho acadêmico muito interessante, ainda que com título impreciso: Eduardo Zayat Chammas, “O Correio da Manhã no golpe de 1964: impasses e dilemas na relação com os militares”, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011).
Tanto Chateaubriand quanto o “Correio da Manhã” pagariam caro o apoio ao golpe de 1964: o primeiro teria a sua herança destroçada pela Globo e seu acordo com a Time Inc., sob os auspícios da ditadura. O segundo, ao se opor à ditadura, fechou as portas depois de um atentado terrorista, da invasão e interdição de sua sede, da cassação e prisão de sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, em 1969 (v. Glaucio Ary Dillon Soares, “Censura durante o regime autoritário”, XII Encontro Anual da Anpocs, Águas de São Pedro, outubro 1988).
[UMA NOTA: Samuel Wainer descreveu Niomar Bittencourt como uma “sinhazinha baiana”. Em parte, é verdade. No entanto, sua trajetória posterior ao golpe de 1964 mostra alguém mais inteligente do que sugere esse estereótipo escravagista. Ela, falecida em 2003 aos 87 anos, viveu tempo suficiente para arrepender-se dos editoriais de 1964.]
O saldo do governo Castello Branco foi a implantação de uma ditadura. O AI-5, no governo Costa e Silva, foi meramente a conclusão lógica dessa implantação.
Sob Castello, 116 homens públicos tiveram cassados os seus direitos políticos, 1.574 funcionários públicos foram demitidos, 526 pessoas foram aposentadas compulsoriamente e 165 oficiais das Forças Armadas foram reformados também compulsoriamente, inclusive 20 generais. Nada menos do que 814 sindicatos e 70% das confederações sindicais tiveram suas diretorias, eleitas pelos trabalhadores, afastadas. Além do fechamento e invasão do Congresso e da substituição da Constituição por um “Estatuto do Capital Estrangeiro” (nas palavras, escritas na época, do jurista Osny Duarte Pereira) que até os deputados e senadores que apoiavam o governo recusaram-se a assinar.
E para quê? Para assinar um ilegal “acordo de investimentos” com os EUA, para permitir a intervenção direta dos norte-americanos, que passaram a determinar quais as empresas brasileiras que receberiam empréstimos públicos, para aumentar as concordatas e falências em 70% e para rebaixar o salário real em 25% – tudo isso, em apenas três anos (Lira Neto, op. cit., pág. 400; Osny Duarte Pereira, “A Constituição do Brasil 1967”, Civilização Brasileira, 1967).
O ENTREGUISMO
Porém, mais sintético ainda sobre o caráter antinacional da ditadura foi um dos participantes mais notáveis do golpe, o oficial decisivo em São Paulo para virar a posição do comandante do II Exército, Amaury Kruel, até então um amigo – e compadre – de Jango, aliás, seu ex-ministro da Guerra.
Declarou várias vezes – inclusive a nós e, por exemplo, ao seu colega de farda Nelson Werneck Sodré – o general-de-exército Antonio Carlos de Andrada Serpa, membro do Alto Comando até 1980: “em 1964, nós seguramos a vaca para os americanos mamarem”.
Apesar da ilusão, na época, de sinceros oficiais, como o próprio Serpa, o golpe de 1964 nada teve de patriótico. O que poderia haver de patriótico em instalar um serviçal direto do capital monopolista norte-americano, Roberto Campos, como ditador da economia?
Naturalmente, o regime nem sempre foi o mesmo, nos seus 21 anos de existência. Houve também o período do presidente Geisel, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e outras medidas em favor do país.
Mas é forçoso reconhecer que este foi um período relativamente breve – e, como lembrou Euzébio Rocha, autor da lei 2.004, que instituiu o monopólio estatal do petróleo e fundou a Petrobrás, mesmo no governo Geisel:
“Em 9 de outubro de 1975, contrariando a Constituição e a legislação ordinária, autoritariamente, de forma clandestina, os contratos de risco [do petróleo] foram introduzidos no Brasil. (…) a decisão se deu em clima de supressão de liberdade de debate, pois a censura à imprensa proibia qualquer divulgação que contrariasse a decisão presidencial. Todas as entrevistas que dei foram censuradas. Não foram publicadas. (…) A decisão presidencial, anunciada pela televisão, afirmava que as empresas estrangeiras resolveriam o nosso problema de produção de petróleo através de um aporte significativo de capital e de novas tecnologias. As empresas referidas tiveram todas as facilidades. O Ministro Cals, por telex – que considerei o telex da vergonha nacional -, cumprindo ordem do presidente, determinou à Petrobrás (item 2 do telex): ‘Oferecer às empresas privadas a possibilidade de ter acesso a bacias inteiras, inclusive propiciando-lhes toda a informação geológica necessária, sobre a área total das bacias, para que possam ser escolhidos os blocos que interessam a cada empresa’. (…) 86,4% da nossa área sedimentar foram entregues às multinacionais, ficando a Petrobrás reduzida a 13,6%. Os 243 contratos firmados cobrem uma área de aproximadamente 1,5 milhão de quilômetros quadrados. Tal área corresponde às superfícies somadas dos estados do Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul e o Distrito Federal” (Euzébio Rocha, “Petrobrás: esse patrimônio é nosso” – livro publicado originalmente em capítulos pela Hora do Povo, em 1991 – grifos nossos).
Repare o leitor que isso aconteceu no mais nacionalista – isto é, patriótico – dos governos da ditadura. Não se trata de uma ironia. Foi mesmo o mais patriótico deles.
2
Os leitores mais jovens talvez indaguem por que Castello Branco merece tanta atenção ao avaliarmos o golpe de 1964 e a ditadura. Boa pergunta.
Porque sem Castello Branco é muito difícil pensar ou imaginar o sucesso do golpe e a instalação da ditadura. Entre os golpistas, não havia outro com a mesma frieza, ou com tanta influência sobre os colegas, ou com tanta capacidade de disfarce ou gosto pela intriga – ou com uma relação tão próxima aos EUA, mais exatamente, com a CIA, através de Vernon Walters, na época ostentando o cargo de “adido militar” da embaixada americana (o golpe no Brasil valeu a Walters a promoção a general – e sua nomeação para coordenar operações no Vietnã, que na época ainda parecia, digamos assim, um terreno promissor para agentes da CIA).
Além do relacionamento público entre os dois, Walters frequentava a casa de Castello, para usar um lugar-comum bastante caro aos golpistas, na calada da noite (Lira Neto, “Castello – A marcha para a ditadura”, Contexto, 1ª ed., S. Paulo, 2004, pág. 242).
Note o leitor que estamos falando de visitas clandestinas de um agente da CIA (depois, seu vice-diretor) a nada menos que alguém no posto de chefe do Estado-Maior do Exército Brasileiro. Vernon Walters, é verdade, fora tradutor do exército norte-americano durante a II Guerra, na campanha da Itália, quando conheceu Castello e outros oficiais brasileiros – mas nem por isso deixava, no início da década de 60, de ser o que era, e todos sabiam: um agente da CIA e um coronel do exército dos EUA. Um sujeito tão importante no establishment norte-americano que depois foi nomeado embaixador na Alemanha durante a anexação da parte oriental desse país.
As secretas visitas noturnas de Walters, evidentemente, não eram visitas para entreter um amigo: “em telegrama que enviaria logo depois a Washington o embaixador [dos EUA, Lincoln Gordon] garantiu que Castello apenas esperava um pretexto político para desferir o golpe” (idem, ibidem).
E, depois do golpe:
“Em seu primeiro dia de trabalho no Palácio do Planalto, Castello Branco resolveu discutir a delicada situação política nacional com o amigo norte-americano Vernon Walters” (idem, pág. 276 – grifo nosso).
A gentileza de convidá-lo para “discutir a delicada situação política nacional” no próprio dia da posse foi tanta que nem Walters esperava – foi pego desprevenido, pelo telefonema de Castello, ainda na cama. Provavelmente, o som do telefone deve ter assustado Snowball, seu gato de estimação no Brasil (Walters era um solteirão avesso às mulheres, exceto a própria mãe, mas adorava gatos – um de seus livros chama-se “The Cat from Ipanema”).
Se o leitor quiser se divertir com uma obra de humor involuntário, aconselhamos “Attaché Extraordinaire: Vernon A. Walters in Brazil”, de Frank Márcio de Oliveira, publicado pelo National Defense Intelligence College, de Washington, em 2009. Não há problemas para quem lê apenas em português: a edição é bilíngue. A única precaução é não levar muito a sério o livro. Assim, em vez de ficar com raiva, o leitor poderá dar algumas boas gargalhadas. Por exemplo:
“Em dada situação, Roberto Campos, então embaixador nos Estados Unidos, perguntou a Walters: ‘Walters, que história é essa de que você anda conspirando? O presidente [João Goulart] já me perguntou, pessoalmente, se você não deve ser mandado embora’. Ao que Walters respondeu:
‘Senhor embaixador, dou-lhe minha palavra de honra, como oficial do Exército dos Estados Unidos, que não há a mínima verdade em tudo isso. Conheço os brasileiros muito bem e sei como eles reagiriam se um estrangeiro tentasse interferir em seus problemas internos. Ademais, uma atitude como essa seria de todo contrária às instruções que recebi. O que faço é procurar manter-me informado da situação e do que pode acontecer, precisamente como o senhor, ou qualquer outro representante brasileiro. faz no país junto ao qual está acreditado.’
“Walters registrou que o embaixador acreditou em sua palavra e prometeu passá-la ao presidente Goulart” (“Attaché Extraordinaire: Vernon A. Walters in Brazil”, ed. cit., pág. 98).
Não é muito engraçado? Ou, senão, somente para alegrar mais um pouco o seu dia, leitor, essa citação das memórias de Walters, sobre suas conversas anteriores ao golpe de 1964:
“… [Castello Branco] ‘Nunca falou mal do Presidente Goulart, nem sequer discutiu comigo qualquer atitude que pudesse ter em mente. Minhas informações referentes a suas ações provinham de outras fontes’. Um dos poucos comentários a respeito de política interna que Castello Branco fez a Walters aconteceu no dia 13 de março de 1964. Walters estava na residência de Castello Branco assistindo pela televisão ao comício que Goulart realizava” (idem, pág. 120 – grifo nosso).
Não vamos reproduzir o comentário que Castello teria feito, segundo Walters, sobre o comício da Central do Brasil. Afinal, foi o único. O resto do tempo (quantos anos?) provavelmente Castello permanecia mudo – ou trocavam ideias sobre a intensa vida dos gatos.
***
Mas, voltemos ao papel de Castello Branco no golpe de 64 e na instalação da ditadura.
O Exército – e pode-se dizer o mesmo das outras Armas, enquanto conjunto – não estava a favor do golpe. Pelo contrário, garantira a posse do presidente Juscelino, impedindo um golpe a 11 de novembro de 1955, e, a rigor, isolara os golpistas que em 1961 tentaram impedir a posse de João Goulart. Oficiais como o marechal Machado Lopes, o general Osvino Ferreira Alves, e tantos outros, refletiam o espírito nacionalista e legalista das Forças Armadas.
Em 8 de janeiro de 1964, o diretor do Brazilian Issues Office do Departamento de Estado enviou um memorando, intitulado “A posição dos militares no Brasil”, ao secretário de Estado-Assistente para Assuntos Interamericanos, Thomas C. Mann, inteiramente baseado nas comunicações de Vernon Walters, onde é ressaltado:
“Nossa maior preocupação deve ser o fato de que os militares possam estar confusos e imobilizados pelas repetidas manobras políticas ardilosas e sutis de Goulart” (cf. U.S. State Department, Foreign Relations, 1964-1968, Vol. XXXI, document 181).
Isto é, a preocupação é com a oposição dos militares ao golpe. Em seguida, no mesmo memorando, o chefe do escritório de assuntos brasileiros do Departamento de Estado destacou, para chamar a atenção do secretário-assistente:
“Por essa razão e por conta das considerações colocadas acima, nossa posição é a de que o cultivo[cultivation]dos militares brasileiros tem alta importância política e que defendemos, por consequência, o programa dos C-130” (idem – grifo nosso).
A última parte se refere à venda de aviões ao Brasil para “cultivar” os militares.
O problema dos americanos, portanto, era como passar por cima do espírito predominante nas nossas Forças Armadas. Daí falar-se em “cultivo” dos militares – num memorando escrito apenas três meses antes do golpe.
No dia 26 de março, entretanto, o embaixador Lincoln Gordon comunicou ao Departamento de Estado o informe passado a ele por Vernon Walters:
“Em 20 de março, o chefe do Estado-Maior do Exército, general Castello Branco, enviou cartas aos generais e outros oficiais dos quartéis-generais e unidades subordinadas do Exército, analisando [a] situação atual [no] país e defendendo fortemente o tradicional papel do Exército como um não-partidário defensor das instituições democráticas. (…) [Castello Branco é] o mais enérgico, corajoso e responsável general do Exército na ativa. (…) recentemente [ele] concordou em liderar [um] grupo de resistência democrático entre os militares. Ele está assumindo essa liderança e lançando o seu próprio e muito considerável prestígio contra Goulart, em desafio direto ao último” (cf. U.S. State Department, Foreign Relations, 1964-1968, Vol. XXXI, doc. 186).
Vernon Walters, pelo visto, havia apostado no homem certo. Nas memórias de Lacerda há um trecho interessante, onde o general Ulhoa Cintra, enteado do ex-presidente Dutra, lhe diz: “O senhor nunca se esqueça que há pelo menos duas gerações de militares que aprenderam três coisas: topografia, cavalo sem estribo e Castello Branco. (…) Porque de capitão para cima ele foi professor de todos nós”.
Ulhoa Cintra exagerava – e tinha motivos: fora o contato de Castello com a “Operação Brother Sam”, o plano americano de intervenção no Brasil em 1964 (v. Carlos Fico, “O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo”, Civilização Brasileira, 2008).
Cintra foi, também, nos últimos dias de março de 1964, o contato de Castello com Vernon Walters, citado por este em longa mensagem a Washington, no dia 30 desse mês, em que detalha os planos para o golpe (planos que, na maior parte, não se realizaram).
Portanto, é natural que Ulhoa Cintra exagerasse a influência de Castello para justificar os seus próprios atos. Posteriormente, Hélio Fernandes contou uma versão diferente sobre essa conversa, na qual teria comparecido com Lacerda. Na época já em oposição feroz a Castello, teria ouvido do general: “Hélio, metade do Exército pensa do Castello exatamente o que você escreve diariamente. Mas você não terá o menor sucesso, ninguém vai fazer nada contra ele, quase todos foram alunos dele”.
Exageros à parte, é evidente que essa influência existia – e veremos mais à frente como foi construída.
Realmente, se não fosse Castello, quem poderia coesionar o golpismo, arrastar oficiais sinceros, ou, melhor, enganá-los, além dos civis, e colocar em defensiva alguns dos mais representativos oficiais das Forças Armadas?
O imperialismo precisava de alguém – e alguém nas Forças Armadas, porque o histérico Lacerda não era adequado, muito menos tinha tropas sob seu comando – que fizesse esse papel. Os telegramas que mencionamos, já desclassificados pelo governo dos EUA, são claros em como, após a chegada ao Brasil de Vernon Walters, seu amigo Castello Branco passou a ser a opção golpista, após todos os fracassos anteriores.
Castello tinha a vantagem de não parecer, para muitos, golpista. Juscelino, por exemplo, apesar de alertado por Lott e por Tancredo, só percebeu quem era Castello quando já era tarde. Se não fosse Castello, quem poderia ser?
Costa e Silva, por várias razões, evidentemente não tinha a menor chance – e nem tentou; pelo contrário, sua ascensão só aconteceu depois de realizado o golpe.
Falou-se muito em Golbery, por seu papel numa das ongs golpistas que os norte-americanos organizaram quando Jango assumiu a Presidência, o IPÊS. Mas Golbery, redator do “manifesto dos coronéis” em 1954 e do pronunciamento de 1961 contra a posse do presidente constitucional, João Goulart, após a renúncia de Jânio, estava afastado das Forças Armadas. Sem Castello, sua influência iria, no máximo, até alguns oficiais daquela que, na época, era conhecida por “Sorbonne” – a hoje muito mais arejada (até o autor destas linhas já foi seu aluno) Escola Superior de Guerra.
Quanto a Juarez Távora, que tinha como credencial o seu passado revolucionário, isto é, “tenentista”, talvez até por isso, não era um homem suficientemente disposto a passar por cima de todos os limites – e estava na reserva desde 1956, após a revelação, através de documentos lidos no Congresso, de que, como ministro do governo Café Filho, favorecera os EUA no acordo nuclear do Brasil com aquele país.
Mais ou menos o mesmo se pode dizer dos outros dois remanescentes mais famosos das revoltas tenentistas (o quarto, Luís Carlos Prestes, estava, evidentemente, fora de questão): é bem conhecida a frase de Cordeiro de Farias – cujo desastroso governo em Pernambuco (1955-1958) era um fardo em seu currículo governamental – quando a reação tentava impedir a posse de Juscelino: “Não sou o que vulgarmente se denominaria hoje um golpista, mas também não sou um antigolpista. Sou talvez um realista”. Dificilmente ele poderia ser o ponto de coesão em 1964. No máximo seria, como foi, um personagem secundário, ainda que importante. O que fala a seu favor, não contra.
Em relação a Eduardo Gomes, um dos “18 do Forte de Copacabana” de 1922, talvez isso seja ainda mais nítido.
Apesar de duas vezes candidato a presidente pela UDN e apesar de, como ministro da Aeronáutica do governo Castello Branco, ter sido defensor do AI-2, que extinguiu os partidos políticos, é bastante eloquente a sua ação no caso Para-Sar, a tentativa do notório Burnier – o mesmo que tentou o golpe de Aragarças, em dezembro de 1959, contra Juscelino – de usar uma unidade de elite da Aeronáutica em atos terroristas, sequestros e assassinatos políticos, denunciada por um dos oficiais, o corajoso capitão Sérgio Miranda de Carvalho.
Especialmente significativa é a carta de Eduardo Gomes, em 1974, ao presidente Geisel, em que definiu Burnier como “um insano mental inspirado por instintos perversos e sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista” que queria transformar o Para-Sar num “esquadrão da morte (…) instrumento de política assassina, inimiga da democracia, da fraternidade cristã e da dignidade humana”.
Além disso, tanto Cordeiro de Farias como Eduardo Gomes estavam já na reserva em 1964.
***
Certamente, a ditadura foi um produto de determinadas relações econômicas e sociais – uma consequência do processo de desnacionalização e monopolização da economia, empreendido sob a égide da Instrução nº 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC, a antecessora do Banco Central) – uma invenção dos entreguistas Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões, no governo Café Filho -, que permitia a entrada como investimento estrangeiro no país, sem cobertura cambial, das máquinas usadas que os monopólios multinacionais estavam, em suas matrizes, substituindo por outras com tecnologia mais moderna.
O resultado desse processo foi, a partir da segunda metade de 1954, e sobretudo nos cinco anos seguintes, a monopolização precoce da economia, a concentração da renda, a queda do salário real, a perda de peso na economia (e no setor industrial) da fabricação de bens de consumo de massa.
Do ponto de vista político, o aumento de peso das multinacionais e especialmente do capital monopolista norte-americano na economia significou, também, o aumento de peso de uma parcela política interna antinacional, servil, reacionária, que fora derrotada antes em todas as eleições presidenciais até Jânio Quadros. Sua principal representação partidária era a UDN, da qual Castello Branco era eleitor, com especial admiração pela sua figura mais golpista e sem escrúpulos, Carlos Lacerda. Nos arquivos de Castello, informa Lira Neto que encontrou um recorte do conhecido artigo de Lacerda de 1º de junho (por um descuido, o livro menciona “julho”) de 1950, com a frase infamante sublinhada por lápis vermelho: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Ressaltemos que isso foi 14 anos antes do golpe de 1964.
Mas, voltemos às condições socioeconômicas que propiciaram o golpe.
A luta do governo João Goulart – que, devido à tentativa de golpe após a renúncia de Jânio Quadros, só teve seus poderes constitucionais plenamente restabelecidos em 1963 – era, exatamente, para colocar outra vez a economia nos trilhos construídos por Getúlio Vargas. Não era uma tarefa nada fácil, com a expansão que o capital monopolista externo tivera, dentro do país, nos oito anos anteriores. Uma das medidas de Jango foi, exatamente, a revogação da Instrução nº 113. Como descreve, com precisão, um documento político dos nossos tempos:
“Para retomar a expansão do mercado interno e reorientar o processo de industrialização, o governo Goulart criou o 13º salário (1962), estendeu os direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais (1963), anunciou o envio ao Congresso de mensagem presidencial pedindo a emenda do artigo 141 § 16 da Constituição que bloqueava o desenvolvimento da Reforma Agrária ao estabelecer indenização prévia e em dinheiro para desapropriações de terra (1964). Revogou a Instrução 113 e baixou a Instrução 242 (1963), que proibia o financiamento externo para importação de máquinas e equipamentos que a indústria nacional estivesse em condições de produzir. Regulamentou a lei da remessa de lucros (1964), fixando o limite anual em 10% do capital efetivamente trazido de fora, excluídos os reinvestimentos dos lucros obtidos no país. Pôs em funcionamento a Eletrobrás (1962), sancionou a lei que instituía o Conselho Nacional de Telecomunicações (1962) – as necessidades do setor eram atendidas basicamente por subsidiárias da ITT e de uma sobrevivente canadense do império Farquhar, que prestavam péssimo serviço no Brasil. Estabeleceu o controle sobre as importações de matérias-primas pela indústria farmacêutica e assinou decreto para expandir a indústria química de base, mediante incentivos aos laboratórios nacionais, sob a direção do Grupo Executivo da Indústria Farmacêutica, criado em 1963. Constava ainda do programa que viria a ser conhecido como Reformas de Base a reforma do ensino, cujas principais metas eram a erradicação do analfabetismo, ampliação e modernização das universidades públicas; a distribuição mais equilibrada da carga tributária; o direito de voto aos analfabetos e militares de baixa patente; e uma reforma urbana que fechasse caminho à especulação imobiliária” (Programa do Partido Pátria Livre – PPL – 21/04/2009).
O golpe de Estado era contra isso.
Do ponto de vista do imperialismo, além do problema de encontrar alguém que coesionasse minimamente o golpismo e, ao mesmo tempo, apresentasse uma fachada política “democrática” para a sociedade – é verdade que esta não durou muito tempo – havia outro: encontrar alguém que fosse suficientemente servil.
Devemos convir que, em qualquer época da nossa História, não foram muitos os presidentes que mudaram a lei para entregar abundantes recursos naturais do país a uma multinacional específica, como foi o caso da devolução à norte-americana Hanna Mining Company das jazidas de minério de ferro no Vale do Paraopeba, que Jango havia nacionalizado, até porque a exploração era manifestamente ilegal.
Para beneficiar a Hanna, Castello mudou o próprio Código de Minas do país. Foi, aliás, uma das suas primeiras medidas. Entre os diretores da Hanna estavam os seus dois principais ministros: Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões.
Um caso tão escandaloso que o governador Magalhães Pinto – golpista de primeira hora, e, ainda mais, udenista e banqueiro – protestou em carta ao próprio Castello: “Em uma palavra, um grupo estrangeiro se apropriou das riquezas minerais brasileiras e de Minas Gerais, sem nada pagar”.
Resposta de Castello Branco:
“Parece-me, senhor governador, que o meio certo pelo qual o povo mineiro obterá o nível industrial pelo qual tão legitimamente anseia e que, pela informação que tenho, vem valentemente perseguindo, é precisamente abrir à livre iniciativa a exploração intensiva e extensiva de suas receitas potenciais para financiar as indústrias de transformação” (Lira Neto, op. cit., pág. 308).
Castello tinha acabado de entregar as “receitas potenciais” de Minas a um monopólio estrangeiro – e ainda falava em “livre iniciativa”.
3
Certamente, a ditadura foi um produto de determinadas relações econômicas e sociais – pois é isso o que significa dizer que foi um resultado da ação dos homens da época.
Que relações econômicas e sociais foram essas?
A pergunta é ainda mais pertinente porque as tentativas anteriores de golpe de Estado, depois de 1945, fracassaram, e estrondosamente, ainda que tenham levado ao martírio do presidente Getúlio Vargas em 1954.
Portanto, será que algo mudou nos 10 anos posteriores? Ou o golpe de Estado de 1964 se estabeleceu, ao contrário de tentativas anteriores, apenas devido a fatores fortuitos, incidentais ou acidentais?
Ainda que a correlação entre economia e política não seja mecânica – mas existe e não pode ser ignorada, sob pena de abandonarmos qualquer explicação racional dos eventos históricos – o golpe de 64 emerge do acelerado processo de estrangeirização (permita o leitor esta palavra, a nosso ver mais exata que “desnacionalização” ou “internacionalização”) da economia, sob a égide da Instrução nº 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC, a antecessora do Banco Central), de 17/01/1955, uma invenção dos entreguistas Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões, no governo Café Filho, que permitia, sem cobertura cambial, a entrada como investimento direto estrangeiro no país das máquinas usadas que os monopólios multinacionais estavam, em suas matrizes, substituindo por outras com tecnologia mais moderna.
A mesma Instrução determinava uma taxa de câmbio especial para as remessas de lucros das empresas estrangeiras – obviamente, a favor destas: “… equipamentos e máquinas importados via Instrução 113 eram contabilizados no ativo das empresas importadoras como investimento, numa taxa de câmbio livre, enquanto que a remessa de lucros e amortizáveis que as empresas faziam era feita com base numa taxa de câmbio preferencial, portanto havia um diferencial cambial que favorecia este tipo de investimento” (cf. Ana Claudia Caputo e Hildete Pereira de Melo, “A industrialização brasileira nos anos 1950: uma análise da Instrução 113 da SUMOC”, TD 232, UFF, março/2008, pág. 5).
[NOTA: Como o nosso objetivo é fornecer aos leitores o máximo de subsídios sobre as questões que estamos abordando, ressaltamos a importância de um conhecimento sobre o legado que Gudin e Bulhões queriam destruir – a política econômica do governo Getúlio. Além das obras mais correntes, recomendamos, pela riqueza de dados – ainda que certas afirmações nos pareçam mais parti pris do que conclusões – um interessante texto: Maria Antonieta P. Leopoldi, “O difícil caminho do meio: Estado, burguesia e industrialização no segundo governo Vargas (1951-54)”, in Ângela de Castro Gomes (org.), “Vargas e a crise dos anos 50”, Relume-Dumará, Rio, 1994, págs. 161-203).]
RENÚNCIA
Octávio Gouveia de Bulhões, que no governo Café Filho estava à frente da SUMOC, foi o ministro da Fazenda do governo Castello Branco, isto é, do primeiro governo da ditadura.
Em 1955, a engenhosa invenção dele e de Gudin – é pouco provável que a ideia tenha sido original, a julgar por suas outras ideias, sempre antes “formuladas em inglês” – significou, como vários autores já destacaram, do ponto de vista dos monopólios norte-americanos e europeus, ao dar sobrevida a seu “capital constante” (as máquinas velhas remetidas ao Brasil), uma proliferação de superlucros sem nenhum investimento (exceto o frete para transportar as máquinas e os gastos de instalação em sua nova residência).
O resultado desse processo, através do que, se não fosse a Instrução nº 113 da SUMOC, estaria destinado aos depósitos norte-americanos e europeus de sucata, foi o aumento do peso relativo do setor externo dentro do país – a transformação da montagem de bens de consumo duráveis por multinacionais no principal setor industrial interno.
Por consequência, desencadeou-se a monopolização precoce da economia (as multinacionais são grupos e empresas estrangeiras monopolistas), aumentou a concentração da renda (a tendência do monopólio é extrair superlucros explorando uma faixa estreita e mais privilegiada do mercado interno), o salário real entrou em queda (filiais de empresas estrangeiras, por ter que remeter lucros para a matriz e não dependerem do conjunto do mercado, sempre jogam para baixo o salário real), a perda de peso na economia – e no setor industrial – da fabricação de bens de consumo de massa.
Evidentemente, esse processo econômico teve efeitos políticos: o aumento de peso das multinacionais na economia, especialmente do capital monopolista norte-americano, significou, também, o aumento de peso, na vida política e na mídia, de uma parcela antinacional, servil, reacionária, que fora derrotada antes em todas as eleições presidenciais até Jânio Quadros. A política, já dizia alguém, é a economia concentrada – até porque, para a reação, mais dinheiro e mais peso político são praticamente a mesma coisa.
Afonso Arinos, numa de suas poucas frases notáveis, declarou depois que “Jânio no governo foi a UDN de porre”. Arinos devia saber do que falava: além de fundador e líder da UDN, foi um dos articuladores da candidatura de Quadros, seu ministro das Relações Exteriores – e, seis anos após a renúncia, já sob a ditadura, co-autor, com Jânio, de um alentado compêndio em seis volumes sobre a História do Brasil, felizmente esquecido quase desde o dia seguinte ao lançamento.
Mas o interessante na frase de Arinos é que, apesar da política externa que causava arrepios em Lacerda et caterva, ele reafirma o conteúdo udenista do breve governo Jânio Quadros, apesar da relativização imposta, segundo ele, pelo consumo de materiais etílicos. Certamente, além do aspecto folclórico de Jânio, em si uma caricatura do udenismo, este se expressava, no essencial, na política econômica restritiva.
Entretanto, o fato dessa política reacionária não ter-se sustentado no poder, caindo depois de apenas sete meses, consumida por suas contradições com o lado “popular” do janismo, é bastante significativo da luta política que tomava o país. Era inviável submeter o Brasil a uma política econômica antinacional por meios democráticos – mesmo para um presidente que obteve 48% dos votos, numa eleição em que a UDN, turbinada por dinheiro externo, conseguiu vencer seis das 11 eleições estaduais (na época, as eleições para governador não eram simultâneas em todo o país).
Nesse sentido, a renúncia foi, talvez, o ato de maior grandeza da trajetória política de Jânio – não por acaso lhe valeu a cassação pela ditadura (“… esse é meu. Faço questão de cassá-lo. Foi a renúncia dele que provocou toda essa bagunça no país” – a declaração, de Costa e Silva, é registrada por Lira Neto em “Castello – A marcha para a ditadura”, pág. 265).
LUTA
A principal representação partidária dessa parcela antinacional, antipopular, portanto, antidemocrática que existia no país era, realmente, a UDN – da qual Castello Branco era eleitor, com especial admiração pela sua figura mais escandalosamente golpista, Carlos Lacerda. Nos arquivos de Castello, informa Lira Neto que encontrou um recorte do infame artigo de Lacerda, a 1º de junho de 1950 (por um descuido, o livro menciona “julho”), com o trecho sublinhado por lápis vermelho: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Ressaltemos que isso foi 14 anos antes do golpe de 1964.
Mas, voltemos às condições socioeconômicas que propiciaram o golpe.
A luta do governo João Goulart – que, devido à tentativa de golpe após a renúncia de Jânio Quadros, teve seus poderes constitucionais plenamente restabelecidos somente em 1963 – era para colocar outra vez a economia nos trilhos construídos por Getúlio Vargas. Não era uma tarefa fácil, com a expansão que o capital monopolista externo tivera, dentro do país, nos oito anos anteriores. Uma das medidas de jango foi, exatamente, a revogação da Instrução nº 113 da SUMOC. Como descreve, com precisão, um documento político dos nossos tempos:
“Para retomar a expansão do mercado interno e reorientar o processo de industrialização, o governo Goulart criou o 13º salário (1962), estendeu os direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais (1963), anunciou o envio ao Congresso de mensagem presidencial pedindo a emenda do artigo 141 § 16 da Constituição que bloqueava o desenvolvimento da Reforma Agrária ao estabelecer indenização prévia e em dinheiro para desapropriações de terra (1964). Revogou a Instrução 113 e baixou a Instrução 242 (1963), que proibia o financiamento externo para importação de máquinas e equipamentos que a indústria nacional estivesse em condições de produzir. Regulamentou a lei da remessa de lucros (1964), fixando o limite anual em 10% do capital efetivamente trazido de fora, excluídos os reinvestimentos dos lucros obtidos no país. Pôs em funcionamento a Eletrobrás (1962), sancionou a lei que instituía o Conselho Nacional de Telecomunicações (1962) – as necessidades do setor eram atendidas basicamente por subsidiárias da ITT e de uma sobrevivente canadense do império Farquhar, que prestavam péssimo serviço no Brasil. Estabeleceu o controle sobre as importações de matérias-primas pela indústria farmacêutica e assinou decreto para expandir a indústria química de base, mediante incentivos aos laboratórios nacionais, sob a direção do Grupo Executivo da Indústria Farmacêutica, criado em 1963. Constava ainda do programa que viria a ser conhecido como Reformas de Base a reforma do ensino, cujas principais metas eram a erradicação do analfabetismo, ampliação e modernização das universidades públicas; a distribuição mais equilibrada da carga tributária; o direito de voto aos analfabetos e militares de baixa patente; e uma reforma urbana que fechasse caminho à especulação imobiliária” (Programa do Partido Pátria Livre – PPL – 21/04/2009).
O golpe de Estado era contra isso.
Posteriormente, Lacerda diria que “não fizemos a revolução para o sr. Roberto Campos entregar a indústria nacional a grupos estrangeiros”. Ele sabia, até porque foi o mais aberto defensor dessa entrega antes de 1964, que era exatamente para isso que foi perpetrado o golpe de Estado. Opunha-se, tão-somente, a que o entregador fosse Roberto Campos ou Castello. No entanto, suas pretensões à Presidência haviam acabado, cortadas pelo próprio golpe que tramara durante 20 anos. Durou pouco sua euforia pela cassação do oponente, nas eleições previstas para 1965, Juscelino Kubitschek. Não apenas a eleição presidencial foi cancelada: também a UDN seria fechada, por inútil – durou 18 meses após o golpe que apoiara com tanta e tão ressentida alegria.
TEMPESTADE
Evidentemente, não basta que existam as condições, ou as relações sociais e econômicas que permitam um acontecimento, para que ele ocorra. É necessário, também, que existam os indivíduos capazes de consumá-lo. Não é indiferente, para o seu sucesso, quais as pessoas que tentam alcançar determinado objetivo político.
Sempre se pode dizer, de forma geral, que a dinâmica social cria as pessoas adequadas aos acontecimentos. É verdade, mas isso é o mesmo que dizer que a História é feita pelos homens que estão vivos em um determinado momento – o que é óbvio (embora, nem tanto, a julgar por certos livros didáticos que subestimam estupidamente a história política, a história dos homens concretos e sua participação nos acontecimentos, tornando um tormento a vida dos estudantes).
O problema é como essa “dinâmica social” cria, em determinado momento ou em determinado caso, as “pessoas adequadas”.
O general e historiador Nelson Werneck Sodré, um dos perseguidos após 1964 – apesar de suas relações pacíficas com Castello, que, quando diretor de ensino da Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME) foi chefe do historiador – referiu-se ao que se desatou naquele ano e nos seguintes como “a fúria de Calibã”, uma referência ao disforme personagem de Shakespeare em “A Tempestade”, ao mesmo tempo um escravo e um monstro sem limites próprios em sua selvageria (v. Nelson Werneck Sodré, “Memórias de um Soldado”, Civilização Brasileira, 1967 – um dos livros mais essenciais já escritos sobre o Brasil; e, também, do mesmo autor, “A Fúria de Calibã – memórias do golpe de 64”, Bertrand, 1994).
Para Calibã, jamais o problema são os seus próprios atos, nem mesmo quando tenta estuprar Miranda, a bela filha de Próspero (“O ho, O ho! Queria tê-lo feito/ mas tu me impediste; teria povoado/ esta ilha com Calibãs”, diz ele a Próspero, quando este lhe recorda que foi com esse infame ato que retribuiu o modo gentil com que foi tratado); todos os atos de Calibã, por mais monstruosos que sejam, se justificam, em sua cabeça deformada, pela suposta injustiça dos outros em relação a si. No entanto, essa injustiça consiste sempre em não se submeter a ele – e de forma absoluta. Logo, somente como escravo sua própria existência é viável.
Essa alusão do general Nelson Werneck Sodré é pertinente. Vejamos o seguinte trecho:
“… Juscelino era alvo de um massacre psicológico. O ex-presidente da República foi submetido a uma série interminável de interrogatórios, maratonas de depoimentos que chegavam a demorar dez horas seguidas. Sentado em um pequeno banquinho sem encosto, era obrigado a ouvir repetidamente gravações dos próprios discursos da campanha presidencial de 1955. O inquisidor (…) tentava arrancar confissões de desvio de dinheiro público e de supostas ligações com líderes comunistas. Indignado, o advogado Sobral Pinto decidiu enviar um telegrama a Castello Branco, exigindo para JK tratamento mais adequado a um ex-chefe de Estado:
‘Atos desrespeitosos que atingem presentemente o sr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, antes de ferirem a sua pessoa desprestigiam o cargo por ele exercido. Não pode V. Ex.ª esquecer ter sido eleito pelo Congresso Nacional, com a colaboração leal e sincera do chefe incontestável do PSD, seu antecessor na chefia do Estado brasileiro. A roda da fortuna é caprichosa. Amanhã V. Ex.ª poderá sofrer atentados e desrespeitos iguais ao que está sofrendo, neste instante, o criador de Brasília.’
“Castello ordenou que Luís Viana Filho respondesse a Sobral. ‘Quanto aos caprichos da roda da fortuna, que todos sabem versátil, o senhor presidente da República, além de submeter-se à sua proverbial fiscalização, pede sempre a Deus que o ajude a não roubar o povo nem trair a segurança da nação’, rebateu o texto com papel timbrado do Palácio do Planalto.
“Juscelino continuaria a responder interrogatórios diários” (Lira Neto, loc. cit., págs. 341/342).
Certamente, é dispensável frisar que Juscelino era um ex-presidente da República – e um dos mais populares da História do país. Que, como presidente da República, anistiara golpistas que agora estavam no poder. Ou que ele, como senador, em momento não muito brilhante, votara em Castello Branco para presidente, acreditando que, depois do golpe, era o mal menor – e acreditando nas palavras do próprio Castello.
Menos conhecido é que Juscelino, quando presidente, oferecera a presidência da Petrobrás a Castello Branco – e que este devia a Juscelino sua promoção a general-de-divisão, contra a opinião, que mostrou-se bem consistente, de seu ministro da Guerra, o então general Lott, que considerava Castello, seu ex-aluno quando instrutor da Escola Militar de Realengo, um homem dissimulado.
Quanto a Sobral Pinto, além de um humanista incapaz de transigir com ladrões do povo ou traidores da Pátria, era um honesto e notório anticomunista (o autor destas linhas sabe disso não apenas por conhecimento indireto, mas por experiência própria, quando, em 1977, foi convidá-lo para um ciclo de debates, promovido por estudantes, na Associação Brasileira de Imprensa…).
Mas nada disso fez com que Juscelino recebesse algum respeito de seus interrogadores. As “investigações” não apuraram nada contra ele. No entanto, Castello imputou a um ex-presidente da República, sem nenhuma prova, sem nenhuma condenação judicial, atos como “roubar o povo” e “trair a segurança da nação”. Os inquisidores ficavam mais raivosos porque suas próprias calúnias – segundo as quais o patrimônio de Juscelino, um homem de origem pobre, ascendera à “sétima fortuna do mundo” – eram apenas calúnias. Portanto, queriam que Juscelino as transformasse em verdade… (sobre a campanha de difamação contra Juscelino, v. Sebastião Nery, “Grandes Pecados da Imprensa”, Geração Ed., S. Paulo, 2000, pág. 89).
Se JK, ex-presidente – e senador que votou em Castello – foi cassado e submetido a esse tratamento, pode-se imaginar o que acontecia com outros.
FORÇAS
Há alguns anos, com a intenção de concluir um resumo sobre a História do Brasil, consultamos alguns textos de Hélio Silva sobre Castello Branco e seu governo. Nenhum deles era escrito contra Castello. Mas era evidente, ainda que o autor não tivesse como objetivo expor esse aspecto, a duplicidade do personagem.
Peculiarmente, os próprios colegas de farda – não os nacionalistas que se opuseram a ele, mas os que estiveram no golpe de 64, até mesmo um seguidor do próprio Castello – mostraram esse lado da sua personalidade. Às vezes implicitamente, por exemplo, o general Carlos Luís Guedes, comandante da ID-4 (Infantaria Divisionária da 4ª Região Militar), sediada em Belo Horizonte, que marchou sobre o Rio de Janeiro no dia 1º de abril de 1964:
“Todos os seus atos, sua pretensa autossuficiência a todo instante ostentada, traduzem um sinal característico. (…) A frustração permanente o transformaria no que veio realmente a ser: um poço de complexos” (Carlos Luís Guedes, “Tinha Que Ser Minas”, cit. in Lira Neto, loc. cit., pág. 78).
Poderia ser meramente o efeito de uma rivalidade, que, aliás, é evidente. Porém, na mesma página, há uma descrição de um seguidor do próprio Castello, o general Octávio Costa:
“[Castello Branco era] um homem ouriçado, álgido, um pouco vingativo”.
A palavra “álgido”, isto é, gélido, é a mesma usada, também em relação a Castello, por outro general, Nelson Werneck Sodré – este completamente oposto a Castello Branco, mas sem problemas pessoais com ele – para descrever sua atitude quando cumprimentou-o no Clube Militar.
Hélio Silva observa que “Castello Branco não se deixou envolver (…) em 22, 24, 30, 32, 35, 37, 38. Nem em 45, onde tão propalada foi a influência dos oficiais da FEB no golpe que depôs Getúlio Vargas”.
Publicamente, desde a década de 30, Castello era um defensor do apoliticismo nas Forças Armadas. Um apoliticismo bem conveniente, pois somente se manifestava contra tendências políticas progressistas entre seus companheiros de armas. Jamais contra ideias reacionárias – em especial, a “relação preferencial e automática com os EUA”. O anticomunismo algo alucinado era uma consequência dessa última opção, não o inverso.
Nisso ele se distinguia do outro oficial superior do Exército que não tinha participado dos acontecimentos mencionados por Hélio Silva: o futuro marechal Lott. Este, apesar da sua conduta estritamente profissional enquanto permaneceu na ativa, desde cedo tinha como referencial o Brasil. Por exemplo, na década de 30, quando em missão para equipar o Exército, Lott, então na Europa, escreveu: “Decididamente, vou voltar para o Brasil jacobino, tudo hei de fazer que estiver em minhas fracas possibilidades para tornar o nosso Brasil mais forte, porque esses idiotas daqui confundem poderio militar com civilização” (Lott, carta à sua mãe, 07/02/1937, cit. in Wagner William, “O Soldado Absoluto”, 1ª ed., Ed. Record, 2005, pág. 38).
A irritação que desde cedo permeou as relações entre Lott e Castello, portanto, não era uma questão, fundamentalmente, de quem tirava as melhores notas (essa competição, definitivamente, Lott venceu), embora muitas vezes assim tenha se expressado.
O suposto apoliticismo de Castello pode ser melhor explicitado no seguinte episódio: a 14 de janeiro de 1963, então comandando o IV Exército (Nordeste), Castello, em visita à Bahia, disse à imprensa: “… a infiltração comunista é facilitada pela colocação de propagadores do comunismo em postos da administração, do ensino e de organismos estatais”.
Essa declaração, festejada rumorosamente pelos jornais reacionários de todo o país, era, em primeiro lugar, rigorosamente mentirosa (apesar dos comunistas serem cidadãos e membros da espécie humana – portanto, com os mesmos direitos que os outros – que comunista foi colocado pelo governo Goulart em algum “posto da administração, do ensino e de organismos estatais”?).
Além disso, era um ataque contra o governo eleito, constitucional, que elevara Castello ao posto de general-de-exército para que ocupasse um dos cargos de maior responsabilidade do país.
O então ministro da Guerra, general Amaury Kruel, fora, na juventude de ambos, o único amigo de Castello no Exército – embora estivesse rompido com ele desde a primeiro e mal sucedida tentativa da FEB de tomar Monte Castello, na campanha da Itália, porque o então chefe da seção de operações do Estado-Maior, tenente-coronel Castello Branco, passara por cima da seção de inteligência, comandada por Kruel, e, depois, enviara um telegrama literalmente falso ao Brasil sobre os acontecimentos (Lira Neto, loc. cit, págs. 125-137 – notar, especialmente, o comentário de Castello ao comandante da FEB, general Mascarenhas de Moraes, sobre Kruel, antes do rompimento entre os dois: “General, conheço Kruel desde menino. Não era à toa o apelido dele no Colégio Militar: ‘Alemão’. Na família Kruel, em casa, todos falavam entre si a mesma língua de Hitler. Até o cachorro deles era germanófilo. Criavam um pastor alemão…”).
Em 1963, o ministro da Guerra, evidentemente, interpelou seu ex-amigo sobre a declaração aos jornais. Castello respondeu: “generais e sargentos têm falado. Em verdade, as entrevistas, telegramas e discursos têm sido feitos para aplaudir o governo. Por uma questão de moral política, a faculdade consentida não pode ficar restrita àqueles pronunciamentos favoráveis. (…) Senão seria uma iniquidade flagrante, uma discriminação antidemocrática, a prática de um totalitarismo” (op. cit., pág. 203).
Como se, para o comandante de um dos maiores contingentes militares do país, fosse a mesma coisa falar em defesa ou contra um governo eleito e constitucional…
O governo Jango não usou o poder (e o Direito) contra Castello. Nomeou-o chefe de Estado-Maior do Exército. Não por fraqueza, mas porque Castello, apesar de suas declarações, apresentava-se – e assim era acreditado – como um legalista.
CAMARADA
Castello Branco, derrotado na eleição para a presidência do Clube Militar, em 1958, acusou Lott, ministro da Guerra, de interferir no pleito, inclusive de “represálias” e da instalação de “olheiros” que teriam anotado os oficiais que apoiavam sua chapa, para depois persegui-los.
Lott interpelou-o por escrito e pediu provas. Resposta de Castello:
“Certeza, não tenho, pois não houve, para mim, naquele momento, a evidência do fato. Mas estou num ato legítimo de pensamento, que entrevê apenas o possível, no estado da dúvida” (Lira Neto, loc. cit., pág. 185).
Não deixa de ser impressionante essa facilidade para tratar como verdade o que, no mínimo, ele não sabia se era verdade ou não (na realidade, era mentira) – e ainda considerar essa desinibição no trato com a mentira, um “ato legítimo de pensamento”, apesar de não ser um pensamento, mas uma declaração para o “Jornal do Brasil” (ed. 23/05/1958).
Em suma, Castello estava “testando hipóteses” – já se sabe agora de onde o lastimável Ali Kamel tirou a sua técnica jornalística. Bem que achávamos que o Kamel devia ter copiado isso de algum lugar.
Esse é o lado hipócrita de Castello – mas nisso ele não se distinguia de alguns outros udenistas, não todos, mas os piores.
Algo um pouco diferente é a duplicidade, que se tornou ainda mais rotineira no trato com o substituto de Kruel no Ministério da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro. Nesse período, Castello tinha sempre duas versões do mesmo documento: uma que vazava para a imprensa, açulando o golpismo, e outra que, junto com a anterior, só era entregue ao ministro. A última era escrita em tom completamente diferente da outra.
Por exemplo, a 4 de outubro de 1963, um ataque ao governo – este vazado para a imprensa – foi entregue ao ministro com o seguinte bilhete:
“Meu caro Jair. Eu lhe peço dois obséquios: um, o de ver na carta anexa a colaboração de quem, servindo ao Exército, está também procurando servir a você; o outro, de que saiba que a escrevi possuído do mais alto apreço que devo à pessoa do ministro e a um amigo de 45 anos” (idem, pág. 220).
No dia 20 de março de 1964 – portanto, 11 dias antes do golpe – outro ataque, também vazado para a imprensa, foi acompanhado, privadamente, por outro bilhete ao ministro da Guerra:
“Não se trata de um papel para lançar confusão, nem buscar solidariedade ou estabelecer polêmica, apenas mostrar a gravidade que rodeia a conduta militar e para esclarecer subordinados. Aceite um abraço de seu velho camarada e amigo, Humberto Castello Branco” (loc. cit., pág. 240).
O general Jair Dantas Ribeiro estaria na primeira lista de cassados por 10 anos, depois do golpe de 1964, afastado sumariamente do Exército ao qual serviu com lealdade por 46 anos.
FACE
Enquanto Castello exibia uma fachada legalista, escrevia, por exemplo:
“Cresce a convicção de que se deve reagir ativamente, com iniciativa, no caso do sempre desejado golpe estatal” (carta de 20/02/1964 ao coronel H. Ibiapina, cit. in Lira Neto, op. cit., pág. 228 – grifo nosso).
Castello está, supomos, se referindo a um golpe que Jango estaria preparando. Mas por que esse golpe, se existisse, seria “sempre desejado”? Porque não era Jango que estava preparando um golpe – Castello e os EUA, como relatou o embaixador norte-americano a Washington, queriam um “pretexto político” que lhes permitissem passar por cima do espírito que predominava nas Forças Armadas (v. parte dois deste artigo – HP, 25/05/2012).
Mas não era somente em correspondência privada que aparecia a outra face de Castello – aliás, adiantaria pouco ao golpe se fosse assim. Um pouco antes da carta de 1963 ao ministro da Guerra, em discurso na ECEME, aparentemente se referindo ao curso sobre “guerra revolucionária” que estava se encerrando naquele dia, Castello afirmou: “a legalidade tem dado ao comunismo grandes e pequenas oportunidades para se infiltrar”.
Naturalmente, não foi o “comunismo” que aproveitou a legalidade para se “infiltrar” no governo Jango até golpeá-lo…
EXUMAÇÃO
Por último, duas questões. A primeira delas é, para além das condições objetivas (o aumento do peso dos monopólios estrangeiros dentro do país), por que o imperialismo foi bem sucedido ao usar Castello, quando antes fracassou com outros.
Ao contrário desses outros (como diz Hélio Silva, houve “mais chefes do que participantes” no golpe de 64), sobretudo ao contrário de Juarez Távora, Cordeiro de Farias e Eduardo Gomes, Castello Branco era, ideologicamente e sem solução de continuidade, um homem da República Velha, uma mentalidade que sobreviveu à extinção após 1930.
Sintomático é o modo como Castello aparece à vontade em algumas fotos com membros da Missão Militar Francesa (a “missão Gamelin”), no mesmo momento em que essa equipe, contratada pelo governo oligárquico, causava sentimentos de repúdio no Exército, a começar por seu Estado-Maior, e com razão (para se ter uma ideia da arrogância e dos interesses dos franceses, v. o trabalho de Manuel Domingos Neto, “Gamelin, o modernizador do Exército”, Ten. Mund., Fortaleza, v. 3, nº 4, jan/jun. 2007, pág. 219).
Ou, também, o afã de Castello, quando tenente, em perseguir a 1ª Divisão Revolucionária (a “coluna Prestes”), suportando mal, depois, a lembrança do fracasso algo ridículo que lhe impuseram seus ex-colegas, deixando-o como um boxeur desferindo murros no ar (Juarez Távora, que foi suplente de Prestes no Estado-Maior da 1ª Divisão, relatou a reação de Castello quando mencionou o fato: “eu era um tenente!” – como se os outros não fossem, também, a maioria, tenentes).
Não seria a primeira vez que o imperialismo exumaria figuras de épocas históricas anteriores para usá-las em situação muito posterior. Isso apenas demonstra o seu cunho regressivo, reacionário.
A segunda questão é quanto ao livro de Lira Neto. Como disse um amigo, é uma biografia bastante razoável de Castello Branco. Infelizmente, escaparam alguns descuidos, ainda que não comprometam o conjunto.
Não duvidamos que um elemento como Roberto Campos pudesse pensar uma estupidez como “se fosse combater a inflação com aumento real de salários, eu ganharia o Nobel de Física, pois teria descoberto a maneira de se criar a matéria do nada” (op. cit., pág. 292).
No entanto, a frase é de outro prócer econômico da ditadura, Mário Henrique Simonsen, em artigo publicado pelo “Jornal do Brasil” a 03/03/1996 (v. nosso texto “Salário, desenvolvimento e os saudosistas do atraso”, parte 3, HP, 06/04/2012).
Da mesma forma, a peça “Liberdade, Liberdade” é de Millor Fernandes e Flávio Rangel – não “Paulo” Rangel, como está no livro de Lira Neto.
Porém, o grande problema do livro, que parece ter-se expandido na mais recente obra do autor, é o trato superficial e, permita-nos, francamente preconceituoso, da figura política de Getúlio Vargas. Como este não é o centro de “Castello – A marcha para a ditadura”, o defeito é menor que as qualidades.
Em seus agradecimentos, o autor revela que a “revisão histórica do livro” foi realizada pelo “historiador” Marco Antônio Villa, mais conhecido por uma cartilha para educar os membros do PSDB.
Infelizmente, Lira Neto escolheu mal o revisor.