
O presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, afirmou em discurso pela televisão na sexta-feira (7) que a “a ordem constitucional está restaurada em grande parte em todas as regiões do país”, depois de três dias de sublevação, com prédios públicos e carros incendiados, três aeroportos tomados, lojas e caixas eletrônicos saqueados, 26 amotinados e 18 policiais mortos e quase 4 mil presos.
A situação foi se tornando caótica, mesmo após o movimento popular inicial haver obtido a revogação da alta abusiva no preço do gás veicular e a renúncia do primeiro-ministro e do gabinete que a permitira. Denúncias de que se tratava de mais uma edição de uma “revolução colorida” com aproveitamento de uma insatisfação popular para desestabilizar e submeter o país a interesses externos começaram a surgir com mais intensidade.
Atendendo ao pedido feito pelo governo do presidente Tokayev, começaram a chegar ao Cazaquistão as forças da Organização do Tratado de Cooperação e Segurança (CSTO), que reúne países ex-soviéticos do Cáucaso e Ásia Central e é liderada por Moscou. A força que ajudou a restaurar a ordem era composta por tropas russas, bielorrussas, armênias, tajiques e quirguizes. Os soldados da força do CSTO também irão guardar infraestruturas vitais, como aeroportos e usinas de energia, além da histórica e central planta de lançamentos espaciais de Baikonur.
Um contingente pequeno (2.500 soldados) e por tempo limitado, segundo o presidente da CSTO, o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan. Foi a primeira vez que a provisão de segurança coletiva da CSTO foi exercida.
No discurso, o presidente Tokayev agradeceu aos esforços do presidente russo Vladimir Putin para apoiar seu país num momento de desestabilização e à CSTO.
O Cazaquistão está sob estado de emergência, que irá até o dia 19, sendo que na cidade onde os distúrbios foram maiores, Almaty, foi decretado toque de recolher entre 23h e 7h. A internet, bloqueada, começa a ser religada em áreas pacificadas.
Os distúrbios se espalharam a Zhanaozen, Shymkent e Taraz, aos portos do Mar Cáspio de Aktau e Atyrau e até mesmo à capital Nur-Sultan, anteriormente Astana.
O anúncio da ordem “restaurada” deve ser visto nos seus devidos limites. O próprio Tokayev disse que a operação contra os amotinados continua, “eles não baixaram as armas, continuam a cometer crimes” e que “quem não se render será eliminado”. Ele anunciou que irá ao parlamento cazaque debater a crise na próxima terça-feira (11).
PLANO “CUIDADOSAMENTE PENSADO”
Em discurso na quarta-feira, o presidente Tokayev anunciou o pedido de ajuda à CSTO, após denunciar “um plano de ação cuidadosamente pensado” e que gangues terroristas “receberam treinamento significativo no exterior e seu ataque ao Cazaquistão pode e deve ser considerado um ato de agressão”.
“Nesse sentido, usando o Tratado de Segurança Coletiva, hoje convoco os chefes do CSTO a apoiarem o Cazaquistão na superação desta ameaça terrorista. Na realidade, não é uma ameaça, mas um comprometimento da integridade territorial”, afirmou.
Tokayev mostrou confiança de que o país conseguirá sair “dessa fase negra” de sua história e se comprometeu em seguir o rumo das reformas políticas graduais, proposta com a qual se elegeu.
O presidente também demitiu da presidência do Conselho de Segurança Nacional o ex-presidente Nursultan Nazarbayev, e seu vice na função, o sobrinho dele, general Samat Abish.
Não há informações sobre como a complexa estrutura de clãs cazaques se situou diante dos distúrbios.
CHINA DENUNCIA ‘REVOLUÇÃO COLORIDA’
Em mensagem verbal, segundo registrou o portal CGTN chinês, o presidente da China Xi Jinping disse ao presidente Tokayev que “a China se opõe às forças externas, que estão criando deliberadamente distúrbios no Cazaquistão e encenando uma ‘revolução colorida’”.
Xi expressou a Tokayev suas sinceras condolências pela situação vivida no Cazaquistão, e as pesadas baixas e destruição de propriedades. Ele também saudou Tokayev por sua “iniciativa forte e decisiva no momento crítico que rapidamente acalmou a situação”, o que, acrescentou reflete “sua responsabilidade e compromisso como estadista e postura altamente responsável em relação ao país e ao povo”.
Xi disse ainda que a China, como vizinho irmão e parceiro estratégico permanente e abrangente – ambos integram a Organização do Tratado de Xangai -, está disposta a fornecer apoio ao Cazaquistão e ajudar o país a superar as dificuldades.
O Cazaquistão é o décimo país do mundo em superfície, de 20 milhões de habitantes – sendo quase 20% russos étnicos -, e enorme riqueza em petróleo e gás. É ainda o maior produtor mundial de urânio, com 40%. Faz fronteira com a China em Xinjiang, sendo a porta de entrada para oeste da Iniciativa Cinturão e Estrada (BRI, a nova Rota da Seda).
ESTOPIM
O estopim dos acontecimentos foi a duplicação do preço do gás natural liquefeito, usado em veículos, no Ano Novo, a partir da decisão do governo do primeiro-ministro que caiu depois de deixar ‘o mercado’ “regular os preços”, através de uma bolsa eletrônica, e fim do subsídio ao combustível – o que geralmente é uma “recomendação” do FMI. Que, aliás, sem que ninguém haja lhe perguntado nada, divulgou comunicado dizendo estar “observando” os acontecimentos.
Segundo relatos da mídia, a razão real para o salto de 100% no preço foi igualar o preço interno ao preço praticado internacionalmente (que é 4 a 5 vezes maior e, portanto, segundo os exportadores, lhes causando “perdas”).
Depois que os protestos, iniciados na região produtora de petróleo, junto ao Cáspio, se estenderam ao país inteiro, o presidente Tokayev decretou na quarta-feira a suspensão do aumento do preço do gás por 180 dias e o congelamento do preço anterior, além de outras medidas de cunho social, e exigiu a renúncia do primeiro-ministro e seu gabinete.
No entanto, as manifestações pacíficas foram sendo suplantadas por atos violentos, com prédios públicos invadidos e alguns queimados, tentativas de tomar estações de televisão a tiros, ocupação de três aeroportos, inclusive o aeroporto internacional de Almanty, maior cidade do país e ex-capital, e pilhagem de lojas e caixas eletrônicos. Automóveis particulares e viaturas policiais queimaram a noite inteira, de quarta para quinta-feira.
CANDIDATO A ‘GUAIDÓ’ APARECE
Na sexta-feira, um ex-banqueiro e ex-ministro da Energia, foragido do Cazaquistão por falência fraudulenta e roubo, Mukhtar Ablyazov, se gabou se ser o mentor da “revolta” e se prontificou a ser o novo Guaidó da Ásia Central.
Por outro lado, documentos disponíveis publicamente mostraram que os EUA, só no ano passado e só segundo esses dados conhecidos, destinaram US$ 1,5 milhão para treinar a “mídia independente” e “ativistas da democracia”. A sempre atenta embaixada norte-americana no Cazaquistão orientou em dezembro passado cidadãos norte-americanos sobre protestos ali programados.
Um portal polonês financiado por Washington, o Nexta, que ganhou destaque no auge da tentativa de revolução colorida na Bielorrússia, divulgou uma lista de “exigências” atribuída aos manifestantes cazaques: “libertação dos presos políticos; governo provisório de cidadãos ‘respeitáveis’; e fim de todas as alianças com a Rússia”.
Outras listas apareceram, em que a preferência era pela volta da poligamia e da Sharia, a lei islâmica, assim como o fim da vacinação.
‘NOVA PRAÇA MAIDAN’
Para analistas, os distúrbios no Cazaquistão são uma “nova Praça Maidan”, voltada para criar o caos no entorno da Rússia, agora na Ásia Central, poucos meses depois da tentativa fracassada na Bielorrússia, e às vésperas das cúpulas Rússia/EUA-Otan sobre segurança coletiva e indivisível na Europa, marcadas para a próxima semana.
Mas agravada pela proximidade com o Afeganistão, em cuja desestabilização Washington trabalha freneticamente após sua retirada depois de 20 anos de ocupação, por meio de feroz bloqueio e confisco de reservas, com potencial de empurrar fronteiras afora uma multidão de refugiados famintos, além dos jihadistas do Estado Islâmico local.
Foi registrada ainda a coincidência com a próxima realização (em fevereiro) dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim. Parece que os pescadores de águas turvas têm um especial apreço pelas datas olímpicas, como no ataque da Geórgia, rechaçado pela Rússia, em 2008 (Pequim), e Maidan, em 2014 (Sochi).
No Cazaquistão convergem, também, o projeto liderado pela Rússia da União Econômica Euroasiática e o projeto da Nova Rota da Seda chinesa.
POLITICA ‘MULTIVETORIAL’
Embora, claro, não faltem problemas reais no Cazaquistão que sirvam de fagulha para esses acontecimentos – desde os oligarcas que saquearam o patrimônio público e o petróleo e gás após a dissolução da União Soviética, até à desigualdade rompante gerada e persistente pobreza rural.
Também não faltou uma política externa ‘multivetorial’ fazendo meneios a Washington, Bruxelas e Ancara, praticada por Nazarbayev.
E que até dois dias atrás ainda era o ‘presidente do Conselho de Segurança Nacional’ cazaque, cargo do qual foi destituído pelo presidente Tokayev. Aliás, o grito de “Shal Bet”, “Fora o Velho”, foi ouvido em muitos protestos.
Nazarbayev também fez acenos a setores islâmicos radicalizados, pan-turquistas e extremistas cazaques, ajudando a fomentar certo caldo de cultura que agora balança o que era tido como exemplo de estabilidade na Ásia Central. É ainda acusado de ter permitido que seu genro Timur Kulibayev monopolizasse vários setores da economia, inclusive petróleo e gás.
SAUDOSISTAS
Além das manifestações de apoio ao governo legítimo do Cazaquistão, não faltaram de parte de Washington e Bruxelas as mais deslavadas declarações sobre os acontecimentos.
A secretária de imprensa Jen Psaki, cujo país já invadiu ou interveio em dezenas de outros, os mais notórios, Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia e Vietnã, passando por cima da lei internacional e da Carta da ONU, disse que Washington “não sabia” se era legal o governo do Cazaquistão solicitar socorro à aliança de países CSTO.
A União Europeia, cúmplice na ocupação do Afeganistão, e em cujos países membros é comum baixar o sarrafo em manifestantes, como podem relatar, por exemplo, na França, os “coletes amarelos”, fez uma preleção sobre o respeito ao “direito a protestos pacíficos” num quadro de prédios públicos sendo invadidos e incendiados, pilhagens e troca de tiros.
Por sua vez, o vice-representante da Rússia na ONU, Dmitry Polyanksy, demoliu a hipocrisia do chefe da diplomacia europeia, que tivera a pachorra de condenar a ajuda da CSTO ao Cazaquistão dizendo que “evoca memórias de situações que devem ser evitadas”.
“Aparentemente, Josep Borrel, preferiria ver no Cazaquistão uma repetição do golpe ilegal de Maidan que ocorreu na Ucrânia, o que obviamente traz de volta as melhores lembranças dele”, postou Polyansky no Twitter.