Nos 100 anos de nascimento de Celso Furtado, republicamos o texto, de memória do autor, sobre a visita que fez, junto com Raul Prebisch, a Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, no início da década de 1950. O artigo contou com a introdução de Carlos Lopes, chefe de redação do HP, e foi publicado em outubro de 2014
Os livros de memórias de Celso Furtado têm uma importância que vai, provavelmente, além da consciência do autor quando os escreveu. Certamente, é possível dizer isto de quase todo livro de memórias – e, de resto, de quase todo livro. No entanto, poucas vezes tal característica é tão evidente quando nos livros memorialísticos de Furtado (“A Fantasia Organizada“, “A Fantasia Desfeita” e “Os ares do Mundo“).
Por isso, publicamos hoje o seu relato do encontro com o presidente Getúlio Vargas, que está em “A Fantasia Organizada”. O leitor, ao percorrer o texto de Furtado, perceberá o motivo por que escolhemos esse trecho. Resta dizer que numa época de tanta mediocridade política, intelectual e moral é algo reanimador perceber, mais uma vez, que o Brasil já teve na Presidência um grande homem. Se já teve, nada impede que, superada a fase atual, volte a ter.
Um dos méritos dessa parte da obra de Celso Furtado é o retrato personalizado do entreguismo – e dos entreguistas. Os de hoje são apenas uns plagiários daqueles, pois o “argumento” é o mesmo, seja o nome do sujeito Eugenio Gudin ou Fernando Henrique Cardoso, Roberto Campos ou Dilma Rousseff: somos um povo de incapazes – ou somos “incapazes de gestão”.
Como nordestino, paraibano, Celso Furtado era particularmente atento – e contrário – a esse “argumento”, de resto completamente racista.
Por exemplo, escreve ele sobre Gudin, que, apenas dois anos depois, seria, após o martírio do presidente Vargas, ministro da Fazenda do governo Café Filho, lançando o Brasil em gravíssima paralisia econômica:
“… pretendendo deixar claro que o debate devia ser dado como encerrado, aparecia um artigo do Prof. Gudin sob o título ‘O Caso das Nações Subdesenvolvidas’. O autor começa advertindo os economistas de que não devem intrometer-se em seara alheia. Cabe aos engenheiros, dizia, discutir os ‘aspectos tecnológicos do problema do desenvolvimento’. (…) … sentenciava, escudando-se no determinismo de Buckle: ‘Não há como negar que o desenvolvimento econômico é principalmente função do clima, dos recursos da natureza e do relevo do solo’. Não era sem razão, advertia o Prof. Gudin, que a civilização ocidental se desenvolvera unicamente fora da zona tropical. Era como se nos estivesse lembrando, delicadamente, que somos um povo de segunda classe“(cf. Celso Furtado, “A Fantasia Organizada“, Paz e Terra, 1985, p. 157).
Nesse trecho, Celso Furtado refere-se ao debate sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento, em 1952, depois que, em 1949, sob a liderança do economista argentino Raul Prebisch, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão da ONU em que trabalhava Furtado, propôs uma estratégia para o crescimento dos países latino-americanos.
Essa estratégia, de industrialização e substituição de importações, estava fundamentada em implementar o progresso técnico nos países subdesenvolvidos – era a defasagem “técnica” que precisava ser superada, para fechar a brecha com os países desenvolvidos. Nas palavras de Prebisch: “… o desenvolvimento econômico dos países periféricos é mais uma etapa no fenômeno de propagação universal das novas formas da técnica produtiva ou, se quiser, no processo de desenvolvimento orgânico da economia do mundo” (cf. CEPAL, “Estudio Economico de America Latina 1949“, ONU, NY, 1951).
Gudin negava que os problemas tecnológicos – até mesmo o papel econômico do desenvolvimento ou absorção de tecnologia – fossem matéria dos economistas. Para ele, esse era um problema dos engenheiros, pois não havia progresso técnico que fizesse crescer economicamente os países da periferia. Se levarmos sua teoria a sério, seria necessário que esses países mudassem de clima – ou de lugar no globo terrestre. Essa defesa do atraso e da dominação imperialista sobre os países periféricos tinha uma vantagem adicional: Gudin era engenheiro e economista, o que era raro – se é que existia algum – entre seus adversários progressistas na década de 50 (embora fosse razoavelmente comum no início do século XX. O exemplo mais eminente é o de Vieira Souto, adversário da política econômica de Campos Salles/Joaquim Murtinho, e professor de economia política na Escola Politécnica, a atual Faculdade de Engenharia da UFRJ).
Da mesma forma, é bastante preciso o retrato que Furtado traça de Roberto Campos, o notório Bob Fields, futuro ministro do Planejamento no primeiro governo da ditadura:
“Conversando certa vez com Campos sobre a criação da Petrobrás (…) eu argumentara que a indústria petroleira era o melhor negócio do mundo, sendo grande vantagem que a tivéssemos em nossas mãos. O que mais me desagradava em um país como a Venezuela, disse, era que a indústria petroleira (controlada do estrangeiro) nenhum poder indutor exercia sobre o sistema produtivo local, tudo adquirindo no exterior. Controlada pelo Estado, a indústria petroleira poderia transformar-se em polo germinativo de múltiplas atividades produtivas. Em tese ele estava de acordo, mas observou com um gesto negligente: ‘O problema é que nós não temos capacidade para instalar e dirigir essa indústria’. As pessoas com esse enfoque tendiam a pensar que a solução para o Brasil estava em atrair o maior número possível de empresas estrangeiras, que aqui viram fazer aquilo para o que demonstrávamos incapacidade” (op. cit., p. 162).
Há outros méritos nesses livros de Furtado, a que voltaremos em outras edições. Por exemplo, sua afirmação de que “a oferta de poupança e a demanda de capital para investimento somente se ajustam quando a economia está crescendo“, feita em conferência na Escola Superior de Guerra (ESG), no ano de 1953, é chave para se entender a completa mediocridade do crescimento do país nos governos Fernando Henrique e Dilma. Como Furtado diz em seguida, “não havia contradição entre estabilidade e crescimento, devendo-se condenar as políticas de estabilização que começavam freando o crescimento” (op. cit. 164).
Forçoso é reconhecer que também as debilidades – melhor seria chamá-las de preconceitos – de Furtado aparecem nitidamente em seus relatos: os principais são aqueles sobre o papel de Getúlio Vargas na História do Brasil e sobre Marx e a construção do socialismo na URSS.
Já escrevemos sobre o primeiro, ao comentar um excelente texto do professor Pedro Cezar Dutra Fonseca (v. HP 15/05/2013, Notas sobre economia: Getúlio, Celso Furtado e investimento estrangeiro)
Sobre o segundo, falar no “reducionismo” de Marx, ou no fracasso do “planejamento centralizado”, não é coisa à altura de um grande intelectual. Mais parece com aquelas poses, algo ridículas, de Keynes, garantindo que nunca leu Marx, para fazer média com os acadêmicos de Cambridge ou Oxford, todos reacionaríssimos.
Entretanto, Celso Furtado era muito superior à maioria dos economistas brasileiros do seu tempo – alguns com fama inflacionada até hoje.
Não era, sem dúvida, um político – e isso sempre é um problema para quem se decide a abordar os grandes problemas brasileiros.
Mas veja o leitor o belo retrato que faz de Vargas e Prebisch, ao relatar o encontro dos três – e mais Cleantho de Paiva Leite, assessor de Getúlio e seu amigo, desde à juventude, na Paraíba.
C.L.
CELSO FURTADO
A entrevista foi no Palácio do Catete, antiga sede do Governo. Prebisch, como muitos argentinos, tinha uma grande admiração por Vargas. Ele o via como o dirigente que conduzira o Brasil pelo caminho da industrialização, que transformara um país de grande atraso relativo na América Latina em uma nação de vanguarda na região. Como a maioria dos observadores estrangeiros, não se detinha nos aspectos negativos. Era uma época de ditaduras, havia que escolher entre tiranos e déspotas esclarecidos… Lamentava que Perón não tivesse as mesmas virtudes de Vargas. Disse-me certa vez que se houvesse podido influenciar Perón no começo, incutindo-lhe uma visão clara dos verdadeiros problemas econômicos com que se defrontava a Argentina, a História de seu país podia haver tomado outro rumo. Ele tentara esse contato com Perón, mas certas pessoas haviam atropelado a coisa, sem dúvida por temor de perder influência.
A aproximação corrente entre os dois políticos era fundada em desconhecimento dos homens e das circunstâncias em que atuavam. O nosso gaúcho era um homem que ouvia os entendidos, os técnicos, que se informava bem e tomava decisões com prudência. Perón era acima de tudo um grande ator, governava como se estivesse se exteriorizando num palco. Ademais, Vargas governava um país pobre, em que coisas pequenas podem ser importantes. Perón podia desperdiçar, sem que as angústias do momento viessem adverti-lo das consequências futuras de seus atos de histrionismo político. Prebisch observava: “Vargas soube formar quadros, deu estrutura moderna ao Estado brasileiro. Veja Perón: dispersou com um gesto a equipe que me custou dez anos para formar.” Dizer aquilo devia doer-lhe. A equipe a que se referia dera à Argentina um avanço quilométrico na pesquisa econômica na América Latina e fizera do Banco Central uma instituição admirada internacionalmente. E Perón o substituíra por um certo Miguel Miranda, bem- humorado fabricante de biscoitos que, segundo saiu na imprensa da época, ao assumir o cargo bateu com o taco do sapato no assoalho e disse: “Tá tudo cheio de ouro”.
Vargas nos recebeu na grande sala de despacho e nos convidou a sentar. Manobrando o charuto, podia desviar a vista para um lado e outro, observando-nos discretamente. Era evidente que Cleantho o havia posto ao tanto do essencial, e ele estava contente. Começou indagando sobre as pessoas dos interlocutores. Cleantho, atalhando uma observação dele, arguiu que eu não era assim tão jovem, pois havia sido oficial da força expedicionária brasileira na Itália. Ele mostrou um vivo interesse. Mas foi quando se falou de problemas internacionais que se expandiu. Indagou da composição da Comissão, da forma como trabalhava e até mesmo de seu custo para os países membros. A este respeito Prebisch esclareceu que eram modestos os custos para os países latino-americanos, posto que se inseriam no conjunto dos gastos das Nações Unidas, que eram financiados por todos os membros da organização. Certamente estava dando eco ao argumento que circulava nas chancelarias de que a fusão com a OEA representaria importante economia para os governos da região. Fazendo-se de desentendido, Vargas indagou se não se tratava da instituição cuja liquidação havia sido objeto de démarches recentes. E sem esperar resposta foi afirmando: “Sabendo que havia interesses mobilizados para eliminá-la, procurei informar-me do que se tratava. Foi então que me decidi a apoiá-la”. Prebisch aproveitou a oportunidade para relatar o que havia ocorrido e enfatizar o quão decisivo havia sido o apoio do governo brasileiro. Vargas ouviu imperturbável e, como se desejasse abreviar um ponto sensível, passou a perguntar sobre a natureza dos trabalhos que vinha produzindo a Comissão. Prebisch aproveitou para fazer uma daquelas sínteses magistrais, que lhe dão um tremendo poder de convencimento. O propósito central, disse, era contribuir para o esclarecimento dos principais problemas com que se defrontam os países latino-americanos na fase atual. Fez referência aos estudos sobre a evolução dos preços relativos de exportação e importação, em prejuízo de nossos países, problema que o Presidente havia pressentido em um de seus pronunciamentos recentes. Esboçou suas ideias sobre o excedente de população na produção primária, de onde partiu para uma justificação clara da necessidade de criação de novos empregos, o que somente era possível com industrialização.
Vargas ouvia com inequívoco interesse. Ele havia sido o homem da industrialização, mas a tateios, lutando contra a “boa doutrina” dos mestres da época. Agora ouvia uma demonstração lapidar de que havia feito a escolha certa. Interessou-se em ter cópia desses trabalhos e Cleantho intercedeu informando que inclusive já eram disponíveis em português, em traduções feitas por mim, e que se encarregaria de pô-los à disposição do Presidente. Ainda quis saber se a CEPAL também se preocupava com problemas monetários. Prebisch esclareceu que o organismo especificamente encarregado dessa matéria, nas Nações Unidas, era o Fundo Monetário Internacional. Contudo, como não era possível abordar o conjunto dos problemas econômicos sem ter em conta seus aspectos monetários, também eles estavam sendo considerados pela CEPAL.
Vargas praticamente iniciava seu novo governo e parecia decidido a imprimir-lhe um cunho altamente industrialista. Agora tomava conhecimento de que havia todo um movimento de ideias, na América Latina, em prol dessa política, que não estava só. E tampouco lhe terá escapado que não deveria contar com apoio das nações industrializadas para avançar nessa direção. O barulho em torno daquela pequena instituição internacional era um indício da direção em que se moviam os ventos.
* * *
Prebisch estava hospedado no hotel Serrador e eu o acompanhei em uma caminhada pelo centro da cidade, após o jantar. Ele sentia que pela primeira vez estávamos pisando em terreno firme. Vargas sabia aonde ia e não se deixaria demover de seus propósitos. Tínhamos que dar um sentido mais prático a nosso trabalho para corresponder às expectativas que se haviam criado. Logo que chegasse a Santiago criaria a Divisão de Desenvolvimento Econômico, cuja direção me caberia.
Na Galeria Cruzeiro assediou-nos uma família de mendigos e eu, como desculpando os infelizes, fiz referência ao Nordeste, donde provavelmente procediam. Ele não dava a impressão de fixar-se na paisagem humana, o que podia ser um mecanismo de defesa ou simplesmente indiferença. Mas, como se houvesse percebido o filme que se desenrolou no meu espírito, quando falei de Nordeste, fez o seguinte relato: “Quando era jovem andei pela Ásia e tive uma experiência em Cingapura que me marcou. Eu estava usando um desses carros de tração humana, despreocupadamente. Em certo momento parei para dar uma pequena volta a pé. Quando regressava o homem que servia de animal de tração não me notou. Pude observá-lo e o vi abaixado, tirando de uma pequena sacola um pouco de comida, que sopesava como se estivesse medindo e com-parando com o esforço que tinha a fazer, antes de levá-la à boca. Tive a sensação de que estava vendo um animal e não uma criatura humana”. E calou-se. Fiquei pensando se ele não desviava os olhos da família de mendigos para evitar de confrontar-se mais uma vez com o estranho quadro de degradação da criatura humana que se fixara a fogo em seu espírito desprevenido numa manhã cálida de Cingapura.