Para Ronald Freitas
CARLOS LOPES
Um amigo, depois de ler algumas considerações que fiz, em particular, sobre um texto de Celso Furtado – mais propriamente, sobre a resenha de um texto publicado, em inglês, por Furtado em 1965 – pede-me que eu estenda minhas observações sobre a obra do grande economista paraibano.
A obra de Celso Furtado é, em geral, magnífica, pelo que acrescenta ao nosso conhecimento do Brasil – e, também, do mundo, especialmente da maior parte dele, constituído pelos países dependentes do sistema imperialista. Neste sentido, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961) é uma obra-prima, imprescindível para o entendimento da opressão e exploração dos países da periferia do capitalismo.
Furtado, bem entendido, não é marxista nem jamais se pretendeu um marxista. Apesar de seu departamento na Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, ficar conhecido como “Divisão Vermelha”, ele permaneceu um “estruturalista”. Mas isso não foi ruim, na medida em que jamais fugiu dos problemas que entravavam o desenvolvimento, ainda que nas fronteiras do capitalismo, de países como o Brasil.
Naturalmente, tais países têm como contradição principal a subordinação à metrópole imperialista. A questão, portanto, para os marxistas, mas também para pensadores como Furtado, é a sua libertação desses laços de subordinação. Portanto, uma mudança estrutural ainda nos marcos do capitalismo. Ou seja, a conquista de sua plena independência nacional, antes do socialismo, o que pode ser formulado, tal como elaborou Furtado, como a superação do seu subdesenvolvimento – e sua entrada em uma era de desenvolvimento.
Dentro da Cepal, Furtado esteve sempre, como demonstra o nome pelo qual ficou conhecido o departamento que chefiava, à esquerda de Raúl Prebisch – o que acabou provocando, por obra dos norte-americanos, a sua saída da própria Cepal.
Entretanto, em sua obra, é visível a incompreensão, pelo menos parcial, sobre a política de industrialização de Getúlio Vargas. Isso é mais interessante, ainda, pois, em um de seus livros de memórias, Furtado relata um encontro entre ele, Prebisch e o então presidente Getúlio, em 1952.
Reproduziremos brevemente este trecho.
ENCONTRO NO CATETE
“A entrevista foi no Palácio do Catete, antiga sede do Governo. Prebisch, como muitos argentinos, tinha uma grande admiração por Vargas. Ele o via como o dirigente que conduzira o Brasil pelo caminho da industrialização, que transformara um país de grande atraso relativo na América Latina em uma nação de vanguarda na região. Como a maioria dos observadores estrangeiros, não se detinha nos aspectos negativos. Era uma época de ditaduras, havia que escolher entre tiranos e déspotas esclarecidos… Lamentava que Perón não tivesse as mesmas virtudes de Vargas. Disse-me certa vez que se houvesse podido influenciar Perón no começo, incutindo-lhe uma visão clara dos verdadeiros problemas econômicos com que se defrontava a Argentina, a História de seu país podia haver tomado outro rumo. Ele tentara esse contato com Perón, mas certas pessoas haviam atropelado a coisa, sem dúvida por temor de perder influência.
“A aproximação corrente entre os dois políticos era fundada em desconhecimento dos homens e das circunstâncias em que atuavam. O nosso gaúcho era um homem que ouvia os entendidos, os técnicos, que se informava bem e tomava decisões com prudência. Perón era acima de tudo um grande ator, governava como se estivesse se exteriorizando num palco. Ademais, Vargas governava um país pobre, em que coisas pequenas podem ser importantes. Perón podia desperdiçar, sem que as angústias do momento viessem adverti-lo das consequências futuras de seus atos de histrionismo político. Prebisch observava: ‘Vargas soube formar quadros, deu estrutura moderna ao Estado brasileiro. Veja Perón: dispersou com um gesto a equipe que me custou dez anos para formar.’ Dizer aquilo devia doer-lhe. A equipe a que se referia dera à Argentina um avanço quilométrico na pesquisa econômica na América Latina e fizera do Banco Central uma instituição admirada internacionalmente. E Perón o substituíra por um certo Miguel Miranda, bem- humorado fabricante de biscoitos que, segundo saiu na imprensa da época, ao assumir o cargo bateu com o taco do sapato no assoalho e disse: ‘Tá tudo cheio de ouro’.
“Vargas nos recebeu na grande sala de despacho e nos convidou a sentar. Manobrando o charuto, podia desviar a vista para um lado e outro, observando-nos discretamente. Era evidente que Cleantho [de Paiva Leite, assessor de Getúlio e amigo pessoal de Furtado] o havia posto ao tanto do essencial, e ele estava contente. Começou indagando sobre as pessoas dos interlocutores. Cleantho, atalhando uma observação dele, arguiu que eu não era assim tão jovem, pois havia sido oficial da força expedicionária brasileira na Itália. Ele mostrou um vivo interesse. Mas foi quando se falou de problemas internacionais que se expandiu. Indagou da composição da Comissão, da forma como trabalhava e até mesmo de seu custo para os países membros. A este respeito Prebisch esclareceu que eram modestos os custos para os países latino-americanos, posto que se inseriam no conjunto dos gastos das Nações Unidas, que eram financiados por todos os membros da organização. Certamente estava dando eco ao argumento que circulava nas chancelarias de que a fusão com a OEA representaria importante economia para os governos da região. Fazendo-se de desentendido, Vargas indagou se não se tratava da instituição cuja liquidação havia sido objeto de démarches recentes. E sem esperar resposta foi afirmando: ‘Sabendo que havia interesses mobilizados para eliminá-la, procurei informar-me do que se tratava. Foi então que me decidi a apoiá-la’. Prebisch aproveitou a oportunidade para relatar o que havia ocorrido e enfatizar o quão decisivo havia sido o apoio do governo brasileiro. Vargas ouviu imperturbável e, como se desejasse abreviar um ponto sensível, passou a perguntar sobre a natureza dos trabalhos que vinha produzindo a Comissão. Prebisch aproveitou para fazer uma daquelas sínteses magistrais, que lhe dão um tremendo poder de convencimento. O propósito central, disse, era contribuir para o esclarecimento dos principais problemas com que se defrontam os países latino-americanos na fase atual. Fez referência aos estudos sobre a evolução dos preços relativos de exportação e importação, em prejuízo de nossos países, problema que o Presidente havia pressentido em um de seus pronunciamentos recentes. Esboçou suas ideias sobre o excedente de população na produção primária, de onde partiu para uma justificação clara da necessidade de criação de novos empregos, o que somente era possível com industrialização.
“Vargas ouvia com inequívoco interesse. Ele havia sido o homem da industrialização, mas a tateios, lutando contra a ‘boa doutrina’ dos mestres da época. Agora ouvia uma demonstração lapidar de que havia feito a escolha certa. Interessou-se em ter cópia desses trabalhos e Cleantho intercedeu informando que inclusive já eram disponíveis em português, em traduções feitas por mim, e que se encarregaria de pô-los à disposição do Presidente. Ainda quis saber se a CEPAL também se preocupava com problemas monetários. Prebisch esclareceu que o organismo especificamente encarregado dessa matéria, nas Nações Unidas, era o Fundo Monetário Internacional. Contudo, como não era possível abordar o conjunto dos problemas econômicos sem ter em conta seus aspectos monetários, também eles estavam sendo considerados pela CEPAL.
“Vargas praticamente iniciava seu novo governo e parecia decidido a imprimir-lhe um cunho altamente industrialista. Agora tomava conhecimento de que havia todo um movimento de ideias, na América Latina, em prol dessa política, que não estava só. E tampouco lhe terá escapado que não deveria contar com apoio das nações industrializadas para avançar nessa direção. O barulho em torno daquela pequena instituição internacional era um indício da direção em que se moviam os ventos”.
***
“Prebisch estava hospedado no hotel Serrador e eu o acompanhei em uma caminhada pelo centro da cidade, após o jantar. Ele sentia que pela primeira vez estávamos pisando em terreno firme. Vargas sabia aonde ia e não se deixaria demover de seus propósitos. Tínhamos que dar um sentido mais prático a nosso trabalho para corresponder às expectativas que se haviam criado. Logo que chegasse a Santiago criaria a Divisão de Desenvolvimento Econômico, cuja direção me caberia.
“Na Galeria Cruzeiro assediou-nos uma família de mendigos e eu, como desculpando os infelizes, fiz referência ao Nordeste, donde provavelmente procediam. Ele não dava a impressão de fixar-se na paisagem humana, o que podia ser um mecanismo de defesa ou simplesmente indiferença. Mas, como se houvesse percebido o filme que se desenrolou no meu espírito, quando falei de Nordeste, fez o seguinte relato: ‘Quando era jovem andei pela Ásia e tive uma experiência em Cingapura que me marcou. Eu estava usando um desses carros de tração humana, despreocupadamente. Em certo momento parei para dar uma pequena volta a pé. Quando regressava o homem que servia de animal de tração não me notou. Pude observá-lo e o vi abaixado, tirando de uma pequena sacola um pouco de comida, que sopesava como se estivesse medindo e comparando com o esforço que tinha a fazer, antes de levá-la à boca. Tive a sensação de que estava vendo um animal e não uma criatura humana’. E calou-se. Fiquei pensando se ele não desviava os olhos da família de mendigos para evitar de confrontar-se mais uma vez com o estranho quadro de degradação da criatura humana que se fixara a fogo em seu espírito desprevenido numa manhã cálida de Cingapura” (v. HP 24/10/2014, Getúlio Vargas, Prebisch e Celso Furtado no Palácio do Catete, extraído de Celso Furtado, A Fantasia Organizada, Paz e Terra, 1985).
ECONOMIA CAFEEIRA E INDUSTRIALIZAÇÃO
Apesar dessa impressão positiva, referente ao segundo governo Getúlio, Furtado jamais refez seu ponto de vista de que a industrialização da época do primeiro governo, não foi intencional, ou seja, não foi fruto de uma política, de uma decisão deliberada pela industrialização por parte do presidente e do primeiro governo Vargas.
Aliás, mesmo em relação ao segundo governo, para o qual Getúlio foi eleito por quase maioria absoluta dos votos, Furtado, no texto que reproduzimos acima, mostra sua desconfiança, sobretudo no trecho: “Como a maioria dos observadores estrangeiros, [Prebisch] não se detinha nos aspectos negativos. Era uma época de ditaduras, havia que escolher entre tiranos e déspotas esclarecidos…”.
Aspectos negativos? A que ditadura ele estava se referindo? Certamente, à ditadura do primeiro governo Getúlio. Em seu espírito, a ferida ideológica não havia, portanto, sarado, mesmo naquela época tardia. O Estado Novo – e, portanto, a industrialização do período Getúlio – continuava, para Furtado, um período politicamente sombrio, apesar de sua trajetória como oficial da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Itália, durante esse mesmo período.
Essa visão pouco ou nada edificante da industrialização durante o primeiro governo de Getúlio, é especialmente evidente em sua obra mais famosa (e mais abrangente, historicamente), Formação Econômica do Brasil (1959).
Não se trata de qualquer questão: o próprio Furtado considera aquele momento como o decisivo da história brasileira no século XX. Ou, como alguns observaram, todo o livro é uma preparação para aquele momento, relatado nos capítulos XXX a XXXIII, com a crise da economia cafeeira e o deslocamento do centro dinâmico da exportação agrícola para o mercado interno.
Vejamos alguns trechos desse livro:
“… a política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda nacional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados” (Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, 14ª ed., Companhia Editora Nacional, 1976, p. 192, grifo nosso).
Na página seguinte, o autor é ainda mais explícito:
“… a recuperação da economia brasileira, que se manifesta a partir de 1933, não se deve a nenhum fator externo, e sim à política de fomento seguida inconscientemente no país e que era um subproduto da defesa dos interesses cafeeiros” (op. cit., p. 193, grifos nossos).
Mais à frente, no capítulo seguinte:
“… Por que forma foram compensados os efeitos depressivos da contração persistente da procura externa? Melhor ainda: a que se deve o fato de que a procura interna não tenha entrado em colapso ao contrair-se a procura externa? Esses resultados, de grande significação para o futuro imediato da economia brasileira, são um reflexo da crise do café e da amplitude com que foram defendidos, conscientemente ou não, os interesses da economia cafeeira” (op. cit., p. 201, grifo nosso).
Mas isso transformaria Getúlio em um representante dos interesses cafeeiros – ou seja, dos interesses da oligarquia cafeeira – que, ao usar o crédito interno para substituir os empréstimos externos na aquisição de estoques de café, acabou por promover, acidentalmente, a industrialização da década de 30.
É verdade que Getúlio adquiriu os estoques para destruí-los, mas, do ponto de vista dos produtores de café, como reconhece Furtado, não há diferença entre destruir estoques ou forçar o mercado exterior, usando empréstimos externos.
Celso Furtado, um homem muito inteligente, percebe que é um paradoxo tornar a industrialização subproduto da proteção ao café – e aos lucros dos cafeicultores. Então, para que se fez a Revolução de 30, se era para continuar “defendendo” os interesses cafeeiros?
Se a política de Getúlio era a proteção dos interesses cafeeiros, por que a República Velha – o regime dos cafeicultores – não seria, para isso, um regime melhor e mais adequado do que aquele surgido do Levante de 1930?
Em suma, para que derrubar Washington Luís, se o novo governo pretendia a mesma coisa que ele, isto é, a defesa da economia que girava em torno da oligarquia cafeeira?
Entretanto, pelo contrário, desde o primeiro momento, o objetivo da Revolução de 30 – e de seu líder, Getúlio Vargas – era a industrialização do país (v., por exemplo, HP 24/08/2024, A herança de Getúlio é o Brasil).
Em uma nota ao pé da mesma página, Furtado tenta consertar esse problema de sua obra. Mas é um remendo precário. Escreve ele, nessa nota:
“O movimento revolucionário de 1930 – ponto culminante de uma série de levantes militares abortivos iniciados em 1922 – tem sua base nas populações urbanas, particularmente a burocracia militar e civil e os grupos industriais, e constitui uma reação contra o excessivo predomínio dos grupos cafeeiros – de seus aliados da finança internacional, comprometidos na política de valorização – sobre o governo federal. Contudo, em face da reação armada de 1932, o governo provisório tomou, a partir de 1933, uma série de medidas destinadas a ajudar financeiramente os produtores de café, inclusive uma redução de cinquenta por cento nas dívidas bancárias destes últimos” (p. 201, grifo nosso).
Prestemos atenção na última frase, que nós grifamos: apesar de reconhecer o caráter antioligárquico (isto é, em contraposição à oligarquia cafeeira) da Revolução de 30, Furtado afirma que, depois da contrarrevolução paulista de 1932, o governo Getúlio, ainda em sua fase provisória, se rendeu aos interesses dos “produtores de café”, ou seja, aos interesses da oligarquia cafeeira.
Mas, como, se a contrarrevolução de 1932 foi derrotada?
É uma estranha interpretação da história brasileira, porque falsa, mas sob medida para homiziar a ideia de que a industrialização da década de 30 não foi intencional – portanto, foi acidental, um suposto e imaginário “subproduto” da defesa do café.
Mas essa interpretação persiste na síntese final sobre a transição do Brasil de uma economia agrícola-cafeeira para uma economia industrial:
“A decisão de continuar financiando sem recursos externos a acumulação de estoques, qualquer que fosse a repercussão sobre a balança de pagamentos, foi de consequências que na época não se podiam suspeitar. Mantinha-se, assim, a procura monetária em nível relativamente elevado no setor exportador. Esse fato, combinado ao encarecimento brusco das importações (consequência da depreciação cambial), à existência de capacidade ociosa em algumas das indústrias que trabalhavam para o mercado interno e ao fato de que já existia no país um pequeno núcleo de indústrias de bens de capital, explica a rápida ascensão da produção industrial, que passa a ser o fator dinâmico principal no processo de criação da renda” (op. cit., p. 202).
Nada disso apaga o que existe de verdade na descrição que Furtado faz dessa transição, mas a posição – a posição de um grande autor e pensador – de que a industrialização da época de Getúlio não foi intencional, é, quanto a esse aspecto, insustentável.
AS AÇÕES DO GOVERNO
Um outro economista, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tentou uma explicação para esse problema da obra de Furtado:
“Talvez por restringir ou centrar sua análise nas políticas instrumentais – aqui definidas como fundamentalmente as políticas monetária, cambial e fiscal – as quais possuem uma lógica própria inerente a políticas de estabilização, Furtado acabou por entender o crescimento da indústria como consequência não intencional da política de valorização do café e de manutenção da renda nominal do setor, executada pelo governo seja pelo efeito negativo da crise nas finanças públicas e no balanço de pagamentos, seja pela importância econômica e política dos setores exportadores de café” (Pedro Cezar Dutra Fonseca, Sobre a intencionalidade da política industrializante do Brasil na década de 1930, Revista de Economia Política, v.23, n.1(89), jan-mar/2003, p.p. 133-48).
A explicação não nos parece convincente. Mesmo examinando a transição da economia brasileira na década de 30 sob o aspecto “instrumental” (isto é, sob o aspecto das políticas monetária, cambial e fiscal), nada obrigava Furtado a chegar à conclusão de que a industrialização da década de 30, no Brasil, foi não intencional. No entanto, foi a isso que ele chegou.
Por quê?
A nós, parece que existe nessa conclusão, sobretudo, um elemento ideológico – isto é, um preconceito em relação a Getúlio, e, especialmente, ao seu primeiro governo, que Furtado denominou, em Formação Econômica da América Latina, de “autoritarismo esclarecido” – do que um problema metodológico.
É verdade que, quanto a este último, Pedro Cezar Dutra Fonseca examina a questão pelo lado institucional – e chega às mesmas conclusões que nós. Mas isso não se deve ao método, e sim à superação dos preconceitos que fizeram Furtado chegar àquelas outras conclusões.
Como escreve ele, “Furtado, a despeito de ressaltar os êxitos da política de manutenção de renda na superação da crise e de seu impacto positivo na indústria, interpretou-os como resultado de um salutar intervencionismo antiortodoxo, mas nunca defendeu a intencionalidade no que diz respeito ao crescimento industrial. Ao contrário, (…) entendeu o crescimento industrial da década de 1930 como fruto da política de defesa do café, que teria sido implementada pelo governo: (a) seja devido às exigências pragmáticas impostas pela crise, por sua repercussão no balanço de pagamentos e na arrecadação de impostos; (b) seja por razões de ordem política, frente à importância do setor cafeicultor e pela própria composição do governo, chamando atenção a seus compromissos conservadores, ‘oligárquicos’ e ‘agraristas’; ou (c) seja, ainda, devido a um terceiro fator, assinalado em uma passagem, na qual se menciona não propriamente a política governamental, mas a decisão individual dos capitais privados, em busca de diversificação dos investimentos, já que nas atividades voltadas ao mercado interno havia maior perspectiva de lucro, frente à crise das atividades de exportação”.
Não entraremos, aqui, em outras incoerências apontadas por esse autor na obra de Furtado, pois é suficiente, para nós, que ele aceite a tese central dessa obra – a do deslocamento do “centro dinâmico” da economia brasileira para a indústria.
Mas lembraremos que ele revisa vários livros de Furtado – além de Formação Econômica do Brasil (1959), Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961), Dialética do Desenvolvimento (1964) e Formação Econômica da América Latina (1969) – sempre com a mesma constatação:
“… não resta dúvida de que, para Furtado, o crescimento industrial brasileiro na década de 1930 foi subproduto (para usar uma expressão sua) da defesa do setor cafeicultor e, tudo sugere, perseguindo o objetivo maior de evitar o aprofundamento da crise nas finanças governamentais. A tese da não intencionalidade é recorrente em sua obra e, mesmo sem ter uma definição clara e única sobre as relações entre o grupo dirigente e o setor agroexportador, ressaltou mais este vínculo do que com os interesses industriais. Na verdade, quanto a este último não há nenhuma referência direta nos trabalhos analisados” (Pedro Cezar Dutra Fonseca, art. cit.).
Mas, se isto é ausente na obra de Furtado, há referência aos interesses industriais nos próprios atos de Getúlio e de seu governo, desde a Revolução de 30 – e, mais ainda, a partir de 1937.
O que vem abaixo, como exemplo, foi retirado do artigo que citamos e do excepcional livro de Sônia Draibe, Rumos e Metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil, 1930-1960 (Paz e Terra, 1985).
Dificilmente (ou impossivelmente) algumas dessas medidas poderiam ser relacionadas à defesa da economia cafeeira, ou, o que é a mesma coisa, à proteção dos interesses da oligarquia cafeeira:
a) o decreto nº 19.739, de 7 de março de 1931, que proibia a importação de máquinas e equipamentos para alguns setores da indústria, uma reivindicação dos próprios industriais;
b) a facilitação, em 1935, da importação de outros bens de capital, através de um tratado de comércio com os EUA;
c) as tarifas protecionistas adotadas com a reforma tributária de 1934, sob aprovação dos industriais, inclusive Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi;
d) a liberação do crédito à indústria com a criação, em 1937, da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil;
Dutra Fonseca lembra que “já em 1931, Vargas afirmava a necessidade de protecionismo deliberadamente para proteger a indústria nascente: ‘O protecionismo industrial das matérias-primas do país é fator decisivo, sem dúvida, ao nosso progresso econômico. É justo, por isso, que se estimule, mediante política tarifária, conduzida sem excessos. As tabelas das alfândegas devem refletir estes critérios’. Nesta época associava-se a indústria ao progresso econômico. Em meados da década, este será substituído por desenvolvimento econômico, como no discurso pronunciado a 7 de setembro de 1936: ‘Atingimos elevado estágio de desenvolvimento cultural, institucional e econômico. (…) Já não somos um país exclusivamente agrário, jungido à luta pelos mercados consumidores de matérias-primas e esmagado pelo peso das aquisições de produtos industriais’”.
O autor observa: “Desenvolvimento, então, paulatinamente transformara-se em sinônimo de industrialização. Passava a ser, por excelência, a condição necessária para o país se desenvolver, ou seja, melhorar seus indicadores econômicos e sociais; precisava-se romper com o passado agrário, do marasmo rural e das oligarquias retrógradas” (Pedro Cezar Dutra Fonseca, art. cit.).
Tratava-se de um programa de rompimento com as amarras às metrópoles imperialistas, que se assentavam na pauperização industrial dos países dependentes, colônias e semicolônias.
E, cotejando o discurso de Getúlio com a tese de Celso Furtado:
“Em outro pronunciamento, ao final do mesmo ano de 1936, registra-se a explicitação da tese de que o desenvolvimento era a tarefa principal do poder público, que possuía etapas a serem vencidas e que este novo relacionamento entre Estado e iniciativa privada não ocorreria em prejuízo desta última, ‘antes, amparando-a e favorecendo o surto de novas culturas e indústrias’. Tratava-se, portanto, de uma nova era a ser construída; o Estado Novo, em seu próprio nome, encarregava-se de expressá-la simbolicamente. Todas essas passagens não deixam dúvida sobre a consciência da substituição de importações e de sua importância para o país. Como entender como ‘subproduto’ da política de valorização do café políticas tão claramente implementadas e defendidas explicitamente como voltadas a impulsionar o setor industrial?” (idem).
Mas, voltemos às medidas de política econômica do governo Getúlio:
e) … em 1933 previa-se a criação, junto ao Ministério da Agricultura, do Instituto de Tecnologia, que se vincularia à Diretoria Geral de Pesquisas Científicas, a criação de duas diretorias, das Minas e das Águas, e de três centros de pesquisa vinculados à extração mineral: Instituto Geológico e Mineralógico, Laboratório Central de Indústria Mineral e Escola Nacional de Química. O Código de Minas e o Código de Águas datam de 1934.
f) criação, no início da década de 40, da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, e da Companhia Vale do Rio Doce;
g) em 1934, o presidente anunciou a criação, em Curitiba, de uma fábrica de projéteis de artilharia, de materiais contra gases e de viaturas, além de fábricas de espoletas e estojos de artilharia e de canos e sabres, mais a ampliação da fábrica de cartuchos de infantaria e do Arsenal de Guerra do Rio Grande do Sul;
h) criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (1930); do Departamento Nacional do Trabalho e do Instituto do Açúcar e do Álcool (1933); do Conselho Federal do Comércio Exterior, do Plano Geral de Viação Nacional e da Comissão de Similares (1934); e do Conselho Técnico de Economia e Finanças (1937);
i) aqui listaremos o impressionante número das principais instituições aparecidas durante o Estado Novo: criação do Conselho Nacional do Petróleo, do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), do Instituto Nacional do Mate e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), em 1938; do Plano de Obras Públicas e Aparelhamento de Defesa e do Conselho de Águas e Energia, em 1939; da Comissão de Defesa Nacional, do Instituto Nacional do Sal, da Fábrica Nacional de Motores e da Comissão Executiva do Plano Siderúrgico Nacional em 1940; da Companhia Siderúrgica Nacional, do Instituto Nacional do Pinho, da Comissão de Combustíveis e Lubrificantes e do Conselho Nacional de Ferrovias, em 1941; do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), do Banco de Crédito da Borracha e da Comissão do Vale do Rio Doce, em 1942; da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), da Companhia Nacional de Álcalis, da Comissão de Financiamento da Produção, da Coordenação de Mobilização Econômica, da Fundação Brasil Central, do Serviço Social da Indústria (SESI) e do Plano Nacional de Obras e Equipamentos, em 1943; do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, do Serviço Nacional do Trigo, do Instituto Nacional do Pinho e da Comissão de Planejamento Econômico, em 1944; e da Superintendência da Moeda do Crédito, em 1945.
Concordamos inteiramente em que a legislação trabalhista de Getúlio Vargas é um sinal claro da consciência que tinha de que a industrialização era necessária ao país para romper com os vínculos de subordinação que o levavam à miséria e ao atraso.
Aliás, “pode-se indagar até que ponto o governo tinha consciência da profundidade destas mudanças, mas dificilmente pode-se entendê-las como ato fortuito, fruto do acaso, desvinculado dos novos rumos impressos à economia. Até porque Vargas em várias ocasiões recorreu a argumentos históricos para justificar a nova legislação trabalhista, como em discurso proferido na comemoração do primeiro ano de sua posse, em outubro de 1931. Nesta ocasião, com rara clarividência expôs que o fim da escravidão não trouxera de imediato novas leis para substituir as antigas; a República Velha omitira-se quanto à regulamentação do trabalho assalariado, de maneira que era preciso organizá-lo ‘em bases racionais’, com novas leis, novas instituições, novos costumes e novos hábitos. O alcance e o significado de discursos como estes não podem ser ignorados ao se abordar a consciência e a intencionalidade das mudanças pelos personagens da história e, somados a seus atos, são capazes de revelar suas intenções” (Pedro Cezar Dutra Fonseca, art. cit.).