[Em abril de 1871, três meses antes de sua morte, aos 24 anos, o grande poeta Antonio de Castro Alves fez uma leitura dramática, em Salvador, de um dos textos mais importantes de nossa história – e dos mais esquecidos. Essa leitura, escreve Angela Alonso, “causou sensação na Bahia”, e, nela, o poeta dos escravos “deplorou o alijamento das mulheres da política partidária e as conclamou a se alistar no abolicionismo”. Devemos ao amigo Irapuan Ramos Santos, em seu trabalho “A canção nas Conferências Emancipadoras: uma contextualização histórico-musical”, a lembrança deste texto. (C.L.)]
CASTRO ALVES
Pedem-se donativos para uma sociedade abolicionista.
Quem pede?
Quem pede são os homens, que vos dizem simplesmente: – Para nossos irmãos!
São escravos que vos repetem, com a monotonia da verdade:
– Para nossos filhos!
E a quem se pede?
Não é a vós, banqueiros ou milionários, ricos ou poderosos. Não! Há um instinto e um pudor neste pedido.
O pudor diz – a esmola de uma moça não humilha.
O instinto diz – o coração de uma virgem não faz economias.
Pede-se a vós, senhoras, a vós, donzelas! A vós, crianças!
A caridade pede a vós, que sois a caridade.
É que o nosso coração acostumou-se a encarnar a virtude primeira do Cristianismo na forma puríssima da mulher-Charitas.
Símbolo divino… essa figura, cujos braços semelham duas ramas pesadas de frutos, em cujo regaço as crianças abandonadas se entrelaçam como as aves de um só ninho… sob cujo manto cobrem-se os nus, e dormem os cansados… essa figura benéfica – é a síntese de uma religião… é a deificação de uma classe!
Acolá está todo o espírito do Cristianismo, todo o futuro da mulher nas sociedades modernas.
De século em século, homens ganharam um palmo no terreno da liberdade e do pensamento. As vitórias da mulher foram no terreno do amor.
Cristo disse aos apóstolos: – Ensinai a todas as gentes – Mas disse às mulheres: – Amai a todas as gentes!
O amor era uma coroa: desde então a caridade foi um resplendor. Houve dilatação do círculo dos afetos.
A estátua da esposa grega tinha os pés sobre uma tartaruga para lembrar-se a imobilidade do coração.
Teu universo é o lar.
Vede-lhe a antítese! Um vulto ideal de moça traz nas sandálias o pó de todos os hospitais para lembrar-lhe a universalidade do seu coração.
A irmã de caridade tem por lar o mundo inteiro.
É que os antigos mal tinham soletrado neste livro místico, que se chama a virgem.
Para que fizeram os deuses a rosa lúbrica dos lábios?
Para o beijo – diziam eles. Nós dizemos, – também para a prece!
A mão alabastrina da musa sáfica vai bem na lira ebúrnea, mas é divina levando um crucifixo à boca de um moribundo.
Achais formosos os cabelos da Vênus marinha, ainda rorejantes das pérolas do oceano?!
Eu chamo de sublime a cabeleira loura de Madalena, quando enxuga os pés do Cristo!
Depois… quereis que vos diga a verdade? Vós tendes, minhas senhoras, o dever e o direito de protestar e condenar nesta questão.
Porque sois as belas filhas desta idade, que se ilustrou por George Sand e Emília Girardin, por Mme. de Stael e Harriet Stowe.
Ainda mais: porque sois filhas desta magnífica terra da América – pátria das utopias, região criada para a realização de todos os sonhos de liberdade, – de toda extinção de preconceitos, de toda conquista moral.
A terra, que realizou a emancipação dos homens, há de realizar a emancipação da mulher. A terra, que fez o sufrágio universal, não tem direito de recusar voto de metade da América.
E este voto é o vosso.
É o voto dessas mães de famílias que aprenderam no amor de seus filhos a ternura pelas crianças… ainda que negras. É o voto dessas virgens puríssimas que choram de ver as cenas repugnantes da escravidão, turbando a poesia da família.
Ó mães! Ó virgens!
Protestai em nome de Maria – Mater Creatoris!
Protestai em nome de – Maria a Virgem – Virgo castissima!
Houve um tempo em que a matrona de Esparta levava o filho ao banquete do opróbrio e da miséria moral.
O Ilota ébrio tinha a significação de dístico espartano:
Enoja-te!
Hoje a matrona leva o filho ao ergástulo da escravidão.
O escravo aviltado tem porém a significação de um verso bíblico.
Compadece-te!
***
Nas horas sérias da humanidade, no berço ou no túmulo das grandes coisas; quando uma raça expira, quando um povo se ergue, quando um reino desaba, quando uma revolução se forja, um vulto eleva-se banhado nessa beleza mística da fragilidade feminina, e por cima do turbilhão de almas indecisas passa a inspiração febrenta de Cassandra – a profetisa! – de Hipatia – a metafísica! – o punhal de Judite – a regicida! – de Joana d’Arc – a donzela! – ou a pena fulgurante de Beecher – a abolicionista!
E não terá chegado um desses momentos?
Oh! que sim!
As ondas hiantes do século já apagaram ao longo das duas Américas todas as instituições escravocratas.
O dilúvio da abolição veio lavar os continentes para as novas gerações. Só em torno desta terra brasileira é que roem as vagas a base do último rochedo, que abriga as coisas que hão de morrer.
Há uma página assim no Céu e Terra – de Byron. Ao clarão sinistro e lívido que tomou conta dos ares, os vultos dos arcanjos amorosos elevam-se do abismo, carregando nas asas refulgentes as noivas, que adoraram sobre a terra!…
Ó virgem! O cataclismo rebrama. Vamos! Estendei estas mãos alvíssimas! Carregai para o céu dos livres estas criancinhas agoniadas que vos chamam balbuciando.
***
E depois, vós bem sabeis, senhoras! A bondade é também uma beleza.
E quereis que vos diga? Eu penso que uma ação bonita deixa sempre um irradiamento no olhar, um relâmpago na fronte.
Há dias em que a formosura deslumbra… é quando o anjo da guarda beijou contente a face da donzela.
Demais, o que é que vos pedem?
Pouco e muito.
Pouco, pelo que vos há de custar… porque, enfim, as flores de um bordado nascem melhor sob vossas mãos ligeiras do que os lilases aos afagos da primavera… ao vosso hálito suavíssimo o veludo amoroso rebenta em lírios e em borboletas de seda… e o bastidor estrela-se de miçangas, como se tece de constelações uma noite luxuosa do Equador.
Muito pelo resultado que isto importa.
***
– Imagino que estais só.
Acabaste de ler a última pagina de um livro querido, do vosso escritor predileto. A Pata da Gazela, talvez… e ficais cismando… em quê? No herói, no desfecho (que sei eu?) nessas visões seráficas que povoam os corações das virgens… depois, como se a tristeza não vos ficasse de matar nesta cabeça espirituosa, sacudis a onda magnética dos cabelos e deixais cair entre perfumes a cisma que vos pesava como um diadema… que fazer?
Um desenho? Uma aquarela? Mas a palheta está aguardada! O álbum vos foi pedido por alguém. Enfim é impossível.
Se ao menos fosseis tocar aquela música tão bela de Gottschalk – Ojos Criollos, que o maestro compôs adivinhando os vossos olhos?!… Mas nestes dias de inverno o piano está úmido e preguiçoso: demais, sois nervosa e as teclas geladas produzem um arrepio irresistível.
Vamos, senhora, não há outro remédio. Tirai de vossa cestinha de costura esses fios de seda ou de ouro. Sentai-vos ali junto dessa janela por onde o céu vos mira sorrindo nessa limpidez do azul. Trabalhai, criança… assim!
Meu Deus! Como sois bela! Sabeis? Sois a paródia celeste da Parca.
Tendes nos dedinhos cor-de-rosa o fio de uma vida… mas um fio de seda… uma vida de liberdade, tecida por vossas mãos angelicais, ó Gênio da Caridade!
E agora eu vou concluir, mas antes deixai que vos lembre uma história.
Dizem que houve uma rainha, em cujo regaço as moedas que levava aos pobres transformavam-se em flores.
Donzela! Vós também fazeis milagres. Em vossas mãos, as flores vão se transformar em ouro para a remissão dos cativos.
Salvador, abril de 1871.